Há muito que Botafogo deixou de ser um bairro.
Botafogo é, hoje, um camarim.
Explico e digo desde já que não exagero.
Dia desses fui ao Botica, simpático botequim em Botafogo, com minha dileta e queridíssima amiga Marianna Araujo, com dois enes e sem acento.
Não é de hoje que percebo os movimentos que vêm mudando a cara do bairro que foi, durante muitos anos, e ainda hoje é - por alguns mais radicais - chamado de passagem.
Volto ao Botica.
Percebi, à certa altura, que meus olhos e os olhos da Marianna faziam os mesmos movimentos, miravam as mesmas coisas, sem que nada disséssemos um ao outro. Até que soltamos o verbo expondo o alvo de nossos olhares. E gargalhamos de fazer tremer a assistência.
Toda a assistência, homens e mulheres, usava roupas visivelmente compradas em brechós. Não havia ali uma única peça de roupa, um único calçado, comprado numa loja dessas comuns de marca, de grife, nada disso.
A impressão que me dava é que havia cabideiros e cavaletes com roupas penduradas dentro dos banheiros, de onde as pessoas saíam com ares de século passado.
Um rapaz que nos atendia usava uma calça tamanho pelo menos três vezes maior que o adequado. A cintura da calça na altura do peito, um cinto fino que não ornava, uma camisa de bolinha muito antiga, meio amarelada já, um sapato imenso e era batata: quase todas as mulheres que foram chegando rasgavam elogios ao look do rapaz - look era a palavra que elas usavam.
Eu, me sentindo uma múmia, achava tudo aquilo incompreensível.
Havia gente usando um sapato de cada cor, bolsas que eu reconhecia porque minha bisavó usava idênticas nos anos 70, um cheiro de laquê que me fazia tossir e que se misturava à neblina da ganja que escapava de dentro dos banheiros.
Estávamos, definitivamente, num camarim.
E o fenômeno não é - é bom que se diga - restrito ao Botica.
É assim em todo o bairro.
Inclusive em padarias, como é o caso da festejada Slow Bakery (os sócios, segundo soube, tremem quando chamam a casa de padaria).
Mas é uma padaria.
Padaria que é, aproveito o ensejo, verdadeiro teste de paciência para o incauto que vai até lá em busca do sacrossanto pão com manteiga e um cafezinho.
Certa ocasião sentei-me na filial de Botafogo e, depois de 45 minutos esperando por um café (a casa estava praticamente vazia), visivelmente incomodado, fiz um gesto com a mão e aproximou-se o atendente (era, evidentemente era, um estudante e de arquitetura - eu arriscaria):
— Você não entende o conceito slow, gato? - saiu e só voltou 15 minutos depois.
Trazia na mão minha xícara de café sem o café.
Mais 15 minutos e ele veio trazendo uma balança eletrônica, um bule com água fervendo, um outro bule de vidro, um porta filtro, filtro de papel, um moedor de madeira com manivela, me fez cheirar os grão, gemeu sozinho revirando os olhos, ligou a balança, pôs o bule de vidro com o porta filtro, ajeitou o filtro, despejou um pouco d´água, dispensou a água num vaso que tinha uma jibóia numa estante ao meu lado, moeu os grãos, pôs o pó no filtro e deu de pôr a água fazendo coar o café.
Quase 10 minutos depois ele me serviu um café praticamente gelado que me custou pouco mais de 30 reais.
O rapaz vestia um pijama - e isso é tudo o que eu queria lhes dizer.
Um pijama.
Volto ao tema.
VENCE O FLUMINENSE
Aquele ou aquela que me lê e que não tem traumas, que levante a mão.
Tenho os meus e deles falo sem nenhuma cerimônia numa tentativa (quase sempre vã) de afastá-los pra longe.
Já lhes contei mais de uma vez sobre a relação dramática entre meu avô materno (Milton) e o Maracanã.
Aqui, nesse vídeo, gravado para o canal Doze Futebol, falo sobre isso.
Percebam que foi no trágico Flamengo e Fluminense de 1995, quando perdemos o título do Carioca no ano do nosso centenário (o Maracanã em festa, numa festa que jamais esqueci), que deu-se o ponto de inflexão que me uniu ao drama do meu avô - e graças aos deuses escapei da sentença que o afastou pra sempre do Maior do Mundo.
Sobre o tema, também escrevi aqui:
“— Cuidado com o Maracanã! Cuidado!
Meu avô Milton, pai de mamãe, com quem jamais troquei mais do que meia dúzia de palavras, me dizia essa frase com uma freqüência inacreditável.
Nos meus delírios, ele a disse quando me pôs no colo pela primeira vez, em abril de 1969.
O que se passa é que vovô foi ao Maracanã pela primeira vez no dia 16 de julho de 1950, pouco mais de 18 anos antes de eu chegar ao mundo.
E nunca mais voltou.
Ferido, traumatizado e horrorizado pela derrota do Brasil para o Uruguai na final da Copa de 50, vovô ficou sumido por 3 ou 4 dias (não me lembro). Contava-se, na família, e estão todos definitivamente mortos, que vovô Milton foi encontrado embriagado num botequim no Engenho de Dentro, ainda chorando.
Teria sido Sílvio, meu tio Sílvio, seu cunhado, a encontrá-lo.
Nunca mais pôs os pés no Mário Filho.
— Juro! Juro nunca mais pôr os pés no estádio!
E de fato vovô é esse personagem: foi ao Maracanã apenas uma vez, cumpriu seu juramento.
No dia do seu enterro, bem me lembro, enquanto descia o esquife, alguém disse (virei-me pra ver quem era mas não consegui saber):
— Era um íntegro. Cumpriu sua palavra e foi ao Maracanã apenas uma vez.
O fato é que aquela sentença - Cuidado com o Maracanã! - pesava em mim como uma bigorna imaginária.
E eu, que podia tecer outra relação com o futebol, mais saudável, passei a ir ao Maracanã tomado por uma certeza absoluta e definitiva: um dia chegaria minha vez de maldizer o estádio, de sumir por 3 ou 4 dias, de jurar nunca mais pôr os pés no mesmo Maracanã.
Confesso - e faço aqui a confissão pública pela primeira vez - que somente em uma ocasião tal barbaridade me passou concretamente pela cabeça: foi em 25 de junho de 1995, mais de 110.000 torcedores naquele Fla x Flu dramático (o que explica o sentimento indizível que sinto pelo tricolor das Laranjeiras - evito falar sobre isso com Leonel a fim de não envenená-lo).
Fui posto pra fora do estádio por uns policiais que faziam a última vistoria: eu estava acuado, sob o anel da arquibancada, decidindo se aquele seria meu último jogo ou não (repetindo a história do meu avô). Ainda bem que venci o medo e o monstro que meu avô me apresentara desde a mais tenra infância (tranqüilíssima, como quem me lê sabe).”
Fato é que estou, desde a eliminação do Flamengo da Libertadores 2023, torcendo contra o Fluminense de uma maneira que anda consumindo minha saúde É, repito, indizível e impublicável o que sinto pelo tricolor das Laranjeiras.
Porque houve, antes do gol de barriga, coisa de 10 anos antes, tinha eu meus 15, 16 anos, Washington e Assis, e ali nascera, com esses dois, esse ódio, essa raiva, essa ira santa e insana que fez com que eu, por exemplo, me despencasse numa quarta-feira à noite para ver Fluminense e Internacional no Maracanã - infiltrado na torcida visitante.
Que fez com que eu assistisse ao jogo de volta, Internacional e Fluminense, debaixo das cobertas, ar-condicionado no máximo, torcendo contra de novo - à toa.
Eis que estamos agora às vésperas da final da Libertadores.
Jogo único.
E no Maracanã.
Desde já, sem medo do eventual fiasco da minha torcida, sou Boca Juniors contra eles.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, e já que estou a falar de futebol, o texto Oração de um brasileiro, publicado em 04 de dezembro de 2009, antevéspera da última rodada do Campeonato Brasileiro. Dani estava com câncer. Eu vivia um tormento particular por conta disso. E aquele jogo poderia ser - e foi - um sopro de alegria em meio a tanta dor.
“Salve, São Sebastião do Rio de Janeiro, Oxóssi para o povo carioca, de cujo peito arrancamos, dia após dia, nós cariocas que amamos a terra em que nascemos, as flechas que te ferem e te fazem sangrar e sofrer. É que meu peito, padroeiro, anda apertado demais e bem sabes as razões. Tenho tentado manter o humor em alta, fazendo graça das coisas mais sérias, como bem me disse, dia desses, meu irmão Fernando Szegeri, filho de Xangô, sincretizado também como São Judas Tadeu, padroeiro do meu Flamengo, numa tentativa – vá lá – desesperada de enfrentar os revezes que me tem chegado e de me sentir um vencedor. É que domingo, padroeiro, o Flamengo disputa a chance de sagrar-se Campeão Brasileiro de 2009, o que não acontece desde 1992, quando eu tinha – e como passa, o tempo… – 23 anos de idade. Campeão cinco vezes, o Flamengo conquistou seu primeiro Campeonato Brasileiro em 1980, eu tinha 11 anos de idade, e eu estava lá, menino de calças curtas, no gigante de concreto, vendo o artilheiro das decisões, o Nunes, estufar as redes do adversário a poucos minutos do final da partida. Quando eu lembro de mim mesmo, aos 11 anos de idade, lembro-me do Henrique, hoje com 17 anos, meu sobrinho, meu afilhado, que nunca viu o Flamengo conquistar um Campeonato Brasileiro e que estará, domingo, ao meu lado, no mesmíssimo estádio, 29 anos depois daquele Flamengo e Atlético Mineiro. Penso também na Helena, com pouco mais de um ano de idade, filha do meu compadre Leo Boechat, no Daniel, filho recém-nascido de Diego Moreira, ele filho de Zambi e de Oxalá, afilhado de Pedra Preta da Guia e Jurema, cambono de Maria Fagundes, protegido e guiado por Caboclo Arruda e amigo de seu Zé Pilintra, e penso também no Felipe, filho de minha amada amiga Betinha e de meu do-peito, Flavinho, que completará um mês de vida na segunda-feira, dia 07 de dezembro, um dia depois da decisão de domingo. Eu não sei quem foi disse, viu, meu padroeiro?, que o futebol não é uma questão de vida ou morte, é muito mais importante que isso. É evidente que isso é só mais um desses exageros que temperam a vida, é só mais uma dessas verdades inexplicáveis que só ao coração e à alma interessam, mas o fato é que esse carioca que te fala em tom de prece (e todas as preces são pagãs e necessariamente pagãs quando envolvem o futebol, que a gente tem dores maiores carecendo de oração e fé) está assim, como direi?, profundamente emocionado com a iminência do sexto título do Flamengo, o primeiro das três crianças a que me referi. No dia 27 de setembro desse 2009 que está quase acabando eu preparei, depois da idéia do meu mano Luiz Antônio Simas, filho da Ogum, como eu, um caruru pras crianças, pros erês, e Daniel e Felipe ainda estavam na barriga de suas mães, da Lucimar e da Betinha. E eu queria, padroeiro, ter braços enormes para tê-los no colo no domingo, sentado nas arquibancadas de concreto do Maracanã para que eles pudessem ver, com seus olhinhos curiosos e assustados, o Flamengo disputar o título – e conquistá-lo. Para que eles pudessem, depois, anos depois, já sozinhos e com as próprias pernas, subindo a rampa do maior do mundo (será sempre o maior do mundo!), bater no peito e dizer “eu estava aqui em 2009” – ah, esses orgulhos que o torcedor tem… Amanhã eu vou levar o Henrique à igreja de São Judas Tadeu, no Cosme Velho. Amanhã, posso apostar, o padre rezará a missa com a camisa do Flamengo sob a batina e diante do escudo do rubro-negro, encravado na parede da catedral, atrás da pia de batismo. Eu acho que eu queria, também, batizar amanhã o Daniel e o Felipe naquela igreja. Eu não sou católico, sabes disso também. Mas amanhã eu quero ir lá. Eu sou mesmo é brasileiro, e minha religião é o Brasil. Quem não compreende o Brasil não entende a religião Brasil – e o Brasil, também não lembro quem disse isso, não é para principiantes. E o Brasil, padroeiro, sei que também sabes disso, há de amanhecer infinitamente mais feliz se o Flamengo sagrar-se campeão no domingo. Se o domingo for do Mengo, de norte a sul do Brasil, nas coberturas triplex e nos barracos das favelas, nos gabinetes dos Ministérios e nos presídios, nos hospitais, nos manicômios, na cidade e no campo, no litoral e na serra, nos mais longínquos rincões dessa terra, o povo há de ser mais feliz, ainda que por alguns dias – as mágicas do futebol. E eu, padroeiro, estou precisando demais viver isso, sabe? Rogai por nós, rubro-negros, agora e na hora em que devemos ser fortes.
Até.”
É CÍRIO DE NOVO
Amanhã, domingo, 08 de outubro, o segundo domingo de outubro, é o dia do Círio de Nazaré, a maior festa religiosa do Brasil e uma das maiores do mundo.
Eu não lembro, franca e sinceramente não lembro, quando percebi que eu era devoto - na mais comum das acepções da palavra - de Nossa Senhora de Nazaré, a quem chamo desde priscas eras de Nazinha.
Já fiz, confesso, os mais mirabolantes exercícios de memória que talvez pudessem me trazer com clareza à tona o porquê dessa devoção, desse fascínio, desse bem-querer imenso que tenho pela Rainha da Amazônia.
E não custa repetir pra que vocês acompanhem um pouco esse exercício: nasci filho de pais espíritas, uma avó espírita, um avô católico, um avô judeu, uma avó judia que freqüentava centro espírita escondida da família, uma bisavó (a matriarca) católica apostólica romana que vivia com uma Bíblia debaixo do braço, vendo meu pai receber o caboclo Tupinambá na sala de casa. Uma confusão comovente.
Fato concreto é que um dia dei de cara com a imagem de Nazaré e com cenas (sempre impressionantes) da festa do Círio. Fui, daquele momento em diante, disso com nitidez me lembro, um emocionado no exílio.
E desde então é assim: amanheço no Santuário Basílica da Igreja de São Sebastião dos Frades Capuchinhos, na Tijuca, levo comigo a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, e ali passo o dia em meio às barraquinhas de comida e de bebida armadas desde a madrugada pela comunidade paraense no Rio de Janeiro.
Às vezes a coisa ganha cores de improviso e acontece um almoço em casa, como esse (filme abaixo), em 2021, em que Luiz Antônio Simas chegou cantando o samba da Estácio de Sá em homenagem ao Círio de Nazaré.
E não há, mesmo, e mesmo depois de tantos anos, explicação pra essa emoção que me invade quando vem chegando o Círio. Railídia, minha comadre, mãe da minha primeira afilhada, a mais velha, Iara, é muito responsável pela coisa ter tomado a proporção que tomou. É a primeira pessoa com quem falo quando chego à festa. E é tudo bonito demais. É muita gente. É muito povo. É muita fé. É muita comida, é muita bebida, são muitos cheiros, muitas cores, e com o passar dos anos, atravessando o tempo, Nazaré me viu fazer promessa pra que Leonel nascesse, e com saúde.
Há seis anos exatos, 07 de outubro de 2017, também véspera do Círio, a Morena recebeu implantado o embrião do nosso piá. Fomos juntos ao Círio, no dia seguinte (só saberíamos do êxito no dia 14) e, ajoelhado diante da sacrossanta imagem de Nazinha, fiz minha promessa, ofereci o sonho de ter-um-filho a ela, consagrei o piazinho, dentro de mim, à virgem mãe amorosa, fonte de amor e de fé.
Nazaré já está à mesa da sala de casa, como em todos os anos.
Amanhã é dia.
É Círio de novo.
Feliz Círio pra todo mundo!
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
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De umas semanas pra cá, como venho dizendo, um troço me chamou à atenção.
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A casa agradece.
UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, a playlist que montei, há umas semanas, no Spotify.
Nas últimas edições eu já indiquei a playlist a vocês, que me lêem.
Mas eu a incrementei.
Ei-la; ela está aqui ou, se preferir, ouça já!
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e traz as canções que mais gosto e que têm a cidade do Rio de Janeiro como referência - e ela está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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