MEDOS, ALICERCES DO CARÁTER
Eu escrevi, certa ocasião, inspirado em inspirado texto do Simas, um pequeno tratado sobre a importância do medo imposto às crianças como formador de sólidos alicerces do caráter de um homem. Breve pausa: Leonel fará 3 anos daqui a 16 dias e fui incapaz, até o momento, de colocar-lhe medo uma única vez que tenha sido. Volto.
Falei, no tal texto a que me referi, sobre diversos medos que me foram jogados no colo ao longo da infância, fiz a confissão no sentido de que foram todos fundamentais para minha formação, mas deixei de comentar sobre os medos que, mesmo depois de burro velho, papai – o principal arremessador de pânicos em nossa direção, minha e de meus irmãos – continuou fazendo questão de nos apresentar. Hoje quero ser detalhista, preciso, verdadeiro.
Nesse tal texto, de abril de 2008, e notem como o tema já me preocupava, conto que papai tinha um casal de amigos que sofrera um pesado viés por tabela: o filho de um casal muito amigo desse tal casal amigo de papai (no texto dou os nomes, devasso tudo!), que dera carona a um amigo, fora preso por conta de uma blitz policial que encontrara, no porta-luvas de seu carro, uma quantidade considerável de maconha - conto melhor sobre isso no Tijucanismos.
Aquele enredo era um dos motes que meu velho pai usava para me manter longe das drogas, as ilícitas, seja feita a ressalva. As lícitas papai curtia. Em 1978, eu tinha 9 anos de idade, a poucos minutos da estréia do Brasil na Copa do Mundo papai arremessou uma lata de Brahma no meu colo e urrou, como um huno:
– Beba, porra! Beba!
Mamãe ensaiou um muxoxo mas papai foi enfático:
– É a primeira Copa do Mundo que o moleque vê. Não te mete nesse departamento!
Bebi felicíssimo aquele líquido amargo e até hoje, quando dou o primeiro gole de cerveja, sinto-me com 9 anos de idade recebendo o tesouro das mãos de meu pai. Dito isso, vamos em frente.
Bem lembrou-me o Simas do caso do menino Carlinhos, seqüestrado em 02 de agosto de 1973 na rua Alice e jamais encontrado. O menino Carlinhos foi muito utilizado na minha criação, como vou lhes contar. Antes, porém, faço breve digressão.
O menino Carlinhos nunca mais apareceu, mas rendeu foi matéria. Implacavelmente a imprensa falada, escrita e televisada dava notícias de que o pobre menino havia sido encontrado: em Caxambu, em Cambuquira, em São Gonçalo, em Florianópolis, no interior de São Paulo, até uma ossada encontrada na Baía de Guanabara inventaram que era do garoto, e daí ouviam a família, faziam perícias, dava-se um rebu que resultava sempre no mesmo… Não, não era o Carlinhos.
É que a imprensa tem seus modos, podem reparar: há uma mortandade de peixes na Lagoa Rodrigo de Freitas? Lá vão, aos atropelos, entrevistar o biólogo Mario Moscatelli. Houve um assalto na Fonte da Saudade? Teremos Ana Simas, presidente da associação de moradores, sapateando em todas as manchetes. Uma capivara pariu? Entrevista coletiva com Cora Rónai, e por aí. Repórteres (cada vez mais fracos) e estagiárias das redações (apud Nelson Rodrigues) têm no bolso os nomes de sempre para os fatos de sempre. Vai daí que foi assim durante muitos anos. Um louro qualquer era pescado pela imprensa, como um tesouro pronto pra virar manchete: encontramos o Carlinhos!
Na casa de meus avós sempre que a TV ou o rádio noticiavam o troço dava-se uma bulha tremenda. Minha bisavó ajoelhava e erguia as mãos em prece em direção ao céu, minha tia Idinha corria as contas do terço, minha avó fazia uma prece contida para que o espírito de Emmanuel conduzisse os trabalhos dos investigadores, e meu avô Milton, mexendo as pedrinha de gelo dentro de seu copo de Teacher´s, dizia sempre a mesma frase:
– Que palhaçada, o Carlinhos morreu!
Pois então, vamos ao que quero lhes contar.
Saía da vila em direção ao Monte Sinai, clube ao lado de nossa casa, e meu pai dizia me segurando pelos ombros:
– Atenção, viu? Olhe para os lados, não fale com estranhos, podem ser os seqüestradores do Carlinhos…
Quando comecei a voltar sozinho da escola, de ônibus, e eu pegava o 638, minha bisavó foi sempre implacável:
– Nada de conversar com quem você não conhece. Lembre-se do pobre Carlinhos…
Eis que hoje percebo com clareza que o pobre-diabo raptado mora em mim, enterrado como um sapo de macumba (apud Nelson Rodrigues, sempre).
Até hoje sou um túmulo na rua. Negava cigarro a quem me pedia (larguei o vício no começo de 2017). Não emprestava o isqueiro nem a fórceps. Gente que vem forçar intimidade em fila de padaria, fila de banco, qualquer fila, não tem nada de mim além do mais absoluto desprezo. Ando, até hoje, como uma piorra no meio da rua. Rastreio meu trajeto. Viro pra trás em busca de meus algozes. Olho para os lados com a intermitência de um farol. Cada estranho, cada um que se aproxima é, potencialmente, meu seqüestrador.
E o que é mais bonito: acho tudo isso normalíssimo.
Era o que eu queria lhes contar.
TIJUCANISMOS
Na última terça-feira chegaram em casa os primeiros exemplares do Tijucanismos, meu livro que acaba de ser lançado pela Mórula, a editora do meu coração, com capa e ilustrações de Humberto Hermeto, prefácio de Luana Carvalho e apresentações de Luiz Antonio Simas e Juliana Monteiro.
Na quarta seguiram de volta pra editora, todos assinados e com dedicatória, e já foram despachados pra quem o comprou na pré-venda.
Se você não entrou nessa leva, você pode comprar Tijucanismos aqui.
Até.
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