Eu costumo dizer, e não é de hoje, que eu sou o maior biógrafo dos que me cercam - o maior, e explico. Desde muito antes da chegada e da explosão dos smartphones, desde muito antes!, que eu ando, sempre, carregando ou uma câmera, ou uma filmadora, ou mesmo um gravador daqueles jurássicos de fita K7. Sempre fui um obcecado por registros.
E hoje, do alto dos meus quase 52 anos de vida, tenho comigo, para além do acúmulo de saudade - tenho saudade de gente, saudade de lugares, saudade de cheiros, sou um homem carregado de saudade - uma quantidade inacreditável de registros, boa parte deles facilmente localizáveis. Isso porque, para além da obsessão por registrar, tenho comigo a obsessão da organização dos registros. Infelizmente me falta tempo para organizar tudo, quem sabe um dia?, e por isso às vezes a busca por algum registro demanda tempo e paciência.
Um exemplo? Agora mesmo.
Dia desses bateu-me o fio o Moyseis Marques (notem que sou uma múmia usando a expressão bateu-me-o-fio). Pedia-me, em tom agônico - foi o que me pareceu - o arquivo original do vídeo que publiquei, há anos, no meu humílimo canal no YouTube (aqui, o meu canal pessoal, não confundir com o canal da série Botecos do Edu, aqui) que mostra justamente ele próprio, acompanhado pelo violão do Tiago Prata e pelo cavaquinho do Gabriel Cavalcante, cantando Imperial, samba de Wilson das Neves e Aldir Blanc, diante de uma platéia privilegiada: justamente Aldir Blanc, meu querido e saudoso Aldir, que partiu num rabo de foguete há 6 meses e 2 dias, uma saudade que não passa (na foto abaixo, Moyseis Marques, Tiago Prata e Mello Menezes, no Estephanio´s Bar, em 10/09/2007, há quase 14 anos portanto, já no final da noite).
É sobre esse dia - e sobre essa noite, a madrugada que atravessamos juntos como loucos - que quero lhes contar hoje.
Vinícius Reis, camarada meu, estava rodando Praça Saenz Peña, seu primeiro longa-metragem. Com Chico Diaz, Maria Padilha, Isabella Meirelles, Gustavo Falcão, Maurício Gonçalves, Guti Fraga, Regina Mello e participação especial de Aldir Blanc, o filme precisava de uma seqüência passada em um bar, um diálogo entre Chico Diaz (no papel de um professor) e Aldir Blanc no papel de Aldir Blanc mesmo. Qual bar serviu de locação? O Estephanio´s, bar que eu mantive com meu irmão mais velho e mais um amigo na esquina da rua dos Artistas com a Ribeiro Guimarães. Bar, diga-se, que Aldir freqüentava com alguma assiduidade dentro das possibilidades que sua reclusão permitia.
10 de setembro de 2007 foi o dia escolhido pra filmagem. Uma segunda-feira, dia mais tranqüilo no bar. Mas não tão tranqüilo a poucos metros daquela esquina, no Renascença - onde acontecia, há pouco mais de 2 anos, o Samba do Trabalhador.
Aldir, quando saía de casa (e em 2007 ele já era um recluso incorrigível), movimentava o mundo. Em muitas ocasiões, e naquele dia não foi diferente, convocava Mello Menezes e a mim para a escolta. E assim chegamos ao Estephanio´s.
A tarde caía feito um viaduto, a filmagem correu a contento (depois de Aldir beber centenas de chopes, o que fazia com velocidade e maestria impressionantes), a esquina foi enchendo de gente, eu fui convocando alguns amigos por telefone e SMS (vejam como sou uma múmia), Aldir foi pra varanda pra dar entrevista (foto abaixo, o sujeito de bata africana à direita da foto sou eu), e a turma foi pra dentro do bar depois que desmontado o set de filmagem.
Não lembro de quem partiu a idéia mas convocamos também o Gabriel da Muda, que chegou diretamente do Samba do Trabalhador.
Fato é que armou-se a roda dentro do bar. Estavam, além de mim, é claro, Arthur Mitke, Rodrigo Ferrari, Beto Cazes, Vera Cazes, Mariana Blanc, Mari Blanc, Moyseis Marques, Mello Menezes, Gabriel da Muda, Tiago Prata, e Aldir cantou Molambo (tem registro em vídeo aqui), cantou O bêbado e a equilibrista (aqui), são interpretações blanquianas, o homem cheio de cana, comovido feito o diabo (à sua moda), afinadíssimo, e eu gosto particularmente dele cantando Xica da Silva, samba-enredo do Salgueiro (paixão em comum que tínhamos) de 1963 - vídeo abaixo.
Mas a cereja do bolo da noite veio quando tudo parecia ter terminado (parecia pros que não conheciam Aldir Blanc, o homem que singrava pela noite, quando saía de casa, para só ancorar na Garibaldi depois do sol dar as caras).
Eu não lembro da dinâmica do momento. Não lembro quem sugeriu a coisa, sei que aconteceu. Alguém disse ao Aldir que Moyseis cantaria Imperial, samba dele e do Wilson das Neves. Não consigo lembrar também se os dois - Moyseis e Blanc - já se conheciam, acho que não. Mas lembro bem da sobrancelha do Aldir apontando surpresa, ele atento diante do Moyseis. Gabriel da Muda no cavaco, Pratinha no violão, Moyseis cantando lindamente, de forma lancinante, e ele, meninos, eu mesmo vi, Aldir Blanc aos prantos diante daquilo.
A noite acabou com a seguinte formação no Sopão 95, um clássico fim-de-noite na Pereira Nunes, ali pertinho: Mello Menezes dormindo à mesa, Mari Blanc, numa cena recorrente, desesperada pra ir embora, e Aldir bebendo numa velocidade estonteante diante do Gabriel, um menino, ainda, tentando acompanhá-lo.
Ainda contarei muitas histórias envolvendo Aldir. Assim fica mais fácil de lidar.
PEQUENOS TESOUROS QUE TRAGO COMIGO
Correndo atrás do vídeo original desse momento, como lhes contei, me deparei com dois tesouros que guardo comigo e que me arremessam sempre pro passado, de onde sempre volto mais emocionado, mais feliz, mais grato pelos desenhos que a vida imprimiu e ainda imprime em mim.
O primeiro é esse, que me lembra que, a convite (uma blague que deu certo!) do Moacyr Luz, gravei como voz-guia todas as faixas do seu disco Mandingueiro. Quando gravei Pra que pedir perdão? fiz dueto com ele, Aldir, um dia de nunca mais esquecer.
O outro é esse simples pedaço de papel com a letra de Resposta ao tempo, que vi ser gravada por Aldir no estúdio em que foi gravado seu disco Vida Noturna - aliás, um disco belíssimo, produzido justamente pelo Moacyr Luz - em Copacabana.
Dei de cara com esse tesouro dia desses e encasquetei a cabeça pra decifrar a letra do Aldir, letra indecifrável sempre foi outro clássico blanquiano.
Quanto mais calibrado, mais indecifrável a letra.
E só dona Mari sempre foi (e ainda é) capaz de compreender o que sua alma gêmea deixava escrito nos livros que dedicava, nos discos que assinava, nos alfarrábios que distribuía.
Fiquei naquele mando-não-mando, vou mexer com as feridas dela, não-sei-se-devo mas acabou que mandei. Perguntei, sucinto, cheio de dedos:
— Oi, querida... você consegue me dizer o que Aldir escreveu?
Veio uma mensagem de voz - deliciosa, ela gargalhando:
— Esse aí ele devia estar em altas bebedeiras… porque olha a letra, nem eu! [e riu] Agora… “pro Eduardo nosso filho com o carinho” do Aldir, claro, está escrito com a minha letra e é a tradução do que ele [ela pausou, a voz embargou, ela chorou igualzinho a ele naquela noite diante do Moyseis] escreveu.
E desligou.
Aldir: uma saudade que não passa.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
Dúvidas, sugestões, críticas? É só responder esse e-mail ou escrever para edugoldenberg@gmail.com
📩 Se você gostou do que viu aqui e ainda não assina a newsletter, inscreva-se no botão abaixo e receba por e-mail, uma vez por semana, sempre aos sábados, o Buteco do Edu. E se você achar que algum amigo ou alguma amiga pode se interessar pelo papo de botequim, encaminhe esse e-mail, essa newsletter, faça correr mundo esse balcão virtual.