Dia desses mandei uma foto aqui de casa pra um querido amigo, não me lembro do porquê. Mentira, lembro (vou escrevendo e as memórias vêm vindo, por isso prefiro não corrigir, não recomeçar, prefiro lhes dizer a verdade).
Ia acontecer a Festa do Pijama, a primeira vez que Leonel receberia seus coleguinhas de turma pra uma farra em casa. Tudo fora de lugar pra arrumação da sala e saquei uma foto (abaixo) mostrando a disposição provisória dos móveis.
O comentário veio um minuto depois (estou sendo preciso):
essa mesa de vocês é foda.
Assim mesmo: tudo em minúsculo.
Rodrigo Carvalho, meu caro, meu querido, meu saudoso Rodrigo Carvalho, de Londres, lançara (sem querer) uma seta no meu peito.
E demos de conversar (trocamos longas mensagens ao longo dos dias, por escrito, por áudio, o diabo) sobre a mesa.
Seis minutos depois, seis minutos depois de sentar-me à mesa com uma xícara de café e um naco de pão francês diante de mim, o respondi:
Que dor ler isso, irmão.
É nossa?
É dela?
É minha?
É linda, de fato.
É de peroba do campo.
Feita sob encomenda.
Nunca quisemos toalhas o tempo todo pra que ela guardasse as marcas e ganhasse vida.
Essa mesa tem vida.
Testemunha de muitas coisas bonitas.
Que dor, ler isso.
Foi quando decidi que escreveria aqui sobre ela, a mesa. Sobre elas, a mesa e as marcas. Sobre elas, as marcas da mesa e as marcas em mim.
Não sei quem tem mais marcas, se eu ou a mesa.
Desde que essa mesa chegou (na Tijuca), em 2015 - lá se vão, portanto, quase oito anos -, fomos anfitriões de um sem fim de almoços, de um sem fim de jantares, de um sem fim de encontros, sempre regados a muita bebida, a muita comida, a muita música, a muito papo e a muito amor. Sempre a muito amor.
E também a muita emoção.
Eu só me importo com aquilo que me emociona, com aquilo que me comove, com aquilo que me arrepia; e uma mesa asséptica - sem marcas, em suma - é uma mesa sem alma, uma mesa sem vida, simples e pateticamente apenas uma mesa.
O que temos em casa é mais.
AS MARCAS EM MIM E NA MESA
Quem chega aos 54 anos sem marcas? Ninguém.
São muitas as marcas em mim - e eu não as escondo.
Todas as minhas perdas, as mulheres responsáveis por meu arcabouço emocional que já se foram, meus amigos e minhas amigas que já se foram (colecionei amizades com gente muito mais velha, eu sabia [embora temesse] que esse dia iria chegar), o primeiro casamento desfeito (ela está viva mas morreu) depois de um imbróglio de muita sujeira, o segundo interrompido pela morte (ela morreu mas está viva), a chegada do meu filho, a maior das revoluções pela qual temi não passar, o arrependimento mortal de ter fumado o primeiro cigarro e a saudade escamoteada de mais um trago, o som dos meus isqueiros Zippo, as viagens que fiz, as que não fiz, os planos das viagens a fazer, as dores que o futebol me impôs, as derrotas ainda não digeridas, as vitórias redentoras, meus cachorros já mortos, os ídolos com quem convivi, os ídolos que morreram levando um pedaço de mim, a ira santa que tantas vezes me moveu e ainda me move, o instinto que me guia, meus santos, minhas santas, meus orixás, os amigos ainda vivos que nunca mais vi, parentes que jamais senti como família, meus ritos, meus ritos, meus ritos que dão sentido a tudo - e essas marcas que jamais cicatrizarão.
E as marcas na mesa.
Os muitos copos sempre sem descanso, as garrafas de vinho manchando de beleza a madeira e seus sulcos, e a graça infinita dos desenhos do meu filho, seus gizes de cera, seus lápis de cor, seus sucos derramados, as panelas que vêm quente à mesa e que queimam a peroba do campo, e quantos cotovelos já se apoiaram nela como cais?, e quantas mãos já foram postas sobre o tampo?, e essas marcas, essas marcas, essas marcas.
Tenho mais marcas que a mesa.
Tantas delas, forjadas à mesa.
Sábado que vem, 20 de maio, vai acontecer o IX Barreado de Morretes.
O nono.
O primeiro em Copacabana.
Eu sei - tenho certeza - que mais marcas (em mim e na mesa) virão.
E tudo ficará ainda mais bonito: em mim e na mesa.
PAPAI, ME FAZ DORMIR?
Desde que Leonel nasceu que eu coleciono gravações que faço de conversas nossas. Registros. Marcas. Marcas! Tudo fica mais bonito pra mim e ficará mais bonito pra ele com o passar dos anos.
Quase todos os dias, quando vem chegando a hora de dormir, a frase é a mesma:
— Dorme comigo?
Dita ora pra mim, ora pra mãe.
Quando quem vai pôr pra dormir sou eu, quando é ela, a frase é a mesma:
— Dorme comigo?
Pois no dia da Festa do Pijama, quase dez crianças em casa, Leonel teria de dormir na sala, em uma das cabanas armadas pra que a brincadeira ficasse mais autêntica.
Morena estava pondo outra criança pra dormir, era a mim que ele tinha de recorrer.
De dentro da cabaninha, fez sinal com as mãos me chamando.
Cheguei pra perto.
Ele pediu que eu deitasse ao seu lado. E disse:
— Papai, não demora… não precisa ficar aqui… mas… papai, me faz dormir?
Achei aquilo de uma beleza colossal.
O desejo de ficar entre os amigos.
O hábito de sempre dormir com um de nós dois.
E o pedido, compungido, as mãos entre as minhas, pra que eu o fizesse dormir - coisa que ele nunca falara.
APROVEITA PORQUE PASSA RÁPIDO!
Ouvi essa frase - ainda a ouço - sei lá quantas vezes desde que Leonel nasceu.
Não a endosso.
O tempo passa no tempo que o tempo tem de passar.
Não há nada que me importe mais - talvez seja uma das vantagens de ter sido pai já velho, fiz 50 antes dele fazer um ano - do que estar com ele.
Com as mãos dele entre as minhas.
E todas as noites, quando é comigo que ele dorme, quando ele efetivamente dorme, fico de vigília com os olhos deitados sobre seu corpo, afagando seus cabelos, percebendo sua respiração, ele junto a mim e meu coração em festa.
Não canso de repetir: ele é muito mais do que sonhei pra mim.
O IX BARREADO DE MORRETES
Como lhes contei na semana retrasada, trouxe na bagagem, de Curitiba, farinha de Morretes e cachaça de banana.
Estão pra chegar, por esses dias (antes de sábado, claro), os pacotes de bala de banana, de Antonina.
Cozinhar - repito e repiso - é gesto dedicado de amor.
Cozinhar o Barreado de Morretes, que tem um significado fortíssimo pra mim, justo nesse momento de ressignificação de tantas coisas, é gesto maior de amor ainda maior - e pra bom entendedor, meia palavra basta.
Tá tudo pronto, ou quase tudo pronto: os caldeirões estão curados, a chapa de ferro está curada, as carnes estão encomendadas - quase 10 quilos de carne -, os convidados devidamente convidados (seremos, salvo um contratempo, 26 à mesa), cominho, cebola, alho, bacon, as cachaças… somente eu, talvez, não esteja pronto.
Por isso, também por isso, eu sei que ganharei novas marcas.
A mesa também.
E tudo ficará infinitamente mais bonito.
Porque é tudo, e será sempre tudo, por amor.
Até.
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