Tudo fará mais sentido - e há de ficar tudo mais bonito - se hoje você me ler ouvindo o que ouvi fazendo as confissões que lhes farei hoje.
Repetirei a ladainha que foi introdução para minhas memórias nas últimas edições da newsletter: nasci, na Tijuca, em 27 de abril de 1969. Fui o primeiro filho de um casal de classe média baixa, mais baixa do que média, e eu sei disso porque meu pai me dizia uma frase com uma freqüência tão intensa que só eu sei o quanto de culpa ela me incutia a cada audição:
— Quando você nasceu, Eduardo, eu gastava, só com o aluguel, mais do que eu ganhava de salário. Mais do que eu ganhava de salário!, só com o aluguel!
E essa frase era dita em tom soturno, grave, seus olhos cravados nos meus, fazendo com que eu fosse uma criança muito saudável emocionalmente.
E eu lhes disse mais: eu chegava da escola e ia pro banho.
Meu pai entrava no banheiro já quase no final, a toalha na mão, o Shelton Light aceso na outra, me punha de pé sob a tampa do vaso sanitário e, enquanto me enxugava, repetia:
— Sabe que eu pagava mais de aluguel do que o que eu ganhava de salário quando você nasceu, não sabe?
Eu ficava mudo - tremia e ficava de cabeça baixa olhando pros meus próprios pés.
Ele erguia meu queixo com uma das mãos e dizia, sádico:
— Sabe ou não sabe?
O sei que eu dizia me dói até hoje.
Muita coisa me dói até hoje.
Leonel, quando chegou - antes, ainda, quando era só um sonho - passou a ser meu refúgio, meu melhor abraço, o conforto em meio ao caos, a paz de criança dormindo.
Passou a ser, também, o portal que me transportava (e ainda, no presente) pra mais longe, propulsor de arremessos violentos em direção ao passado, a pessoinha que escancarava as dores que os anos amorteceram mas que foram incapazes de matar.
Chorava à noite e eu saía, aos atropelos, em direção ao seu corpinho para que eu pudesse guardá-lo junto ao meu, entre meus braços e declarações de amor ditas bem baixinho em seus ouvidos.
E o homem que lá estava com o filho no colo, berrava de novo no berço e berrando ficava por horas a fio. Afinal, ouvi isso a vida inteira - numa espécie de prolongamento da tortura de outrora -, a noite foi feita pra descansar… deixa chorar que uma hora ele cansa… se o choro for de fome ou for de medo… vai passar.
As dores.
Elas não passaram.
CASA VAZIA
Cinqüenta e quatro anos.
Escrevi cinqüenta com trema e quero lhes dizer o que disse minha editora na edição de De hoje não passa:
1 [ n.e. ]: este livro foi revisado, na medida do possível, nos parâmetros determinados pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Com o trema das cartas do Eduardo Goldenberg, no entanto, não houve negociação. Se causa incômodo ao leitor, pedimos desculpa.
Volto.
Aos 54 anos, e apenas agora, aos 54 anos, estou aprendendo a lidar com a solidão.
Estou aprendendo a lidar com a dor e a delícia de estar-só.
Mas a casa, que tem estado às vezes vazia, dói - dói às vezes, diga-se.
E dor, há 54 anos, me arremessa pra muito longe.
Escrevi aqui:
“Da primeira mulher, me separei. Ela está viva mas morreu.
Da segunda mulher, também me separei. Mas foi a morte que nos separou. Ela morreu mas está viva.
Da terceira mulher, como da primeira, também me separei. Só que essa está viva, vivíssima, e seguirá vivíssima para sempre.”
Percebam que são três momentos muito díspares.
A primeira está efetivamente morta - embora, presumo, ainda respire por aí.
A segunda, ainda viva, está definitivamente morta e, evidentemente, a morte não me permitiu experimentar o convívio com a ex-mulher (que, repito, nunca houve com a primeira).
A terceira, viva, vivíssima, a que seguirá viva para sempre, é, hoje, também, uma espécie de atestado do acerto que foi a escolha que fizemos há mais de 10 anos e da decisão que tomamos há uns meses: porque permanece o desejo de estar-junto, permanece o meu desejo de tê-la por perto.
Pobres daqueles que são reducionistas quando se fala em amor.
E daqueles que desejam, arduamente, a permanente distância de quem fora, ainda que outrora, um grande amor.
Tendo dito isso, eis a realidade dura e concreta como uma bigorna.
Tem sido bom estar só.
A solidão não tem me dado outra opção que não seja lidar com a dor como se nada mais houvesse, além de mim. E daí é que vem a delícia de poder viver tudo isso.
Era só o que eu queria lhes dizer, por ora.
Volto, mais à frente, ao tema.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Dia desses fiquei pensando se eu havia publicado algum texto, n´alguma altura, falando sobre Leonel antes de Leonel nascer. E não é que o achei? Com ele inauguro a seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020 - não é coisa pouca. São 16 anos!
Eis o texto Arremesso ao passado e ao futuro, publicado em 25 de abril de 2017:
“Fiz publicar, na semana passada, três textos falando dos irremediáveis arremessos em direção ao passado que ora sofro espontaneamente, ora provoco, como quem prepara a própria cama. (…). Cansa, meus pouco mas fiéis leitores. Cansa e desgasta. Até febrícula eu tive, achei que fosse morrer (sou um trágico), e só as mãos da Morena nas minhas, com aquele sorriso deixa-de-ser-bobo e um antitérmico, fizeram a febre baixar.
Vai daí que, a três dias do 27 de abril, quando completo 48 anos de idade, quando estarei a dois anos de poder cantar “eu vim aqui prestar contas de poucos acertos, de erros sem fim…”, o hino informal dos 50 anos composto por um de meus orixás vivos, o Bardo da Muda, meu mais-querido Aldir Blanc, a quem vi cantar a obra-prima num Canecão lotado em 1996 (tinha eu 27 anos de idade…), resolvi interromper os arrancos violentíssimos em direção a um passado mais remoto e escrever, como se falasse em voz alta, de mim para mim, pela primeira e última vez nesta semana, que é sempre uma semana turbulenta. Dirão alguns que é o tal inferno astral. Não sabem de nada. São apenas os arremessos, os arrancos, a saudade, sangue, suor, mortes, lágrimas e gargalhadas diante das mais bonitas lembranças que ficaram pelo caminho (e eu vou sempre poder voltar para catá-las, uma a uma, sempre que eu quiser).
Ilustra o texto (imagem abaixo), um dos mais bonitos e significativos presentes que já ganhei. Na foto, tendo ao fundo um defumador que acendi naquela tarde de 26 de abril de 2009, um domingo (o mesmo dia da semana em que nasci), a imagem de São Jorge, a imagem de Ogum que guardava o gongá do terreiro de xambá da avó de meu compadre Luiz Antonio Simas que me deu justamente a imagem de presente no dia em que comemorei meus 40 anos, e de véspera (sou um fóbico, nem sei como fui capaz de fazer isso). A cena foi hilária e comovente, e é expressão máxima da verdade: Simas chegou trazendo nas mãos um embrulho feito de jornal, aos prantos, e foi aos prantos que ele me entregou o objeto, por tudo sagrado e significativo demais pra ele. Explicou o que era, de onde vinha, e ali, não tenho dúvida, estreitou-se ainda mais o laço que nos une.
Minha avó Mathilde estava lá. Dani estava lá. As duas não estão mais aqui. O Benjamin ainda não existia, hoje ele é meu afilhado-de-rua, homenagem maior que um homem pode receber dos amigos – estreitou-se mais o laço. A Helena já existia, era um pinguinho de gente, e estava lá. Hoje é minha afilhada, honra que me foi dada por seu pai, Leo Boechat, que hoje está mais longe, em Curitiba, mas justo por isso, vá entender, tão por perto. A Morena não estava lá. Não sabíamos sequer da existência um do outro. Hoje ela está, e não concebo viver sem tê-la por perto, ao meu lado, aqueles olhos cor de mel que me nocautearam em setembro de 2011, quando eu não tinha certeza se sobreviveria aos revezes que aquele ano me reservou. Meus dois irmãos estavam lá. Fosse hoje, apenas um estaria. A vilania associada à amargura mata, embora mate de satisfação quem vive sob a égide da amargura, morrendo em vida. Dois irmãos vieram de São Paulo, Bruno Ribeiro e Favela. Favela está vindo ao Rio em maio para nos visitar e para comer o Barreado de Morretes. Meu irmão e duas vezes meu compadre, Fernando Szegeri, não estava lá. Iya Sandra, que não estava lá e também não está mais aqui, o aconselhou a não vir. Eu ainda não conheço seu quarto filho, hei de reparar tal falha o quanto antes. Felipinho deu-me de presente um toca-discos e levou um autêntico fogão-jacaré pra esquentar a feijoada que preparei. O Bar do Chico esteve à frente da churrasqueira, fartamo-nos de churrasco de carne-de-sol. Mas não fazia sol, naquele 2009. Aquela comemoração de 40 anos, eis que é preciso, sempre, festejar a graça de estarmos vivos, foi mais uma tentativa de drible no curso de um jogo duríssimo que eu antevia pela frente.
A festa foi no terreno dos fundos do prédio da Haddock Lobo onde moraram meus avós paternos, Oizer e Elisa. Eu já morava lá. Hoje não moro mais, comprei o apartamento e quem lá vive é o mesmo sujeito que me deu de presente um toca-discos e que me emprestou o fogão-jacaré (a querosene, diga-se). Meus avós paternos, e o avô materno, não estavam lá. Não estava lá também minha avó Branca, que tomei emprestada da Morena.
Eu ainda não conhecia a cidade de Curitiba. Eu ainda não conhecia o Fábio Seixas, eu não conhecia o Trajano, eu não conhecia o Guga, eu não conhecia o Gus, não conhecia a Kelly, não conhecia o Felipe, a Vânia, os Iurk, a Marília, não conhecia Rodrigo Gava, um de meus líderes espirituais, Ana Maria e seus dois piás, não conhecia a Desi, o João e a pequena Ana Clara, não conhecia a Priscila e o Alexandre, suas meninas, uma gente que faz de Curitiba também a minha aldeia, eu não conhecia o Bar do Tito que minha Morena, demonstrando uma capacidade impressionante de saber o que me vai na alma, fez questão de me apresentar no instante seguinte em que pusemos os pés em Ponta Grossa pela primeira vez juntos – que bar, que balcão, que chope. Eu preciso levá-la a Caxambu pra conhecer o Bar do Paulão que o Leo Boechat já conhece – por indicação minha. Eu ainda não conhecia o Julinho, ainda não existia o Sabiá, um de meus bares preferidos em São Paulo, eu ainda não conhecia tanta gente, tanta coisa, tudo isso em oito anos – uma vida, não? Eu ainda não conhecia o Toquinho, o Toquinho veio pro Rio com a Morena no final de 2012, o Toquinho também não está mais aqui mas hoje temos a Frida, que faz companhia ao Pepperoni que deu tanta vida ao Toquinho quando ele chegou já bem velhinho. E quem me deu tanta vida quando vida me faltava, também quando veio de vez o Toquinho, foi ela, a Morena. Eu não conhecia Paris. Fomos eu e Morena pela primeira vez juntos à Paris. E pela segunda vez, também juntos. Voltei à Portugal, apresentei minha família portuguesa à Morena, meus queridos de Setúbal, em Portugal ainda conheci a Tainá (do Paraná, como a Morena), o Orlando e o pequenino Simão.
Fomos à Fátima, em Portugal. Chorei em cada igreja a que fomos. Eu choro no dia do Círio de Nazaré. Eu chamo Nazaré de Nazinha. Eu sou devoto de São Judas Tadeu. Eu tenho ele ao lado da Nazinha na cozinha de casa. São Sebastião também guarda nossa casa. E Orunmilá. E Exu. E Tupinambá, com quem não falo há um bom tempo.
Nós queremos muito um filho. Eu tenho pra mais de dez afilhados. Eu quero ter um filho. Haveremos de chamá-lo Leonel, se for menino. Eu deixei de fumar, larguei os dois remédios pra pressão alta que eu tomava todos os dias, eu amo tomar mate com a Morena nos dias mais frios, eu morro de saudade dos meus fantasmas, eu morro de medo de morrer mas eu não tenho medo dos mortos. Vidal é, acho – será? – o meu amigo mais antigo, a Roberta é minha amiga mais amada, como se fosse também a mais antiga. Tenho visto pouco meu pai. Morro de saudade do Fausto Wolff e dos nossos porres no Bar Brasil ou no Lucas, em Copacabana, do Marco Aurélio, do Fernando Toledo, vejo menos o Toledo do que eu gostaria, vejo menos a Gloria do que eu gostaria, tenho um compromisso agendado para quando fizer 18 anos a filha da Roberta, lembro com nitidez impressionante do gol anulado feito pelo Zico na Copa de 78, lembro com nitidez impressionante do gol do Rondinelli no final de 78, quando meu pai me levou pra ver uma final no Maracanã pela primeira vez, morro de saudade do Maracanã, morro de saudade da Rosa, que sei que morre de saudade de mim. A Morena levou, certa vez, o irmão da Rosa pra entrar no gramado de mãos dadas com o time do Flamengo. Quero repetir o número com um filho nosso (acho que nesse dia eu quase-morro). Tenho saudade do Brizola. Tenho saudade da dona Zezé. Tenho medo de médico, já tive mais. Tenho amor ao Rio de Janeiro, à Tijuca, e vão se passar 500 anos, e eu nunca vou me esquecer do dia em que encostei-me com a Morena, trêmulo por dentro, no balcão do Bar da Dona Maria, que não existe mais.
Quando eu morrer – e que demore pra esse dia chegar! – quero ouvir De que callada manera no velório. Se eu morrer antes, Leo Boechat não estará no meu velório. A Morena sabe que é o que eu quero que toque. A Morena sabe. A Morena.
Por tudo, é por ela e pra ela que, na minha fantasia, farei 48 anos depois de amanhã. Por ela e pra ela olho pra frente sem perder de vista suas mãos, seus olhos cor-de-mel, sem deixar de ouvir a sua voz firme e a sua doçura que conheci por conta da mesma tenacidade e do mesmo afeto, do mesmo carinho que ela teve para descobrir em mim a vida quando eu achei que ela não mais existia. Se isso não for amor, cheguei até aqui e não aprendi nada.
Até.”
Que coisa linda, me permitam o auto-elogio.
Que coisa linda perceber não apenas o fato de que Leonel foi, sim, mencionado explicitamente mais de um ano antes de nascer. Que coisa linda perceber os movimentos da vida, os abalos sísmicos, o rearranjo das placas tectônicas, o tanto de gente que chegou pra mais perto, o tanto de gente que se afastou sem perder a importância, que coisa linda é ler e reler o que escrevemos e que atesta a coerência do que sentimos.
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
ASSINATURAS DA NEWSLETTER
De umas semanas pra cá um troço me chamou à atenção.
Chegaram assinantes novos que optaram pela assinatura paga (só depois fui ver que a própria plataforma oferece essa possibilidade).
O que me fez pensar que passarei a oferecer material exclusivo para esses assinantes (e isso pode ser vídeos exclusivos, podcasts exclusivos, textos exclusivos…) - a pensar.
Já na semana que vem isso vai acontecer.
A de hoje está chegando 48 horas antes pra quem é assinante.
E a partir de agora, lembrando, somente os assinantes pagos estão habilitados a comentar os textos publicados.
Você que tá chegando agora, considere essa possibilidade.
A casa agradece.
UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, a playlist que montei, há uns dias, no Spotify.
Na última edição eu já indiquei a playlist a vocês, que me lêem.
Mas eu a incrementei.
Ei-la; ela está aqui ou, se preferir, ouça já!
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e traz as canções que mais gosto e que têm a cidade do Rio de Janeiro como referência - e ela está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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