EM VOZ ALTA PRA FECHAR 2023
ou digressões íntimas pra atravessar a fronteira imaginária pra 2024
Estamos a poucas horas de 2024, o ano dos meus 55 anos - e cada vez fica mais claro, mais evidente, que já estou na segunda metade da minha vida. Dela, da vida, tudo posso dizer: menos que é modorrenta.
E minha vida, como disse um amigo dia desses, está começando de novo.
Vejam que curioso (para lhes contar a que amigo me refiro).
André é tijucano como eu - e eu não o via há um bom tempo.
Dia desses tô na praia às seis da manhã, vendo o sol nascer, e ele chega junto com o namorado, Marcelo.
Tomei um susto.
— Mudamos pra Copacabana também, pertinho de você! - disse ele.
Papo vai, papo vem, contei a eles dois as novidades (que não são poucas) e André não pensou duas vezes:
— Você nasceu de novo, veja só! - fez a blague.
E não mentiu.
Voltemos.
Estamos a poucas horas de 2024, o ano dos 80 anos de meu pai. E cada vez que ouço a canção de Lupicínio cantar que “a vingança é a herança maior que meu pai me deixou”, lembro das heranças lupicínicas que meu pai me deixou e as maldigo. Foram elas, essas heranças herdadas pela osmose que permeia a relação de pais e filhos, de avós e pais, de bisavós e avós, essa relação que atravessa os séculos, as responsáveis por grande parte das minhas derrocadas ao longo de quase 55 anos.
A sorte que dei - ou era mesmo meu destino - foi a de saber escapar das armadilhas que essas heranças me legaram.
Mas não consegui, ou não soube, escapar de todas - claro.
E já que estamos a poucas horas de 2024, cabe a pergunta já que sou sempre confessional: como era o réveillon na minha infância?
Meu pai começava a preparar a fita do réveillon (destaco porque a fita do réveillon era um evento!) no comecinho de dezembro. Explico.
Havia um frêmito na parentalha toda: o que é que o Isaac vai pôr na fita do réveillon esse ano?
Eu digo fita do réveillon e faço o adendo: fita K-7.
Isaac gravava, ano após ano, uma fita K-7 que haveria de ser posta no toca-fitas numa determinada hora a fim de que, à meia-noite em ponto, tocasse o ponto alto, a canção escolhida para ser o tema da virada.
Ele se sentava, dia após dia, em um banquinho diante da vitrola portando um bloco, um lápis, borracha e punha fones imensos nos ouvidos. Escolhia as músicas. Valia-se de um cronômetro. Anotava tudo. Gravava a seqüência. E fazia testes. Testes e mais testes. Até que, por exemplo, verificava que precisaria pôr a fita pra tocar, obsessivamente, às 23h32min e 17 segundos. Isso tudo pra que à meia-noite tocasse a canção escolhida.
A canção que antecedia o grande momento era essa - sempre essa.
Todo ano essa.
O que causava, por óbvio, a histeria que antecedia a hora grande.
A renque de velhas gemia. Chorava. Uma delas gritava:
— O que é que o Isaac preparou dessa vez?
E formava-se uma roda, todos de mãos dadas, bêbados, uns recebiam santo e caíam no chão, e a ânsia fanática prosseguia:
— Tô toda arrepiada! O que é que vem aí!
Até que explodia a canção escolhida.
E havia choro, abraço, beijos efusivos, promessas jamais cumpridas - “Ano que vem teremos ar-condicionado!”, disse minha mãe durante mais de 30 anos.
Quando finalmente compraram um ar-condicionado decidiram:
— Réveillon aqui em casa nunca mais!
Tenho alguns registros dessas noites de réveillon.
Nessa primeira foto (abaixo) vocês veem minha bisavó, Mathilde, de mãos dadas com meu avô Oizer e meu avô de mãos dadas com meu tio Carlos Henrique, o tio Hique (está de olhos fechados e aposto que Tupiara, o caboclo, estava pra baixar). Ao lado do meu tio Hique, Mário Jorge. Os quatro mortos mas vivos dentro de mim (e nessa época do ano, usando branco).
Vê-se ainda, de costas, a careca denuncia, meu tio Pedrinho - filho adotivo de minha bisavó. Ele também morto. Já são cinco mortos.
Há outro registro.
Esse com mais gente e mais propício pra lhes dar noção exata do que digo e que pode lhes soar como mentira.
Vamos lá: Mário Jorge está de braços abertos (à sua direita, com a cabeça já virada pro lado, ou seja, Tupiara estava mesmo chegando, meu tio Hique). À sua esquerda alguém tampado por seu braço. Na seqüência, Sérgio - namorado do meu tio Pedrinho, que a família inteira dizia ser seu “amigo”. Bem no centro da foto, vestindo branco, tia Betinha (também morta, já são seis mortos). A seu lado, de amarelo e branco, minha mãe. Ao lado de minha mãe, minha vó paterna, Elisa, e meu avô materno, Milton (os dois mortos, já são oito). De óculos, Hélio Saboya ao lado de Cenyra Saboya (mortos, já são dez fantasmas). Antonio Celso e Roberta completam a roda (não sei se esses dois estão vivos ou não). A criança que sorri, camiseta branca, é Fernando (meu irmão mais velho mas mais novo que eu - não o vejo há anos, meu filho não deve sequer lembrar-se dele, vejam que coisa). De mãos dadas com ele, Carla - filha do meu tio Hique. Eu estou de camiseta também, mas de costas. De mãos dadas comigo, Márcio - filho do Mário Jorge (a criança atrás do Márcio eu não sei quem é). E de mãos dadas com Carla, Ângela - filha da empregada de meus pais, à época.
São, então, no mínimo, dez mortos, dez fantasmas. Todos fazendo alarido dentro de mim.
Vamos voltar pro trilho.
Estamos a poucas horas de 2024, o ano do 6º aniversário do meu filho - e tudo que peço, todos os dias, todas as horas, é que meu filho rompa o ciclo das heranças que passaram de geração para geração, desde os antepassados que nem sei quem são até a mim, seu pai.
A trilha sonora dessas heranças tem o som de bufadas denotando falta de paciência, tem o som de línguas estalando - tsc! - indicando uma permanente insatisfação, tem silêncios diante de questões que atormentavam o menino que fui, tem cabeças fazendo o movimento de não diante de tudo o que contraria a cartilha secular escrita sabe-se lá por quem, tem carrancas em vez de rostos, tem o peso soturno de Kardec em contraposição à dança dos orixás, tem a mão macia de minha bisavó tentando me salvar do rodamoinho do oceano tormentoso da sisudez que a cercava (e, por conseqüência, a mim).
Tô com quase 55 anos, sou o que sou, tenho o que tenho e vivi o que vivi graças à sabedoria (ou ao instinto) que me fez ter escapado das armadilhas a que me referi, mas ainda ouço as mesmas reprimendas como se eu ainda tivesse 5, 6, 7, 10, 11, 12 anos. É assim com todo mundo? Não. Eu sei que não é.
Chego ao final de 2024 com certezas ainda mais sólidas dentro de mim para desespero dos meu detratores que, só um exemplo, amam saber que Aldir Blanc cantou “perdôo a todos, não peço desculpas, foi isso que eu quis viver” mas gemem nossa-Edu-você-nunca-pede-desculpas. Peço quando quero. Chego ao final de 2024 celebrando a família que escolhi pra mim e cada vez mais certo (a repetição é de propósito) de que parente o sangue define, família o coração consagra.
Quero quem quer bem a meu filho.
Quero longe quem ignora sua existência.
Chego ao final de 2024 com esse saldo que repeti como mantra durante boa parte do ano. Casei-me três vezes. A primeira mulher está viva mas morreu. A segunda morreu mas está viva. A terceira está viva, vivíssima, e permanecerá viva para sempre - para desespero, a repetição é de propósito, dos meus detratores.
Chego ao final de 2024 com a alegria do Natal que vivi, vendo meu filho cercado pelas duas avós e pelo avô que está vivo, meu pai: Maria, Ana Maria e Isaac, três amores que embalam meu filho.
É comovente demais ver a alegria de Leonel com seus avós porque é inevitável que eu me lembro da benção que foi o meu convívio com os meus.
Gosto de pensar que o avô que está morto, Benito, também brinca com meu filho sem que, com isso, eu caia na esparrela insuportável de vidas passadas e de próxima encarnação.
Chego ao final de 2024 ainda curando as feridas causadas pela guinada que vivi em 2021, dez meses de uma revolução que me fez nascer de novo, curando as feridas causadas pelo fim do casamento e pelos lutos que esses dois episódios - a revolução que me fez nascer de novo e o fim do casamento - dispararam.
Como lhes disse no começo, tudo posso dizer da vida: menos que é modorrenta.
Jamais optei pela mediocridade - como ele fez.
Meu norte, e aqui não vai um clichê, é o amor na mais ampla acepção da palavra: é tudo, e será sempre tudo, por amor.
Grandes amores deram mais graça ao ano que termina e a eles ergo o brinde diante do balcão imaginário nessa véspera de Ano Novo: Carolina Cadavid, Marianna Araujo e Rodrigo Carvalho, três confidentes indispensáveis com quem dividi o tanto de angústias e o tanto de esperanças que me acompanharam ao longo de doze meses.
Foi mais fácil atravessar o ano por causa deles.
Amanhã estarei diante do mar antes mesmo do sol nascer.
Herança, vejam vocês, do meu pai - que desde que me entendo por gente amanhece na Praia Vermelha no dia 31 de dezembro ao som dos atabaques das giras de macumba que ali ainda encontram guarida.
Lá estarei levando nas mãos as flores que darei de presente à Rainha do Mar.
Pedindo por mim.
Pela Morena.
Pelo Leonel.
E por todos os que me cercam e a quem quero bem.
Feliz Ano Novo, gente.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, por conta da ocasião (o réveillon é sempre um pretexto pra preparar o prato) o texto (que é uma receita em passo-a-passo) Pernil de cordeiro, a receita, publicado em 08 de março de 2010, aqui.
“Conforme o prometido, vou lhes contar sobre o pernil de cordeiro que preparei em casa no sábado passado. As receitas que publico aqui têm feito, ainda bem, um tremendo sucesso (para que vocês tenham uma idéia, o texto mais lido de todo o blog é, justamente, minha receita de rabada!). E espero que não seja diferente com essa que passo adiante agora. Vamos aos ingredientes. Antes, porém, mais um necessário aviso: preparei o pernil para quatro pessoas. Evidentemente, afinal o pernil pesava exatos 2,5kg, sobrou bastante. Ontem, domingo, destrinchei toda a carne e preparei um risotto que ficou, modéstia à parte, monumental (como o pernil da véspera!).
Você precisa comprar um pernil de cordeiro pesando não mais do que 2,5kg, garantia de que o bichinho foi abatido em tenra idade (o que significa dizer que a carne é infinitamente mais macia). Sempre uso a marca Cordeiro do Campo, fica a sugestão (tem sempre no Mundial da Matoso!). Além disso, 5 cabeças de alho (roxo), 1 cebola (argentina), 3 maços de alecrim (fresco), uma xícara de vinho branco seco, duas xícaras de azeite extravirgem (usei Andorinha, marca portuguesa), pimenta do reino preta triturada na hora (não é moída, é triturada!) e sal grosso.
Na noite da véspera o pernil já deverá estar descongelado e posto numa travessa grande, onde ele caiba com conforto. Para tratar do seu conforto, um copo com bastante gelo e Red Label.
Antes de qualquer coisa, pegue um vidro vazio (tamanho médio, desses de maionese, de azeitona etc) e coloque o vinho branco, o azeite e um bom punhado de alecrim (deixando algumas folhas separadas para usar diretamente no pernil e nas batatas, como vocês verão mais adiante). Esse vidro deverá ficar fechado até a hora do preparo do prato (sempre que lembrar, sacudir bastante o vidro para macerar, de leve, o alecrim), a fim de que o azeite ganhe, de leve, o sabor da erva. Parte desse líquido será injetado no pernil, no dia seguinte.
Corte a cebola em rodelas bem fininhas e coloque sob o pernil, de modo que ele fique deitado (estou poético) sobre os anéis da cebola. Fure o pernil, em diversos pontos, com uma faca pequena. Escolha alguns furos para colocar alguns raminhos de alecrim, e outros para colocar 5 dentes de alho inteiros. O restante do alho deverá ser cortado fininho (sem picar) para que você possa cobrir o pernil por inteiro (vejam na foto abaixo). Cubra o pernil, também, com folhas de alecrim, não esquecendo de colocar alecrim e alho na parte que está em contato com a cebola. Feito? Cubra com uma folha de papel alumínio (parte espelhada para dentro) e… geladeira!
Você só deverá voltar ao pernil no dia seguinte, uma hora e meia antes de prepará-lo. Hora de sentar-se, de servir mais uísque…
Faltando uma hora e meia para ir ao forno, retire o pernil da geladeira e, evidentemente, a folha de papel alumínio com cuidado para que você possa reaproveitá-la. Você vai notar que o bichinho já está diferente… com a carne mais tenra… com uma cor diferente… e um cheiro fabuloso de alho e alecrim invadirá a sua cozinha.
Não se esqueça do Red Label (de novo, e sempre).
Misture bem o vinho, o azeite e o alecrim que ficaram no vidro. Com a ajuda de uma seringa (não adianta tentar usar dessas comuns vendidas em farmácias, veja a foto abaixo), injete, com cuidado pra não destroçar a carne, a mistura no interior do pernil. E tome cuidado mesmo! A bacia enográfica que será construída dentro do pernil pode acarretar pequenos acidentes, como uma esguichada indesejável no seu rosto.
Depois de injetar o líquido em diversos pontos do pernil, restará apenas o alecrim bastante molhado (deixe sobrar um pouco do líquido).
Feito isso, terminada essa etapa, passe sal grosso em torno de todo o pernil, tomando cuidado para não destruir a cama de cebola, valendo-se do osso para virá-lo. Depois do sal grosso, é hora da pimenta do reino em grãos, triturada. Valha-se de um pano de prato e de um martelo para quebrá-la em pedaços não muito pequenos (lembre-se de que a pimenta não deverá ser moída, mas triturada, vejam na foto abaixo).
Depois disso, despeje o líquido, viscoso, com o alecrim que ficou no final do vidro.
Num dos cantos do tabuleiro, coloque 3 cabeças de alho inteiras, que o alho fica delicioso depois de assado.
Regue com um bocado mais de azeite extravirgem (não se esqueça de regar também as cabeças de alho).
O forno já deverá estar aquecido, com fogo alto.
Cubra novamente o tabuleiro com papel alumínio.
Para cada quilo de pernil, meia-hora de forno. Como o que usei tinha 2,5kg, precisei de uma hora e quinze minutos, um pouco mais (é claro que vai depender sempre da potência de seu forno).
Quarenta e cinco minutos depois, retire o pernil do forno. Retire o papel alumínio, regue todo o pernil com o caldo do tabuleiro e mande-o de volta para o forno, agora sem o papel alumínio, para que ele ganhe cor. Na foto abaixo, você pode ver como ficou o pernil nesse exato momento, quando o retirei depois de 45 minutos.
Fique de olho nessa segunda etapa de forno. Regue permanentemente a carne com o líquido do tabuleiro, a cada – o quê? – dez minutos, no máximo.
Quando o bichinho estiver dourado, bonito pacas, é hora de retirá-lo do forno.
Quando percebi que faltava meia-hora pra ficar pronto, forrei outro tabuleiro, menor, com papel alumínio (parte espelhada para cima) e dispus, sobre ele, uma boa quantidade de batatinhas pequenas. Reguei-as com azeite extravirgem, joguei sobre elas algumas folhinhas de alecrim e sal grosso. Embrulhei as batatinhas e… forno (que a essa altura estará violentamente quente!).
Daí é só (mais) alegria.
Fatie o pernil no sentido do comprimento e sirva-o acompanhado das batatas, que estarão bem douradas, queimadas bem de leve.
Abra um portentoso vinho tinto capaz de encarar a carne de sabor intenso e divirta-se! Bebemos um Esporão Reserva 2004 e o almoço foi fabuloso.
Até.”
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
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UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, uma das playlists que montei no Spotify - Rio de Janeiro - que já conta com 122 seguidores.
Ela será permanentemente incrementada (e eu aceito sugestões que podem ser enviadas por e-mail!).
Ela está aqui ou, se preferir, ouça já! - abaixo.
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e, repito, está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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