Corria o ano de 2009 quando, curiosamente no dia do meu aniversário de 40 anos, 27 de abril, recebi um e-mail assinado por um tal de Daniel Ludwich, leitor do blog que eu mantinha nas redes - e eu havia recebido, há poucos dias, a notícia de que minha mulher (a que morreu em 2011, mas que está viva) estava com câncer.
Taí a íntegra do e-mail:
“Fala, Edu!
Leio o seu blog já faz um tempo, embora nunca tenha comentado. Cheguei atraído pelas entrevistas com o Fausto e o Aldir, pra depois me perder em meio aos passeios pela Tijuca. Coisa fina.
Sou de Florianópolis e estou indo para o Rio com a minha namorada na quinta, passar o feriadão. Como nem tudo é festa, tenho uma crônica-reportagem para entregar logo na semana seguinte (sou metade estudante de jornalismo, metade bancário). Pra encurtar a conversa, pensei em matar dois coelhos numa e fazer o trabalho ao mesmo tempo em que conheço a Vila dos sambas de Noel e das crônicas do Aldir.
Como o meu conhecimento do Rio é puramente músico-literário, escrevo para pedir socorro. Quero escrever o perfil de um buteco. O problema é que eu ainda não sei qual. O primeiro que me veio à cabeça foi o Momo, que o Aldir garante ser o melhor PF da cidade. Mas também tem o Estephanio's, que eu conheci daquele vídeo do Aldir cantando molambo. Genial.
Recorro, então, ao especialista. Qual buteco você indica para que seja o meu perfilado? Você poderia me passar o contato dos proprietários para eu marcar uma entrevista? E, ousadia das ousadias, você poderia me dar uma entrevista na qualidade de entendedor máximo do butecal tijucano? Eu sei que no meio de um feriadão é meio foda, mas qualquer coisa pode ser por e-mail mesmo.
Ah... última coisa! O meio-dia de sábado é um bom horário para a investigação butecal? Qual serio o dia/hora mais indicado?
Abraço!
Daniel”
Esse e-mail deu início a uma colossal troca de e-mails nossos (renderia, eu arrisco dizer, um livro). Seria modorrento demais se eu os reproduzisse todos aqui. Deixo vocês, meus poucos mas fiéis leitores, com o último e-mail que Daniel me mandou, o primeiro depois do fim da viagem (com comentários meus em negrito, feitos hoje, 14 anos depois).
“Grande, Edu!
Não temos palavras para agradecer tudo o que você fez pela gente. A preocupação, o livro, as dicas valiosas... Faltou tempo pra tudo, é verdade, mas com certeza voltaremos mais vezes – quem sabe até de forma definitiva. (Daniel e Camila, que se casaram em 2011, agora moram no Rio, em Copacabana!) Afinal, vimos 26 árvores de abricó-da-praia no Rio, 23 só em Ipanema. Dada a nossa relação de afeto com os abricózeiros (que as minhas tias-avós chamam de abiricózeiros), isso só pode ser um sinal. Falando em sinal, qual seria a dica do Waldomiro pra quem vê tantos abricózeiros? Tem que ser algum bicho com galho. (Waldomiro é personagem de meu livro Meu lar é o botequim)
O Bar do Chico é demais. Ficamos no balcão praticamente das 10h às 14h, mas a vontade era a de ficar muito mais. Caipivodka de Kiwi, queijinho pra Camila, meia carne de Sol à Cesar Tartaglia pra mim. Depois o Chicão ainda insistiu pra que eu experimentasse a carne de sol fatiada à moda da casa e me serviu umas lascas fritas na hora - Cesar Tartaglia que me perdoe, mas aquela carne de sol pré-assada na churrasqueira e frita com cebola e margarina é incomparável. Pra finalizar, uma amostrinha de batata calabresa. Isso e algumas ampolas de Antarctica mofada. Sem falar no Chicão e no Antonio, figuraças. É coisa do sujeito começar a semana pedindo transferência do trabalho e avisando a família que já começou a procurar apartamento na Tijuca. (Há anos não vou mais ao Bar do Chico, nem o recomendo mais. Chico, um reacionário, comemorou - isso mesmo, comemorou! - o assassinato de Marielle Franco)
Porra, Edu, o teu livro é genial. No começo eu fiquei meio desconfiado com a rasgação de seda do Aldir e do Fausto, dois sujeitos generosíssimos com os amigos. (Aldir escreveu o prefácio do livro e Fausto Wolff, a quarta capa) Ainda mais porque eu não tenho muita paciência com cronistas vivos – salvo algumas exceções, todas com mais de 60 anos. O Fausto disse tudo: “um livro excelente, no sentido de ultrapassar as melhores expectativas”. Algumas crônicas estão à altura dos melhores momentos do Aldir e seus personagens clássicos de Rua dos Artistas e arredores. Estava relendo o Léo Montenegro e acho até que dá pra falar que vocês três formam um gênero próprio, a crônica da Zona Norte – não sei se a classificação já foi usada, mas rende TCC, dissertação, tese e o caralho. E não precisa nem dizer crônica carioca. Crônica paulista, por exemplo, é uma impossibilidade conceitual. E as exceções só confirmam a regra. Na tão discutida definição de crônica deveria constar que se trata de um gênero genuinamente carioca, e ai de quem ousasse argumentar que Paulinho Mendes Campos era mineiro ou que Rubem Braga era capixaba. São pessoas que não entendem nada sobre o que é crônica – e sabem ainda menos sobre o que é ser carioca.
Mas voltemos às crônicas da Zona Norte. As suas crônicas têm uma coisa incrível, que é óbvia e cada vez mais rara: você olha para fora, você tem interesse pelo outro. O seu texto tem a sua visão de mundo, mas é uma visão que olha além do seu umbigo. Nos últimos tempos as crônicas se tornaram cada vez mais “reflexivas” pela pura impossibilidade de enxergar algo de interessante nos outros. Criou-se um modelo de crônica – que, aliás, o Mario Prata cumpre muito bem e o Ruy Castro ainda não conseguiu acertar – em que o que importa são as opiniões pertinentes do autor e o modo como ele as organiza de forma engraçadinha e contextualizada. As suas crônicas estão no terreno daquelas crônicas do Stanislaw e do Verissimo, em que a primeira coisa que você quer fazer depois de ler é subir no banquinho do Osório e ler o texto para o maior número de pessoas possível. (Osório é outro personagem de Meu lar é o botequim)
Vou parando por aqui porque o cansaço bateu forte e amanhã volta a rotina aula-trabalho-e-tudo-pra-ontem.
Ah... Uma coisa que eu sempre quis saber das crônicas do Aldir e que agora pergunto sobre as suas: os personagens e fatos são verídicos? Como é que funciona essa mistura de ficção e realidade?
Última coisa: qual o seu endereço? Eu e a Camila queremos mandar umas lembranças florianópolitanas para os nossos amigos tijucanos.
Última coisa de verdade: fiz uma seleção das quase 500 fotos. Vão anexas.
Abraços!!”
Dei de reler os e-mails trocados há 14 anos e deu-se em mim um violento e intenso arremesso em direção ao passado.
Mais que isso, algumas certezas, algumas constatações…
Minha resposta ao Daniel talvez tenha sido uma das primeiras crônicas que eu tenha escrito sobre bares, botequins, restaurantes, suas nuanças, seguramente foi o primeiro guia (embora eu os deteste!) que escrevi, com paciência, para alguém que eu sequer conhecia.
Há uma beleza, nisso.
Camila é quem faz os bolos das festas aqui em casa desde há muito (se eu fosse você… iria atrás dela, aqui).
Daniel e Camila, de quem agora eu sou vizinho (eles estão em Copacabana antes de mim), são muito queridos. Muito.
Os conheço (ou os reconheço) desde aquele tal e-mail de 2009.
São um casal desses de cinema - você, que os vê de fora, não os considera um sem o outro.
Como eu sempre achei que fosse meu caso.
Da primeira mulher, que está viva mas morreu, me separei.
Da segunda mulher, que morreu mas está viva, me separei.
Da terceira - e última - mulher, também me separei.
Essa, vivíssima, não morrerá jamais.
Camila ainda será partícipe de todas as festas, até o final.
Daniel, que sempre a ajuda nos detalhes, na decoração dos bolos, nas entregas, também.
E isso me comove brutalmente.
Conversando com meu dileto amigo Guilherme Boisson, a idéia veio à mesa (e à tona).
Essas crônicas que falam sobre os bares e botequins (e restaurantes) aos quais eu não resisto poderiam nortear as publicações da minha conta no Instagram.
Comecei há poucos dias a atender à sugestão do piá.
Abaixo, a caixa-registradora do Bar Amendoeira - tesouro que fica numa encruzilhada em Maria da Graça.
Não é de hoje que eu dou as caras na chamada grande rede.
E sempre tendo bares e botequins como foco.
O blog, que mantive de março de 2004 (há mais de 19 anos!) a dezembro de 2020, está aqui.
Incentivado por uns cineastas malucos, criei um canal no YouTube - aqui.
E agora essa conta no Instagram que pretendo transformar numa memorabilia de tudo o que já vivi na matéria.
Fiquem na minha cola lá.
Indiquem.
Aqui, ó.
LIVROS
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
DONA SÁ
Íris Pureza Miranda.
Eu a chamava de Dona Sá, era mãe da Dani (abaixo, as duas em Cabo Frio).
Foi oló no dia 21 de junho de 2023, quase 12 anos depois da filha (que morreu, mas está viva).
Eu não supunha que sentiria tanto, sua partida.
Tudo que sempre publiquei nas ditas minhas redes sociais, foi confessional.
Deixo aqui, portanto, quando eu morrer tudo há de ficar, minha homenagem a ela.
Mandei essa mesma foto (que amo) para seu marido, seus filhos, seus netos e sua nora, com a seguinte mensagem, que perpetuo aqui:
“Comandante, Maguinha e Ricardo, Wagner, Neném, Henrique, Maricota, Ana Clara, Dri, meus queridos: uno-me a vocês nesse momento tão doído que é o da partida da minha amada e inesquecível dona Sá, minha Sazinha, uma mulher que era quase um anjo de tanta bondade que carregava dentro de si. Mulher de fé inabalável que ela foi, tenho por certo de que agora está e estará como acreditou a vida inteira que estaria desde 2011: ao lado da Dani, na paz de Deus e dos que têm a consciência tranqüila. Amo muito vocês todos.”
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
Dúvidas, sugestões, críticas? É só responder esse e-mail ou escrever para edugoldenberg@gmail.com
📩 Se você gostou do que viu aqui e ainda não assina a newsletter, inscreva-se no botão abaixo e receba por e-mail, uma vez por semana, sempre aos sábados, o Buteco do Edu. E se você achar que algum amigo ou alguma amiga pode se interessar pelo papo de botequim, encaminhe esse e-mail, essa newsletter, faça correr mundo esse balcão virtual.