O ano é 1974. Eu estou no centro do gramado do Maracanã para mais uma chegada do Papai Noel, evento que o jornal O Globo promovia em dezembro e que levava milhares de famílias, milhares de crianças, ao maior do mundo. Meu pai, o legendário Isaac, um dos personagens principais de Tijucanismos (ainda não tem?, compra aqui!), havia pedido a um grande amigo, Péricles de Barros, que conseguisse que seu filho mais velho - eu - estivesse no gramado para receber o Bom Velhinho.
E lá estava eu. Eu, nascido em 69, cinco anos antes, era - até aquele momento - torcedor do Vasco - como ele, meu pai, e como meu avô paterno, Oizer Goldenberg.
Dezenas de atrações antes do ponto máximo da festa e uma delas era uma disputa de pênaltis entre os grandes clubes do Rio. Pra resumir a ópera: o Flamengo ganhou a disputa com Zico e o próprio Zico catou aleatoriamente uma criança no colo pra dar a volta olímpica no campo sob os gritos ensurdecedores de Zico!, e de Mengo! e - pasmem - essa criança era eu.
Daquele dia em diante, convertido pelas mãos d´Ele, tornei-me o rubro-negro que sou até hoje.
MAIO DE 2018
Na manhã do dia 31 de maio de 2018 eu e Morena tomamos o rumo da clínica Perinatal, em Laranjeiras. Leonel estava a caminho e efetivamente chegou a poucos minutos do dia primeiro de junho. Um pouco antes do tempo - na hora certa, percebo hoje.
Diante do quarto que ocupávamos, antes mesmo dele chegar, uma camisa do Flamengo - do Zico - cobria a cegonha de madeira que enfeitava a entrada.
Era eu, em estado de êxtase, 44 anos depois daquela manhã de 1974, no Maracanã, querendo pegar meu filho no colo diante da camisa rubro-negra, da camisa dele, meu ídolo máximo, dando início a um processo intuitivo de transmissão das paixões que me moldaram e que, ainda hoje, me moldam. Era eu querendo que aqueles olhinhos vissem, pela primeira vez, as duas cores juntas - o vermelho e o preto - para que mais à frente eu pudesse dizer a ele (como já tantas vezes disse): são as cores do Flamengo, meu filho. Nós somos Flamengo, meu filho.
Um dia, eu planejava, eu iria contar a ele sobre como me tornei Flamengo.
Sobre o Zico.
Sobre nós.
Eu fazia planos: quando o levaria ao Maracanã pela primeira vez? Quando? Como seria?
Até que veio o ano de 2019.
LIBERTADORES 2019
O Flamengo estava voando em 2019, Leonel ainda não tinha um ano mas eu conversava com ele todas as noites, antes de dormir, sobre o Flamengo, sobre as campanhas, sobre as emoções que viveríamos nós dois.
Lembro como se fosse hoje do dia 23 de novembro: cedinho, muito cedo!, fui sozinho com ele à igreja de São Judas Tadeu, no Cosme Velho - era o dia da final da Libertadores.
Fomos conversando - eu falando sozinho, o piá tinha pouco mais de um ano! - sobre o jogo, sobre a Libertadores de 1981, quando eu tinha 12 anos e vi Zico e companhia destruindo o Liverpool, sobre o jogo daquela noite…
Eu só chorava, quietinho, até que veio a missa.
Depois da missa entrei com ele na fila da benção. Chegou nossa vez. O padre me perguntou seu nome:
— Leonel.
E o pároco, pondo a mão no peito do maragatinho (me vendo, é claro, às lágrimas):
— Leonel, meu filho, que Deus te abençoe e permita ver o Flamengo campeão hoje, ao lado do seu papai.
Eu guinchava, de tanto que chorava.
À noite, fomos bicampeões da Libertadores.
Até que veio o ano de 2020.
A pandemia.
O adiamento de tantos sonhos.
O primeiro Maracanã deixou de ser possível.
Muitas angústias, muito medo, um país sem norte, sem vacina e governado por um genocida que, horror dos horrores, passou a ser adulado pela diretoria do Flamengo - o que julguei abominável.
Deixei de ver os jogos. Perdi o tesão. Cheguei a anunciar, tolo que fui:
— Não quero mais saber de futebol. Chega.
Até que veio o ano de 2022.
CUMPLICIDADE
Domingo passado, pela manhã, a Morena de ressaca e cansada, me disse:
— Não quer ir à feira com Leonel? Tanto tempo que vocês não vão…
Fomos.
Eu sou um homem da rua. Um homem da feira-livre. Mas, é fato, há tempos que eu não ia à feira (nem sozinho e nem com ele).
Pus a camisa do Flamengo nele e em mim (a minha, a mesma que estava na maternidade).
Fizemos a feira juntos.
Uma emoção.
Ele parecia se lembrar de quando era bem pequeno e íamos às compras nas manhãs de domingo. Quis parar nas mesmas barracas, quis escolher as frutas, quis água de coco, quis pastel, estava felicíssimo e - ele sempre foi assim, de manifestar suas emoções - me disse várias vezes que estava muito divertido, que era muito legal passear comigo na feira.
Estávamos saindo da feira e ele me pediu que comprássemos uma flor pra mamãe - um doce de garoto. E emendou, pra minha quase-morte:
— Vamos no bar do tio Felipinho? - o Bar Madrid.
Fomos.
Não havia ninguém quando chegamos.
Ele pediu ao Severo, garçom da casa:
— Um suco de laranja pra mim e um chope pro meu papai - o que ele repete sempre que chega no Caçador.
Rimos, dissemos que lá não tinha chope e ele:
— Cerveja, papai?
Eu quase morrendo.
Do nada puxou assunto de futebol.
Contou que uma coleguinha da escola, Maria Clara, torcia pro Galo.
Perguntou quando Flamengo e Galo jogariam.
E eu prometi a ele que iríamos à Gávea na quarta-feira - dia do jogo - e que veríamos o jogo juntos.
Poucas vezes o vi tão excitado.
Simas chegou, chegou Trajano, chegou Rosana, chegou a mamãe.
Leonel era um menino em estado de graça. Os olhinhos brilhavam e ele me perguntava o tempo todo sobre quando iríamos à Gávea, quando Flamengo e Galo jogariam.
E chegou, finalmente, a quarta-feira.
O PRIMEIRO JOGO À VERA
Eu precisava cumprir o prometido e tomamos logo cedo, na quarta, o caminho da Gávea. Mal chegamos e deu-se o milagre: não mais me importava a sabujice da diretoria do Flamengo e a decisão de me afastar do futebol pra sempre foi subitamente revogada. Meus olhos brilhavam como os olhinhos dele.
Subimos as escadas e eu já era, naquela altura, um fanático empedernido.
Os bustos de Andrade, de Leandro, de Nunes, as cores vermelho e preto em todos os cantos, até que o dedinho apontou:
— Quem é esse, papai? - estávamos diante da estátua do Zico.
Já soluçando, Leonel no meu colo, eu disse:
— É o Zico, filho.
— Nosso rei! - gritou um torcedor que assistia à cena.
— E por que você tá chorando, papai?
Tentei explicar a ele. Eu disse que, com sua idade, aquele homem havia me pegado no colo. Que era um craque. Que fazia muitos gols. Que meu deu muitas alegrias. E ele com o olhar alternando a figura do pai e a figura do Zico.
— Ele existe de verdade?
— Arrã.
— Quero conhecer ele, papai! - e apontando em direção à loja do clube saiu correndo.
Não consegui dizer um único não: comprei sunga, balde de pipoca, camisa (uma igual pra mim), chinelo, uma medalha… e ele atônito vendo a loja cheia, centenas de torcedores, centenas de crianças, aquele clima que antecede os grandes jogos e eu já estava nervoso, tenso, ouvindo ele me pedir pra levá-lo ao jogo à noite…
Expliquei que o jogo era à noite - e prometi levá-lo o quanto antes a um jogo no Maracanã.
O dia foi arrastado.
Ele foi pra escolinha de Flamengo da cabeça aos pés.
E eu prometi que o levaria ao Caçador pra ver a torcida a caminho do estádio. E que veríamos o jogo juntos - com a tia Candinha, ele pediu.
Foi, vocês que me lêem, uma emoção incontida.
Foi o primeiro jogo que Leonel viu do começo ao fim. De pé. Atento, olhos cravados na telinha, cheio de perguntas, e ele vibrou com o primeiro gol, com o segundo gol, eu com o coração na boca, rindo da promessa estúpida que eu fizera (nunca mais Flamengo?!), e ele foi dormir com um sorriso ensolarado no rosto, eu com o coração na boca e determinado a atender a seu pedido.
Agora, nessa próxima quarta-feira, levarei Leonel pra conhecer o Zico - em carne e osso.
Em 2017 meu amigo José Trajano (o mesmo que eu encontrara no último domingo no Bar Madrid) me levou até o Zico com um único objetivo: contar ao Galinho de Quintino o que acontecera comigo em 1974 no Maracanã. Eu, às vésperas de completar 49 anos, tinha de novo 5 anos de idade e mal conseguia contar a história: arremessado ao passado, eu chorava diante daquele homem que, sem jeito, dizia:
— O quê é isso, cara?! Nós somos iguais!
E eu, comovido, redarguia:
— Não somos, não.
Na próxima quarta-feira antevejo o que irá acontecer.
Eu serei o Leonel no colo do Zico.
Serei, de novo, o piá de short branco e camisa branca, não à espera do Papai Noel - mas mergulhado dentro do mundo do próprio filho, misturado às emoções do menino que parece ter sido mordido, graças aos deuses do futebol, pela paixão que move o torcedor do Flamengo que passei a ser há 48 anos. Quando Zico pegar Leonel no colo, graças ao milagre que dobrará o tempo, serei eu no colo do homem que me converteu em 1974.
E no abraço que darei no meu moleque na hora de ir embora, sei que será assim, seremos um só por uns segundos, fusionados em vermelho e preto.
NOI
A newsletter segue com a parceria com a Noi, a mais carioca das cervejas - a despeito de ter nascido em Niterói.
Já lhes fiz a confissão e a repito aproveitando que falei do homem hoje: eu e Simas usamos e abusamos do delivery da Noi durante o dificílimo ano de 2020 e em 2021.
Pois você pode fazer seu pedido de delivery aqui e, na hora de fechar, usar seu cupom de desconto BUTECODOEDU
Usem e abusem que o desconto é de 10% e o chope e a cerveja são demais.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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