Escrevi, em 2006, portanto há 17 anos, no finado blog, homônimo dessa newsletter:
“Há, em mim, constantemente, e mais em abril do que em qualquer outro mês, uma permanente gana de dizer o que já foi dito, de escrever o que já foi escrito, de inventar o que já está inventado há dezenas, centenas, milhares de abris.”
Reforço: há, em mim, constantemente, e mais em abril do que em qualquer outro mês, arremessos em direção ao passado que me fazem experimentar umas espécies de transes mediúnicos que me arrancam da órbita e me lançam pra uma dimensão que mora em mim, dentro de mim, mas que só acesso quando vem abril. Mas depois de quase (quase!, ainda faltam alguns dias) 54 anos, ainda não me acostumei.
Domingo passado estive no Maracanã com Leonel e foi exatamente como imaginei que fosse: quase-morri. E quando eu digo “quase-morri” consigo ver olhos pro alto denotando falta de paciência, boquinhas forjando bicos que denunciam incredulidade. Às favas, quem não tem sensibilidade e não me conhece. Quase-morri. Quando nos vestimos de Flamengo, eu e o piá, quando tomamos o táxi em direção ao Bar Madrid, quando rumamos pro estádio, quando o pus nos ombros pra que passássemos pela roleta, quando entramos pelo túnel descortinando o gramado.
Era preciso que o Flamengo vencesse e o Flamengo venceu. Mas os dramas, as tragédias, aconteciam dentro de mim. Eu de mãos dadas com ele e eu era de novo o menino de 9 anos de idade assistindo ao primeiro jogo ao lado do pai - ele vascaíno, eu já Flamengo. Gol do Flamengo, o título, e eu sendo arrastado por ele pra fora do estádio sem poder ver a festa. Eu precisava me curar dessa dor.
O primeiro jogo a que assisti foi Flamengo x Vasco, em 1978.
Mas antes, em 1969, quando meu pai seguramente sonhava em me ver vascaíno (a foto acima é desse dia), o velho me levou ao Mário Filho pra fazer essa foto.
Em 78, talvez, quando me arrastou com força pra fora - “vamos pra casa, não vamos ver a volta olímpica!” - estivesse se vingando da decepção que foi saber-me rubro-negro.
Todo abril é isso.
Tenho muitas saudades e todos os fantasmas vêm dançar em volta de mim.
Minha bisavó está lindíssima nessa foto acima - é a mulher de vestido de renda preta, sentada. Dona Mathilde. A Bia. A dona dos meus maiores delírios, a regente das minhas febrículas que pontuam meus abris. Ouço sua voz até hoje. O som de seu pigarro. Sinto o cheiro de talco que ela usava, a textura de sua pele encarquilhada e macia, vejo o terço em suas mãos, a pequena Bíblia que ela carregava consigo pra onde quer que fosse, as anáguas visíveis por baixo de seus vestidos, as unhas pintadas, a rede nos cabelos…
E do lado direito da foto, com a mãozinha sobre o ombro de outra criança, minha avó Tida, sua filha. Uma presença constante. Ela, que foi oló em dezembro de 2010, vem sempre me visitar. Desde 2011, primeiro 07 de abril sem ela, que preparo em casa seu café-da-manhã. Café, uma torrada, manteiga, geléia, amêndoas, castanhas, passas.
Mamãe, espírita fanática (como ela), disse-me um dia:
— Deixe sua avó em paz! Permita que seu espírito se liberte, não queira prendê-la aqui.
Ah, minha mãe…
E desde quando, havendo possibilidade de mantê-la ao meu lado, eu optaria por deixá-la longe, supostamente liberta (do quê, hein?). E eu duvido, falo com a certeza do neto mais velho, que ela não esteja sempre por perto. E mais: duvido que não coma o que eu sempre lhe sirvo trocando seu axé comigo, com Morena, com nossa casa, com seu bisneto. Minha avó, como minha bisa, virou orixá. Virou fantasma. E vem sempre ter comigo durante os abris.
A ESPIRAL SÓ FAZ CRESCER
Eu era um moleque, 12 pra 13 anos, quando minha bisavó foi oló.
A minha maior referência, a matriarca, o amálgama de uma família que esfumou-se com seu desaparecimento.
Não conheci meu bisavô, Eugênio, mas ele vem me visitar às vezes com minha avó, sua filha, acompanhado de seu médico, Dr. Oscar, e de seu companheiro de toda a vida, o Mascate.
Não há delírio que dê conta do que se passa em mim.
Não há relato capaz de tornar factível o que de fato (é de propósito) acontece e o que se passa em mim.
MAZAL TOV
Eu tenho aguda saudade do meu avô paterno - mais que do materno, faço a confissão. Ele que me foi sonegado como a volta olímpica em 1978.
Judeu, chegou ao Brasil fugindo de Odessa por ocasião da guerra.
Quantas histórias aquele homem bronco, de mãos rudes, não tinha pra me contar?
Eu chamo demais por ele.
A imagem que guardo dele se assemelha à de Einstein. Vovô tinha cabelos brancos esvoaçantes, tinha o rosto bem vermelho (só mais tarde vim saber que era efeito de sua permanente pressão alta), mãos enormes, ásperas – vovô foi mascate –, e vou lhes contar o porquê me marcaram tanto suas mãos enormes e ásperas.
Vovô, quando voltava da praia, depois da sesta do almoço, ia pra praça Afonso Pena encontrar seus amigos – mais uma célula da colônia judaica. Ficavam de papo furado (vovô usava imponente bengala), ora nos bancos de madeira pintada de verde, no entorno da praça, ora nas mesas de jogatina, de carteado. E eu, que passava pela praça a caminho do metrô, em direção ao colégio, era sempre parado por meu avô. E sempre seguindo o mesmo roteiro: ele me tomava pela mão esquerda, segurava meu pulso com força, e dava de conversar com seus amigos judeus, em iídiche. Eu, evidentemente, não entendia uma palavra – lembro que os velhos riam ouvindo meu vô. Depois de dizer o que dizia, e antes de soltar meu pulso com sua mão enorme, vovô Oizer punha uma nota de dinheiro no meu bolso e dizia, estalando um beijo no meu rosto:
– Mazal tov!
Às vezes eu encontrava meu vô Oizer no Monte Sinai, clube do qual éramos sócios, na São Francisco Xavier, quando ele reforçava a mesada se eu o acompanhasse à sinagoga para a oração no final da noite das sextas-feiras, preparação para o shabat.
E eu fazia isso escondido de meu pai, que fez o Bar-Mitzvah aos 13 anos sem vontade alguma, que se casou com minha mãe, não judia, que implicava – ainda implica, a bem da verdade – com tudo o que diz respeito ao judaísmo.
Minha avó Elisa, também judia, freqüentava, escondida de meu avô, um centro espírita numa travessa da rua Ibituruna. Eu descobri isso muitos anos depois de sua morte, quando fui morar no apartamento deles na Haddock Lobo e a confissão me foi feita pela síndica do prédio, que acompanhava minha avó nas sessões de mesa branca.
Falei sobre a rua Haddock Lobo, mas a mais remota lembrança que tenho de meus avós paternos me arremessa pra rua Santa Alexandrina, no Rio Comprido, onde meu pai nasceu.
Um prédio de cor amarela, bem antigo, sem elevador, apenas três andares, eles moravam no terceiro, onde íamos lanchar quase todos os domingos – e a tradição se manteve depois da mudança pra Haddock Lobo.
Eram lanches bem tranqüilos (como minha infância). O vô com a tevê em preto-e-branco ligada no Telecatch, esbravejando e espumando de ódio diante das lutas, a tevê no máximo volume – vovô era quase surdo. Papai e meu tio, aos gritos, tentando convencer o velho de que tudo ali era armação, o que revoltava o velho Oizer.
Minha avó preparava o lanche enquanto minha mãe e minha tia conversavam à mesa, e eu me lembro de montanhas de brioches, os sanduíches já preparados (queijo, presunto, misto), jarras e jarras de suco de caju e os diálogos de todos os domingos.
Ela dizia:
– Oizer, tá na mesa!
E ele:
– Cala a boca, Elisa! – sem tirar os olhos da tevê.
– Cala a boca você, Oizer!
Essa troca de afagos durava todo o lanche, e meu avô não admitia que sobrasse um único sanduíche – os lanches eram sempre muito bem servidos, muita comida (sempre tinha frango assado de padaria), muito suco, uma fartura que nada tinha a ver com as piadas que ouvia sobre a usura dos judeus.
Vovô morreu antes de minha avó, internado no Hospital Evangélico, na rua Bom Pastor, na Tijuca, evidentemente. Embolia pulmonar.
Minha avó foi, pouco tempo depois, morar num asilo, numa clínica geriátrica, na Sociedade Beneficente das Damas Israelitas, na rua Afonso Pena, onde morreu (não lembro da causa, isso pouco importa).
Seus fantasmas seguem por aqui. Não é possível um chope no Salete sem lembrar de minha avó, que morreu ali do lado. E essa lembrança deve-se única e exclusivamente à geografia, já que minha avó, que os deuses a tenham, não estabeleceu comigo nenhuma relação de afeto – era áspera como as mãos do meu avô, ele sim, um doce avô.
Assim como não é possível passar pela praça sem lembrar do meu vô Oizer, seu sorriso contrastando sempre com a carranca da vó, sua cara vermelhíssima, suas mãos enormes e ásperas como minha avó, e por isso eu muitas vezes, do nada, com um travo de leve na garganta, um marejar quase imperceptível nos olhos, falo sozinho, de mim para mim, quando passo pelo mesmíssimo banco de madeira, na esperança de que ele me ouça:
- Mazal tov, vô.
Vira-e-mexe estou nos meus sonhos com os macacões que ele nos dava - a mim e aos meus irmãos.
Vascaíno, como meu pai, o velho Oizer é até hoje uma mistura de saudade e mistério.
Se eu ardo de saudade da minha bisavó por conta do que vivemos, eu queimo com as febres de saudade que tenho dele - por conta do que não vivi.
O MESMÍSSIMO BANCO DE MADEIRA
O mesmíssimo banco de madeira (pintada de verde) viu sentar meu avô, meu pai, e eu.
Acabamos de nos mudar pra Copacabana.
Ficaram na Tijuca, na praça Afonso Pena, os mesmíssimos bancos de madeira.
Carreguei comigo, entretanto, as memórias, os fantasmas, as histórias, e - por que não?! - os mesmíssimos bancos de madeira.
PRECE EM CONVULSÃO FEBRIL
Nasci em 1969, num 27 de abril - domingo.
Foi Tupinambá, um caboclo de umbanda, um bugre brasileiro, quem me anunciou pro meu pai na passagem do dia 26 pro dia 27 - eu era esperado pra meados de maio.
Poucos dias depois, dia 06 de maio, eu já estava em casa, na rua Barão de Mesquita, quando os canhões do Colégio Militar explodiram comemorando o aniversário do colégio - diante da janela do meu quarto.
Foi a primeira vez que minha bisavó, Mathilde, me protegeu. Debruçando-se sobre o berço, me acolhendo em seus braços, me livrou dos tiros que faziam tremer as vidraças do prédio. E nunca mais - até hoje - deixou de ser meu porto seguro.
Mudamos pra São Francisco Xavier número 90 mas era na vila, número 84, que eu era feliz. Na casa 04, com meus avós maternos, minha bisavó e sua irmã (vó Tida, vô Milton, Mathilde e Idinha), conheci o amor em estado bruto. O amor incondicional.
Havia um banheiro de azulejos amarelos, imenso, onde conheci o prazer - por que não dizê-lo? - porque foi ali, naquele banheiro, que bati a primeira punheta da minha vida com uma revista amiga nas mãos diante da impressionante imagem de Adele Fátima. A revista passou meses escondida sob as almofadas do sofá de um quarto no final do corredor da casa mas a ela eu sempre recorria, sôfrego, pra sentir de novo a sensação nova que havia experimentado sem querer.
Anos antes, o assombro: criança, muito criança, ouvi gemidos que vinham do quarto dos meus pais - era mamãe que gemia. Tentando (em vão) ver algo pelo buraco da fechadura, fui acometido de uma certeza: meu pai batia em minha mãe.
Até hoje sofro diante dessa lembrança que é exclusivamente sonora e que me ensurdece.
Eu ia continuar - era minha intenção continuar - mas não consigo.
Volto.
Hei de voltar até que chegue o dia 27.
Porque preciso seguir expurgando o que me atormenta, porque preciso extirpar o que me violenta, porque preciso escrever, escrever, escrever, escrever - até que eu canse.
Ou até que eu descanse, verbo que os que não entendem nada de nada usam pra dizer morreu. E falo por mim. Eu, quando for oló, como minha avó, vou querer tudo, vou querer furdunço, vou querer marafo, vou querer barulho, estardalhaço, só não vou querer descanso.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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