Vamos a um rápido arremesso em direção ao passado. Vamos, mais precisamente, para o dia 26 de maio de 2012, um sábado.
Eu estou em Curitiba desde a véspera, estou namorando a Morena desde fevereiro, é de manhã, ainda, e estamos no carro indo em direção a Ponta Grossa, região dos Campos Gerais, a pouco mais de uma hora da capital paranaense. Estou no banco do carona, ela dirigindo, e ela vai me contando sobre sua mãe, a quem estou indo conhecer. Até que ela me diz à certa altura:
— Acho que antes de irmos pra minha mãe vou te levar num lugar que você vai amar.
A frase, dita hoje, me comove ainda mais do que me comoveu no dia. No dia me comoveu porque havia implícito um sinal explícito de cuidado e de vontade de me fazer feliz. Relembrada hoje, para além disso, fica evidente a certeza de que ela já sabia o que eu trazia dentro de mim.
Atravessamos o portal de entrada de Ponta Grossa e ela foi dirigindo até que estacionou. Saltamos (e eu não percebia nada). Atravessamos a rua (de mãos dadas, ela me conduzia) e chegamos a uma porta sobre a qual havia uma placa: estávamos na Choperia Tito.
Eu via nos olhos da Morena a alegria de quem percebia que tinha acertado na escolha. Eu estava em êxtase - e não conseguia sequer disfarçar meu assombro diante do portento que é a Choperia Tito (que eu chamo, como muita gente chama, de Bar do Tito). Passava um pouco do meio-dia quando chegamos ao bar. E que bar!
Guardadas, evidentemente, as devidas proporções, o mesmo encantamento que me causaram os olhos dela tomou conta de minh´alma boêmia assim que pisamos o piso sagrado – sagrado! – da Choperia Tito. Prestem atenção que vou à descrição do cenário: portas de ferro resguardam a porta de vidro, emoldurada por madeira pintada de verde, que separa a calçada do interior do bar. Um balcão extenso, fórmica vermelha das bem antigas, prateleiras todas de madeira com garrafas de todos os tipos, de todos os gêneros de bebida, uma chopeira quase secular, um espaço bem pequeno para os freqüentadores diante da extensão do balcão, fotos de priscas eras da choperia, uma pequena estufa, um baleiro, uma ou duas mesas no fundo do salão, um relógio-cuco , e eu estava em casa quando ancoramos ao lado da estufa, em frente ao Hudson, neto do Tito, dono do lugar que valoriza Ponta Grossa há mais de 80 anos!
Hudson no balcão, Anderson na chopeira. Sábado era dia de folga do seu Tito (hoje falecido), e fomos recebidos pelas duas belas figuras que honram a tradição dos melhores donos de botequim.
Eu – confesso – mal pude acreditar quando pedimos os dois primeiros chopes (foram dez, e mais as doses de Jägermeister e as de cachaça pra acompanhar os bolinhos de carne fabulosos que pedimos) e vieram pra nós dois Brahma muitíssimo bem tirados (com um zelo e um cuidado que não se vê em qualquer canto) e servidos em tulipas de cristal.
O Anderson – passei a acompanhar o trabalho do cara… – tira cada chope como se produzisse uma peça única. Melhor: o Anderson esculpe os chopes, é um artesão. Não há pressa em seus gestos, como não há pressa em nenhum objeto exposto na choperia. Não há truque, não há mentira, não há qualquer artifício: estávamos diante de um mestre na arte de servir chope, diante de um templo - mais que um bar.
Daí eu fui ficando louco – para delírio da Morena, felicíssima com o evidente acerto de sua escolha. Dentro do balcão, uma escrivaninha e ao lado um telefone preto, com fio. Garrafas de diversas bebidas, muitas sequer estão à venda, são da coleção do seu Tito. O Hudson deu de, com justificado orgulho, contar algumas histórias passadas ali, uma choperia que mantém viva a chama de um Brasil que está morrendo aos poucos.
O almoço foi bem mais tarde do que o planejado. E eu voltei muitas vezes - muitas vezes! - ao Bar do Tito. Costumava brincar: não havia, no mundo, genro mais preocupado em visitar a sogra do que eu.
NUNCA MAIS DEIXEI DE IR AO TITO
Vai daí que o namoro seguiu pela ponte aérea Rio x Curitiba x Rio durante todo o ano de 2012. Eu ia regularmente, de quinze em quinze dias, às sextas-feiras pra Curitiba, chegava cedo, no primeiro vôo, ia até o apartamento da rua Schiller, tomávamos café-da-manhã juntos, eu levava Morena pro trabalho e… e… e? Tomava a estrada em direção a Ponta Grossa (isso quando não íamos passar o final de semana na casa de sua mãe) e passava o dia de papo com os netos do seu Tito, que tive a honra de conhecer.
Seu Tito, já velhinho, nunca deixou de ir ao bar. Às 11 em ponto - os netos brincavam mas era verdade, mais de uma vez testemunhei a cena - ele entrava no bar, vindo de casa, e lá ficava até o começo da tarde. Ficava no balcão, lavava as taças, os pratos, os talheres, ficávamos de papo - ele adorava prosear.
No final da tarde eu tomava o rumo de Curitiba já pensando na próxima oportunidade de estar lá.
Meus amigos, injustamente alegando que eu carregava nas tintas do hiperbolismo, não acreditavam quando eu dizia (o que mantenho até hoje) que aquilo era o melhor bar e o melhor chope que eu jamais conhecera.
Até que um dia - eu amo a coleção de amigos malucos que eu tenho - o Fábio Seixas decidiu tirar aquilo a limpo.
O RIO NA CHOPERIA TITO
No dia 25 de julho de 2014, uma sexta-feira, eu e mais um bando de malucos chegamos a Curitiba pra passarmos a noite, apenas, já que no sábado pela manhã uma van, previamente fretada, nos levaria até Ponta Grossa para, às 08h em ponto, começarmos o dia já no interior do Tito.
Vamos voltar até março de 2014.
Fomos jantar na Casa do Sardo, em São Cristóvão, eu, Morena e Fábio Seixas. Papo vai papo vem, entrada, vinho, o prato, e o Fábio diz:
— E quando vamos ao Tito?
Em 30 de março de 2014 disparei um e-mail pra alguns amigos. Eis o texto, na íntegra:
“Camaradas: sou um prolixo contumaz mas vou me esforçar para ser o mais sucinto possível.
Nesta semana que passou jantei com o ilustre Fábio Seixas que, à certa altura, soltou mais ou menos o seguinte:
´Temos que armar uma caravana pro Bar do Tito, aquele em Ponta Grossa... a vida é feita dessas pequenas coisas!´
Como concordo em gênero, número e grau alcoólico, estamos dando tratos à bola (é evidente que eu, a Morena e o Fabinho já estamos confirmados!) para ver a caravana virar realidade.
Um troço comovente: o Tito não abre domingo e, aos sábados, fecha às 14h. Num papo com o neto do seu Tito, que toca o bar ao lado do irmão e do avô, ele disse (troço comovente!) que não podem atender muita gente porque não são um ponto turístico e não podem perder a qualidade do atendimento (aquilo não é um bar, é quase uma igreja), por isso me pediram para sermos no máximo oito! E disse que, quando formos, abrindo uma exceção absoluta, fecham às 16h no sábado (duvido... eles abaixam o portão de ferro e seguimos lá).
Estou mandando este e-mail com cópia oculta para evitar aquelas respostas em cadeia interminável. Mas estão recebendo este primeiro e-convocação apenas os que, n´algum momento, manifestaram o desejo de ir ao Tito alguma vez na vida: o Fabinho, o Guga Villani, o Felipinho, o Kadu, o Leo Boechat, o Bruno Ribeiro e o Dudu Sarmento.
A idéia é que isso aconteça em julho, depois da Copa. E a idéia é irmos na sexta à noite, voltando no domingo. Tudo o mais (hotel, van pra irmos de Curitiba pra Ponta Grossa etc.) vemos depois.
Quem aí se interessa?
Forte abraço,
Edu”
No dia 31 de março as passagens estavam compradas pra mim, pra Morena, pra Fábio Seixas e pra Felipinho. Em novo e-mail eu comunicava que estávamos indo de GOL no dia 25/07, GOL, vôo 1450 e voltando em 27/07, também de GOL, vôo 1367. “Está saindo, com taxas!, a R$ 150,00 ida e volta.”, eu avisei.
Pouco depois, Leo Boechat confirmou presença mas em outro vôo que chegaria mais cedo em Curitiba. Ele, que hoje está morando justamente em Curitiba, fez pouso na casa do Gus, amigo querido (os dois não se conheciam) que nos acompanharia no dia seguinte. Kelly e Iza, duas queridíssimas amigas da Morena, completavam o time.
Na foto abaixo estão: Felipinho à esquerda, junto ao balcão. Flávia Piana (a Morena), eu e Gus lá atrás. Kelly, Fábio Seixas e Leo Boechat (de boina). Anderson, seu Tito e Iza. E Hudson.
Idéia também do Fábio (ele mandou fazer orçamento, pagou, foi buscar a placa…) foi levarmos uma placa para registro da nossa viagem.
Está até hoje nas paredes do bar.
Como bem disse o Fábio Seixas, dando início à maluquice que se concretizou naquele 26 de julho de 2014, “a vida só tem graça quando fazemos coisas que não faríamos se não movidos pela paixão desenfreada, pelos arroubos, pelas maluquices…”.
E tem um detalhe hilariante nessa história. Um amigo de Ponta Grossa, que sabia da nossa viagem, me ligou aflito no dia 24, véspera da nossa ida. Ele me contou que 26 de julho é feriado municipal em Ponta Grossa, dia da padroeira da cidade, feriado respeitadíssimo pela sociedade conservadora local e fez o vaticínio:
— Duvido que o Tito abra. Ninguém avisou a vocês?
Liguei pro Anderson imediatamente. E ele, craque:
— Edu, é verdade. É feriado mesmo. E sério. Nada abre. Esqueci quando falamos disso lá em março. Mas vou honrar minha palavra com vocês. Manterei as portas fechadas com vocês do lado de dentro.
E assim foi feito.
MINHA ÚLTIMA VISITA AO TITO
Em 20 de dezembro de 2019, estávamos em Curitiba pra passar o Natal com a família, voltei à Ponta Grossa (com a sogra já morando em Morretes, no litoral paranaense). Atendendo ao convite de um outro maluco (bem à minha moda), Felipe Soares, professor, a quem eu só conhecia graças às redes (Twitter especificamente), topei filmar um episódio da série Botecos do Edu na Choperia Tito. Claro, fazia todo sentido do mundo! Um dos três melhores bares da minha vida, de longe o melhor chope que já bebi, como eu ainda não tinha feito um filme lá?
Pois foi o Felipe que teve a idéia - que topei de pronto.
Fez mais, o Felipe.
Despencou-se de Ponta Grossa pra me buscar em Curitiba na manhã do dia 20. Comigo, Luasses - um amigo de Curitiba. E com Felipe, também no carro, Guto Rota.
Convidei também Ismael de Freitas pra estar conosco. O Ismael foi um dos idealizadores de um curta-metragem sobre a Choperia Tito (belíssimo, diga-se de passagem). O filme pode ser visto aqui (parte 1) e aqui (parte 2).
E foi emocionante demais quando cheguei - há anos eu não pisava lá.
Tudo no mesmo lugar, o tempo como se parado à minha espera, os mesmos copos, a mesma excelência do chope, as garrafas, o mobiliário, tudo como da primeira vez.
A foto seguinte, muito parecida com a primeira foto desse texto, permite um jogo de sete erros (o mesmo fundo aparece atrás do seu Tito na terceira fotografia).
Como se aquilo fosse um altar.
Aquilo é um altar.
Pois foi inesquecível a tarde que lá passei com o Felipe, com o Ismael, com o Guto, com a Juliana, companheira do Felipe, com o Luasses.
Foi bom demais rever Anderson e Hudson, netos do legendário Tufi Cury (1925-2018), o seu Tito, e conversando com eles foi que me lembrei: aquela era minha primeira ida à choperia depois da morte de seu avô.
Abaixo, um registro meu com ele.
E o filme, idéia desse maluco - que aqui agora, publicamente, homenageio - que é o Felipe, coisa fina feito goiabada-cascão.
Eu disse que estava tudo no mesmo lugar, o tempo como se parado à minha espera, os mesmos copos, a mesma excelência do chope, as garrafas, o mobiliário, tudo como da primeira vez. E o seu Tito estava lá, meninos e meninas. Eu vi.
Até.
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