Atravessei o Carnaval (que para mim só termina quando termina o desfile da Escola de Samba campeã do Carnaval, no Sábado das Campeãs, na Marquês de Sapucaí) exatamente do modo que planejei - o que já é, convenhamos, um feito e tanto. Tivéssemos condição de ver a vida acontecer conforme nossos planos e tudo seria infinitamente menos doloroso (na mesma medida em que seria infinitamente menos interessante). Não fui - oh, glória! - a nenhum bloco desses de rua. Não estive, portanto, ao lado dos jovens e das jovens que, usando e abusando de jujubas turbinadas com diversos psicotrópicos (ouvi muitos relatos nesse sentido), desviando da turma dos pernas-de-pau (uma das coisas mais patéticas vistas no Carnaval de 2024). Já havia, em anos anteriores, um ou outro, uma ou outra perna-de-pau nos blocos. Esse ano, não. Houve, digamos, uma invasão, uma pandemia, uma metástase que transformou os blocos de rua em espetáculos circenses.
Recebi de Octávio Zanon, que chegou-se a mim há alguns anos com uma mensagem pelo Instagram, em 15 de abril de 2019 - sim, eu sou preciso do início ao fim e fui em busca da informação - um vídeo que atesta o quão inacreditável é a presença desses elementos no carnaval de rua. Eis a mensagem inaugural do piá, hoje na fileira dos amigos que fiz por força das nem sempre insuportáveis redes sociais:
“Me desculpe a intromissão, mas acabo de ler o "De hoje não passa" e por óbvio já me sinto Íntimo de ti, do Leonel e da Morena. Coisas que só a literatura pode fazer. E vindo de dois botequeiros, sabe-se que é só sentar no balcão. E é justamente a questão de se transportar na figura do leitor que me fez te importunar. Passei só pra dizer que te conheci pelo Júlio, que também não conheço.”
Fez menção, o bom Octávio, ao livro que eu acabara de lançar naquele 2019, escrito a quatro mãos, com Júlio Bernardo - o De hoje não passa, publicado pela Mórula e que pode ser comprado aqui.
Voltemos.
Eis o vídeo que me mandou, o Octávio, num dos dias de carnaval.
Uma alegria desmesurada me tomou de assalto diante desse filme de terror. Eu não estava lá. Eu não encontrei-me com nenhum perna-de-pau, não assisti a nenhum bloco ou cordão sendo censurado pela turma identitária que proibe essa ou aquela marchinha composta há sei lá quantas décadas. Tudo o que vi (mesmo tendo ficado de fora, com a graça dos deuses, tenho uma boa quantidade de olheiros e olheiras que me municiaram o tempo todo de farto material que sustentava minhas críticas) me fez lembrar a turma do Pilotis da PUC, a turma da São Salvador, os cheios-de-lêndea, tudo ensaiado segundo as cartilhas (essa turma adora uma cartilha) que aniquilam com o que o Carnaval tem de mais bonito e poderoso: a espontaneidade, a galhardia, a picardia, a busca pelo anonimato e pela alegria infernal dos quatro dias.
Lamentei, apenas - você que me lê, sabe - ter ficado de fora do Cordão da Bola Preta.
Mas era - e é - situação posta.
Estive na Marquês de Sapucaí na sexta-feira, no sábado, no domingo, na segunda-feira e novamente no Sábado das Campeãs.
Passei o domingo ainda mergulhado na energia carnavalesca, bebi à vera - como se não houvesse amanhã - e acordei na segunda-feira já sob a égide da Santa Quaresma, que me conduzirá até o Sábado de Aleluia, no dia 30 de março.
Até lá, sem açúcar, sem álcool, sem carne vermelha e sem farinha branca.
É sempre um imenso sacrifício.
É sempre uma expiação.
É sempre uma imolação que, creiam, purifica.
É sempre, também, essa busca aflita pelo prazer absoluto quarenta dias depois de muito autocontrole, que me redime.
Explodo no Sábado de Aleluia depois da missa.
E renasço mais inteiro no Domingo de Páscoa.
Até lá, contando com a de hoje, serão seis edições da newsletter.
Vocês que agüentem.
EU ME ACUMULANDO DE SAUDADE
Uma amiga muito querida, dia desses, depois de ler a edição da newsletter, mandou-me pelo WhatsApp:
“Dudu, o que está te deixando tão triste?”
Fui rápido (e franco) na resposta:
“Tô triste, não. Só tenho muita saudade de muita coisa. Cada vez mais um homem acumulado de saudade. Acho que é assim mesmo, não é?”
Ela foi direta:
“Tem jeito, não... Eu arrasto tanta coisa atrás de mim… e tenho saudade do futuro… c´est la vie, eu acho.”
E não é?
Lembrei-me, há uns dias - porque sonhei com ele - que em dezembro desse ano de 2024, mais precisamente no dia 06, completar-se-ão 20 anos (eu disse vinte anos!) da morte trágica de um dos maiores amigos que fiz em quase 55 anos de vida: Fábio Machado de Matos (como contei, há quase 20 anos, no blog Buteco do Edu, aqui). Fabinho faria 52 anos em 03 de abril, se vivo estivesse - e de certo modo está, em mim.
A seção Das prateleiras do Buteco do Edu de hoje traz texto que publiquei poucos dias depois da morte de outro amigo que me faz uma falta tão tremenda que nem sei lhes dizer: Aldir, com quem eu falava rigorosamente todos os dias pelo telefone.
Enquanto escrevia - é sempre assim, sou transparente, não consigo fugir disso - recebi telefonema de Rodrigo Gava, fraterno amigo, às 22:53h de ontem (já que você está me lendo hoje, sábado), comunicando a morte de seu pai, Odemir, a quem rendo minhas homenagens daqui desse balcão virtual.
O que é a vida, também, senão essa sucessão de perdas que nos alucinam na medida em que tomamos consciência de seu vulto?
O não-ver nunca mais.
O não-tocar nunca mais.
O não-sentir o cheiro nunca mais.
A finitude, enfim.
Sua crueza.
E faço aqui uma dobra para pontuar um troço que sempre norteou meus sentimentos: sempre tive pânico de me transformar num saudosista, como p.ex. pode denotar a minha fala e a minha repulsa pelos blocos de carnaval de hoje em dia. Nunca quis ser aquele insuportável a repetir no-meu-tempo-era-melhor. Nunca.
O melhor tempo é o tempo de agora, é o tempo vivido.
Mas não consigo deixar de ser esse homem acumulado de saudade.
É nela, me ensinou o Blanc, que tudo o que amei sobrevive.
Volto ao tema.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Divido com vocês, hoje, um texto que escrevi poucos dias depois da morte de um dos homens que mais falta me faz: Aldir Blanc Mendes, uma saudade que não passa. Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, republico A morte e as mortes com Blanc, texto publicado no dia 13 de maio de 2020, aqui.
“Há oito dias que o ar está ainda mais irrespirável no Brasil. Há oito dias cravou-se em mim uma certeza de forma absoluta: meu celular nunca mais vai tocar com o nome Aldir Blanc piscando na tela, o que acontecia diariamente, praticamente todos os dias, desde 1995. Conheci Aldir, de ser apresentado, em 1994. Mas foi a partir do ano seguinte, 1995, que passei a receber ligações diretamente de seu bunker, na rua Garibaldi, a última delas no dia 08 de abril desse inacreditável 2020.
Há oito dias que penso em escrever o que escrevo agora – até mesmo como uma forma de aliviar quem tanto maldisse as condições de sua morte, as condições de sua despedida (que não houve, salvo para a mulher, duas das filhas e uma das netas), a falta de homenagens e que tais. Houve, é verdade, o inesquecível gurufim virtual promovido pela turma do Bip Bip, capitaneado pelo Prata, mas sem o corpo presente, condição de um gurufim de verdade.
E lembrei-me, enquanto pensava exatamente no que escrever, de dois momentos que me marcaram muito, talhados por ele, pensados por ele, o Bardo da Muda.
Estamos em 2002.
Toca meu telefone logo cedo, e é o Aldir:
– Edu, você tem algum amigo médico a quem possa pedir um troço, certo de que ele não te diria não? Tem que ser médico, preciso desse cara todo de branco, ainda hoje pra…
– Serve dentista? Tenho um amigo que jamais me negaria um pedido.
Resumo da ópera.
Pouco antes das cinco da tarde eu e Vidal, meu amigo mais antigo, ele todo de branco, estávamos bebendo Jack Daniel´s com o Aldir em seu escritório. Uma garrafa inteira depois tomamos a direção da Maia Lacerda. Aldir foi, do banco de trás – eu dirigindo, Vidal de carona -, repassando os detalhes com o Vidal.
Tomamos uma cerveja no botequim ao lado do edifício onde viviam dona Helena e Ceceu Rico, pais do Blanc.
Subimos.
Ceceu abriu a porta tenso. Aldir apresentou o médico:
– Doutor Vidal, uma sumidade.
Tomamos o rumo do quarto do casal.
Vidal examinou dona Helena, fez festinha em seu joelho (seguindo à risca o roteiro blanquiano), ergueu-se, pôs as mãos no ombros do Ceceu e disse o texto:
– Dona Helena está ótima, seu Alceu, ótima!
Saímos tendo deixado Ceceu aliviado e dona Helena com a expressão menos carregada, ela que morreria no dia seguinte.
Aldir ligou pra me dar a notícia, me mandando (de novo) agradecer profundamente ao Vidal por conta da última noite da mãe com alguma dose de esperança, que ele atribuía ao prognóstico dado pelo Vidal depois de muito uísque e cerveja.
Estamos em 2015.
Durante o mês de maio fui alguma vezes ao Hospital da Beneficência Portuguesa, na Glória, pra visitar o Ceceu – sempre a pedido do Aldir.
Até que acordei, no dia primeiro de junho, com um telefonema dele:
– Edu? Meu pai morreu.
Eu ainda começava a lamentar quando ele emendou:
– Mas um papa-defunto seqüestrou o corpo.
– Oi?!
– É, tá levando meu pai pra Belford Roxo pra dar banho e o cacete, pra só enterrar amanhã, depois do velório. Nem fodendo, Edu! Quero enterrar meu pai hoje, sem velório, sem missa, sem porra nenhuma!
Inteire-me rapidamente do ocorrido e tratei de traçar um plano pra agilizar o enterro praquele mesmo dia. Peguei com a Mary o telefone da funerária que, autorizada por ela, levava Ceceu pra Belfort Roxo com tudo acertado pro velório e enterro no dia seguinte. Liguei pra funerária, e Aldir me ligando sem parar pra saber de tudo. A funerária ligou pro celular do motorista que levava Ceceu pros preparativos. O motorista me ligou. Acertamos preço pra que ele desse meia-volta e tomasse o rumo do cemitério em Botafogo. Cheguei cedo no São João Batista, onde fica o jazigo da família e obtive sinal verde pro enterro no mesmo dia às quatro da tarde. Fui dando as notícias ao Aldir, que vibrava:
– Eu sabia que tu ia resolver essa porra!
Pouco depois das três chegou o corpo.
E pouco antes das quatro, Mello Menezes, Mary, filhas, netas, Maneca e ele, Aldir – com um sorriso de canto de boca que não esqueço.
Aldir carregava um isopor cheio de gelo e cerveja. Estendeu-me uma, deu-me um puta abraço, deu de se despedir do pai, ali mesmo, na entrada do cemitério, apontava pra mim e repetia:
– Eu sabia que tu ia resolver essa porra!
De 2015 em diante, muitas vezes – muitas vezes! – Aldir fazia a blague:
– Edu, quando eu morrer quero que você providencie meu enterro exatamente como foi o do meu pai.
Eu ria, mandava ele à merda, e dizia que estava ali um pedido impossível de atender. Que ele era Aldir Blanc, que quando chegasse o dia, que haveria de demorar muito, o Rio de Janeiro e o Brasil promoveriam uma roda de samba de escol em cada esquina. Os bares ficariam cheios, os camelôs fariam a festa, as baianas venderiam pastel como nunca dantes e faltaria gato pra tanto churrasco. Falanges e mais falanges baixariam nas porta-bandeiras e o furdunço não teria hora pra acabar. Ríamos sempre, mas ele sempre voltava ao assunto.
– Você se vira, mas nem fodendo que eu quero velório!
Aldir era bruxo.
Letrou a morte da mãe.
Letrou a morte do pai.
Escreveu o roteiro de seu encantamento.
Despediu-se como quis e eu não pude nem fazer um último carinho naquela testa. Filho da puta!”
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
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Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, uma das playlists que montei no Spotify - Rio de Janeiro - que já conta com 122 seguidores.
Ela será permanentemente incrementada (e eu aceito sugestões que podem ser enviadas por e-mail!).
Ela está aqui ou, se preferir, ouça já! - abaixo.
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e, repito, está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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