Minhas mais remotas lembranças da infância no período das festas de final de ano vêm sempre acompanhadas do cheiro de talco e de alfazema que se misturavam em minha bisavó, Mathilde, a quem chamávamos Bia, e que aparece na foto abaixo, dançando comigo e sorrindo às escâncaras, justamente numa noite de Natal, no apartamento 203 do edifício da rua São Francisco Xavier, 90, na Tijuca, onde morávamos (depois de anos no sexto andar do mesmo prédio, o Jureva, que está vivo ainda lá).
Infelizmente não há registro do ano mas eu presumo que seja 1978 ou 1979.
Minhas mais remotas lembranças da infância no período das festas de final de ano são alegres, são de noites de Natal de muita festa, a despeito de algumas lembranças constrangedoras como as que me arremessam pros instantes em que éramos obrigados a ler - as crianças - trechos de mensagens de cunho religioso modorrentíssimas enquanto os adultos (maioria esmagadora de espíritas) produziam máscaras nos rostos que fingiam contrição depois de horas de muita bebida, ou seja, todo mundo de porre fingindo emoção diante dos patéticos textos que líamos. Porque bebia-se de forma olímpica nas festas da família.
E sempre cabia à criança mais nova (que era sempre meu irmão mais novo, coitado) o constrangimento ainda maior de colocar a imagem do Menino Jesus numa manjedoura que mamãe punha diante do presépio, numa mesinha de canto - o que fazia o renque de mulheres da família chorar.
E havia sempre o indefectível peru assado, presunto com fios d´ovos, arroz com passas, castanhas portuguesas compradas no Lidador (isso era tão chique, à época, que meu pai bradava, a cada pessoa que chegava, essas castanhas são portuguesas e eu as comprei no Lidador!, e vinha sempre um oh ou um ah de volta), nozes, amêndoas, rabanadas e a única exigência de minha bisavó: queijo Palmyra.
— Se não tem queijo Palmyra, não tem Natal! - ela dizia às gargalhadas sempre que vinha chegando dezembro.
Era uma alegria.
Mas essa alegria, a alegria da noite de 24 de dezembro (havia sempre farta ceia na casa de meus pais) e a do almoço do dia 25 de dezembro, morreu junto com minha bisavó, em 17 de dezembro de 1982 - o que significa dizer que tive natais felizes apenas treze vezes (de 1969 a 1981).
A Bia era a matriarca na mais bonita e potente acepção da palavra. Soberana, reunia em torno de si toda a família, a parentalha, seus muitos filhos e filhas, noras, genros, seus netos e suas netas, seus bisnetos e suas bisnetas. O dia 06 de maio, dia de seu aniversário (morreu com 89 anos planejando sua festa de 90 no Salão Nobre do América), era quase feriado na família Monteiro de Barros.
Havia, nos seus aniversários, sempre muita pompa, circunstância e discurso de um de seus filhos, Carlos Henrique, o tio Hique, advogado (casado com Francis depois que separou-se da Claurita), que começava com um solene “mamãe…” e que fazia todo mundo (ou quase todo mundo) chorar de fungar com força.
Tio Hique - pequena digressão - era cavalo de Tupiara, caboclo que virava e mexia baixava na casa de alguém que recorria ao invisível. Conta a lenda familiar que foi ele, Tupiara, que um dia aproximou-se de meu pai, Isaac, para dizer, dando fortes porradas em seu peito:
— Ainda vamos trabalhar juntos, meu filho.
E papai começou, pouco depois, a ser cavalo de Tupinambá, outro caboclo brasileiro - e que inclusive baixou na maternidade quando Leonel nasceu (episódio contado em Tijucanismos - que você pode comprar aqui).
Voltemos ao Natal e à minha bisavó, a soberana.
Tão soberana - faço brevíssima digressão de novo - que eu me tremi de revolta ouvindo, certa feita, e em Paris, uma prima (neta de um dos filhos de minha bisavó) falando com desdém de dona Mathilde.
Com ar de revolucionária de 1789, dizia gesticulando e comandando a guilhotina imaginária:
— A bisa era careta, reacionária! - e dizia isso sapateando como uma furiosa e rodopiando uma taça de Pinot Noir.
Como se fosse possível exigir comportamento diferente de quem nasceu em 1893.
Mas voltemos.
Dali em diante minhas noites de Natal foram um fiasco.
O público presente às ceias, que era público de Fla x Flu, escasseou.
E passou a haver uma nostalgia, uma melancolia, um vazio que eu diria quase lancinante.
Até que veio 2018 - e com ele, Leonel.
Quero repetir o que disse dia desses: nenhum amigo, nenhuma amiga, ninguém foi capaz de sequer chegar perto de dimensionar o que é ter um filho, o que é ver esse filho pela primeira vez, o que é cuidar desse filho, o que é vê-lo crescer e virar uma pessoa… e o Natal de 2018, depois de 37 anos de natais sem a soberana, passou a ser um dia especial.
Esse Natal, o de 2018, então, o primeiro dele - com pouco mais de 6 meses de vida -, foi todo ele de clichês. Comprei roupa igual, pra mim e pra ele. Chamamos pra ceia, conosco, amigos que coincidentemente tinham acabado de ter seus filhos - duas meninas, na verdade, Elis e Madalena - e foi uma noite de não se esquecer. Assim como o almoço do dia 25, na casa de meus pais, foi também de emocionar.
Não havia minha bisavó, não havia sequer a minha avó, mãe de mamãe, mas ali estava meu filho no colo de minha mãe - e as emoções me arremessando de volta a um passado em que minhas noites de Natal eram felizes.
2019 (passamos em Morretes), 2020 (por conta da pandemia, sozinhos em casa com direto a uma descida pra casa dos vizinhos, Candinha e Simas), 2021 (novamente na casa de meus pais, como em 2022), e foram mais quatro noites de Natal emocionantes.
A ceia de 2023 será de novo nos Alpes Tijucanos, no Alto da Boa Vista, onde moram, ainda, e desde 1994, meus pais - completarão, em junho, 30 anos naquele portentoso apartamento.
E mais uma vez verei os olhos do meu filho brilhando diante da árvore, diante das janelas, onde Papai Noel deixará seus presentes, diante dos avós - ter avós é um privilégio que eu sempre soube valorizar (e Leonel passará o Natal com as duas avós e com o avô, meu pai).
E serei feliz de novo, pelo sexto ano seguido, depois de tantos anos sem o brilho da soberana.
Quero, pois, desejar a todos vocês que me lêem, meus poucos mas fiéis leitores, um Natal bastante significativo - que é o que sempre desejo uma vez que não sei exatamente o que significa um Feliz Natal.
Semana que vem teremos a última newsletter de 2023 - quando farei, como de costume, uma prece - uma carta - aberta pra que 2024 chegue mais bonito.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, o texto Um casal espetacular, publicado em 19 de dezembro de 2009, portanto há pouco mais de 14 anos, aqui.
“Sou amigo de um casal que, quero lhes dizer, é, lato sensu, espetacular. Manterei, por absoluta discrição, o nome dos dois. Não por pudor ou mesmo para simplesmente não expô-los. Mantenho seus nomes em segredo por absoluta convicção de que, expondo-os aqui, acenderei a lâmpada da falta de senso de uma porção de gente que, atrás das benesses econômicas advindas do convívio com ambos, passará a forçar uma intimidade que será uma janela aberta para o infinito e para o desagradável. Dito isso, feito o brevíssimo intróito, vamos ao que quero lhes contar sobre os dois.
Ele é um fraterníssimo amigo, e recente amigo. Se eu fosse fazer uma equação (que seria estúpida já que sentimento não se sistematiza matematicamente), diria mesmo que nossa relação é absurda. Somos tão próximos, e tão íntimos, tão umbilicalmente ligados, que quando penso no tempo de convívio que temos sou obrigado a falar em vidas passadas e outros bichos do gênero. Ela, conseqüentemente, também me é recentíssima.
Ele bebe como um cossaco. De segunda a segunda, e sempre com promessas de nunca mais beber descumpridas logo após o despertar, ele está ali, na mesa de um bar, encostado num balcão qualquer, bebendo cerveja como quem respira e sem perder – eis a ressalva necessária – o prumo. Trabalha como um remador de Ben-Hur. Ama o que faz – o que faz dele um homem feliz – e é um homem que não transige, em NENHUMA (com a ênfase szegeriana) hipótese, com a hipocrisia, com a falsidade, com a mentira, com a sordidez que pulula por aí. Dotado de baixa estatura, é um gigante quando fala. Emociona-se com extrema facilidade e semana passada mesmo – foi quando decidi que lhes contaria esta história – deu de chorar (o que faz com freqüência) quando me contava sobre um recente episódio de sua vida, sentindo-se traído por alguém a quem considerava como um irmão. Nada teme, a não ser a própria mulher. E vocês entenderão a razão do permanente pânico de meu amigo, ele que convive com a mulher como o japonês que convive com o Japão, sempre com a ansiedade pânica diante da iminência de um terremoto.
Ela é um doce. Fala mansa, extremamente ciosa de seu papel de companheira, extremamente ciosa de que quem brilha ali, no palco do dia-a-dia do casamento, é ele, condescendente, terna, dulcíssima (perdoe-me a repetição inevitável), ela tem extrema paciência com o marido, dessas que só as enfermeiras têm, com as obsessões do marido, a quem compreende sempre com uma festinha na cabeça, um sorriso terno, quase maternal, e vão levando, assim, a vidinha deles.
Ocorre que – eis o quero lhes contar – vira-e-mexe (bimestralmente eu diria, pelo que venho observando há anos) ela é possuída (e não há termo mais adequado para o que se passa) por uma espécie de entidade que faz com que ela modifique, agudamente, o comportamento diante do olhar espantado da assistência do momento. O troço é quase um transe. E dá-se, sempre, à mesa de um bar qualquer.
Ele está lá, falando engrolado (quis dizer engrolado mesmo), rigorosamente de porre depois de uma intensa maratona com os amigos, e diante do olhar macio e tênue da companheira. Ela também bebericando, mas numa proporção evidentemente desigual. Vai que ele diz:
– Vamos, querida?
Meus poucos mas fiéis leitores… eis que dá-se a coisa.
Ela fecha os olhos, meneia a cabeça, sapateia discretamente, vira a cerveja do copo num sem-pulo e, como se fosse um Flávio Cavalcante erguendo o braço para “nossos comerciais, por favor!” (quem não se lembra disso?), grita para o garçom:
– Mais uma, por favor!
Ele geme:
– Amorzinho… não aguento mais… Vamos?
Segue a possessão:
– Vamos?! Vamos?! Você só pode estar brincando… Eu te suporto bebendo todos os dias e nunca pio, nunca digo um “a”. Hoje quem vai beber sou eu.
O mais bacana – e o mais engraçado – é que SEMPRE (com a ênfase szegeriana de novo) depois desse anúncio vem a seguinte frase:
– E eu vou pagar tudo!
Os componentes da mesa se excitam e ela vai em frente:
– Tudo! Tudo! Peçam bebida! Peçam comida! É tudo por minha conta!
E ri uma gargalhada de cigana que, franca e sinceramente, trata-se da gargalhada impossível. Inimaginável que aquela mulher tão miúda, tão amena, seja capaz de gargalhar trovejando – mas ela gargalha.
Dá-se sempre a mesma seqüência. Ele, falando pastoso e alisando a própria cabeça, gane:
– Você tem noção de a quanto vai essa despesa?
Ecoa o trovão da gargalhada aguda de minha amiga. Sacando do cartão de crédito, exibe furiosamente o Visa para a assistência e ameaça:
– Não há limite! Dinheiro há! Eu pago tudo! Tudo, ouviu?
Ele passa a ser, então, o resignado.
Há coisa de uns meses, mesa de vinte, veio a conta: seiscentos reais.
Dentre os vinte, um novato no pedaço. Constrangidíssimo, vendo o olhar de desespero do sujeito diante da determinação perdulária da mulher, estendeu uma nota de cinqüenta reais em direção a ela e disse, tímido:
– Olha… É minha primeira vez com vocês… Não temos intimidade alguma, não fica bem que vo…
Ela arrancou a nota da mão do incauto e a arremessou, amassada, em seu rosto:
– Sorte a sua! Eu pago tudo! Tudo! Tu-do!
Olha, com olhar de desdém, pro próprio marido, e debocha:
– Não pago? Diz pra ele! Pago ou não pago?
Como um vira-latas, cabisbaixo, responde:
– Paga.
E anteontem – o tal mote que me inspirou – deu-se o mesmo (a coisa dá-se a cada – o quê?! – dois meses, com ligeiro agravamento no último bimestre do ano). Dez amigos bebiam desde cedo até que ele disse, alisando o joelho de sua menina:
– E aí? Vamos?
Isso foi por volta das oito e meia da noite.
O furdunço foi terminar por volta da meia-noite.
Ela – é impossível acostumar-se à transformação – virou vento diante da súplica do marido de porre. Mandou servir as mais finas iguarias (presunto de Parma, salaminho, queijos de todas as procedências) e anteontem foi internacional. Quando pediu ao garçom mais cerveja, e o pobre-diabo trouxe Brahma, foi taxativa:
– Quero as belgas! As belgas!
Ele ajoelhou-se:
– Aqui não, meu amor… aqui, não! Sabe quanto custa uma garrafinha dessas?
O dono, que já babava no balcão fazendo as contas do pendura do malandro, ria.
– Quanto? – ela disse de pé, rodando a saia e sorrindo um sorriso-padilha.
– Vinte e cinco, trinta…
Ela estacou. Virou-se pro dono e disse:
– Quanto é a mais cara da casa?
– Setenta paus.
Como uma toureira, ergueu a saia, sapateou, foi ao balcão, colou o nariz no nariz do dono e, num monumental gesto, num átimo, virou-se pro marido e gritou, de soslaio pro dono do estabelecimento:
– Quantos ml?
– Um litro.
– Cinco! Cinco garrafas! Pago! Pago! Pago!
Impressionante.
Até.”
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
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A casa agradece.
UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, uma das playlists que montei no Spotify - Rio de Janeiro - que já conta com 122 seguidores.
Ela será permanentemente incrementada (e eu aceito sugestões que podem ser enviadas por e-mail!).
Ela está aqui ou, se preferir, ouça já! - abaixo.
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e, repito, está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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