Poucas coisas sei sobre a foto abaixo. Sei que foi feita no dia em que comemorávamos o aniversário de Nei Lopes, que aparece no canto inferior direito, sei que Moacyr Luz e Aldir Blanc (ele menos, claro), nessa época, batiam ponto no Bar da Dona Maria quase que todos os dias, sei que eu estava lá (como estava, também, quase que todos os dias), que a noite foi longe e marco de mais uma página dentre tantas as escritas no número 13 da rua Garibaldi, na Tijuca.
Eu disse na Tijuca mas aquele canto da cidade notabilizou-se como sendo a Muda. E é sobre o Bar da Dona Maria (também) que quero lhes contar hoje. Nelson Sargento disse que Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve. E é exatamente a sensação que tenho quando lembro do saudosíssimo Bar da Dona Maria.
Corria o ano de 1994 quando conheci - conheci de verdade, de ser apresentado e tal - o Moacyr. Desde 88/89, aproximadamente, queria conhecer de perto o sujeito que tinha gravado um disco que tinha deixado alucinado um garoto de quase 20 anos de idade, eu mesmo, que já tinha tido a oportunidade de vê-lo, de passagem, no começo dos anos 80, levado por um professor - e eu tinha pouco mais de 14 anos! - no Caras & Bocas. Verinha, então casada com esse professor meu (que havia morado com o Moacyr), fez as honras e me apresentou o Moa dentro daquele bar do qual não saí até hoje - faço a confissão.
Eu era (ainda sou, por óbvio, mas agora somos amigos) fã demais do Moacyr. Já o havia visto tocando e cantando no Caras & Bocas, como acabei de lhes contar, depois no Erva Doce - os dois na Tijuca. Até que veio aquele final de tarde em 94 e a minha vida nunca mais foi a mesma. E nunca mais foi a mesma justo porque, como disso há pouco, passei a bater ponto, todos os dias, no Bar da Maria.
O que vi e vivi naquele botequim de pé direito alto, balcão de mármore, numa rua tranqüila da Tijuca, daria mais-que-livro.
E se daria mais-que-livro, não vai caber aqui. Mas foi impossível pra mim, com apenas 25 anos de idade, resistir. Recém-formado, trabalhava quase que de dentro do bar. Tudo ali pra mim era encanto. Beber com o Moa, com Aldir, virar amigo desses caras, freqüentar as casas deles (moravam, à época, no mesmo prédio), era como mágica (na foto abaixo estão Nilson Gouvêa com o tamborim na mão, Baffinha, Fernando [meu irmão mais velho], eu e Moacyr - não lembrei, nem à fórceps, o nome da mulher ao lado do Baffinha).
Esse encantamento todo somado à escassez, à época, de celulares, câmeras digitais e outros bichos tecnológicos, fez com que eu tivesse pouquíssimos registros daquelas manhãs, tardes e noites na rua Garibaldi. Sim, manhãs. Porque não era incomum que Moacyr me convocasse pra primeira do dia antes das 11 da manhã em seu apartamento, no térreo do edifício pouco metros depois do Bar da Maria. Às vezes passávamos os dias lá recebendo os engradados de Antarctica que pedíamos. Noutras tantas, íamos pro bar poucas garrafas depois.
E foi no bar que vi e que vivi (repito de propósito) momentos de antologia: Moacyr e Aldir, sempre na condição de anfitriões, apresentando as iguarias da dona Maria pra (vai de memória, sem qualquer espécie de ordem) Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Zé Keti, Walter Alfaiate, Paulo César Pinheiro, Luis Fernando Veríssimo, Jaguar, Fausto Wolff, Luiz Carlos da Vila, isso pra não falar dos personagens locais, todos personagens das crônicas que Aldir publicava: Baiano, Xanduca, Serjão, Walter Hack, Zamith, quantos outros!
O Bar da Dona Maria era, de fato (não existe mais, depois de mais de 60 anos de atividade), um portento. Mas quem inventou o bar, não tenho a menor dúvida disso depois de tantos anos, foi o Moacyr.
É sobre ele que falo na seqüência.
O MOACYR
Tenho dúvida em afirmar categoricamente quando foi a primeira vez que eu vi (vi!) o Moacyr Luz, não sei se foi no Caras & Bocas (acho que foi) ou no Erva Doce, mas foi seguramente no começo da década de 80, eu tinha 15, 15, 16 anos de idade, por aí. No Caras & Bocas, na Haddock Lobo (rua em que eu viria a morar em 1999), via o Moacyr com Aldir Blanc, com Paulo Emílio, com Paulinho da Viola (posso jurar que ao menos duas vezes o vi lá), sempre cercado de muitos amigos e de muitas garrafas, e no Erva Doce, na Antônio Basílio, também na Tijuca, mais profissionalmente, o via cantando e tocando violão, canções belíssimas e muito antes da gravação de seu primeiro disco.
Uma curiosidade: minha primeira batida de carro (numa árvore, pateticamente, na rua Conde de Itaguaí), um Chevette bege de minha mãe, foi saindo (altíssimo!) de uma apresentação do Moacyr no Erva Doce (talvez eu tenha tentado acompanhar seu ritmo, da platéia, o que conseguiria poucos anos depois).
Mais precisamente no final de 1994 (tinha eu meus 25 anos de idade), pedi a uma amiga – Vera Brazão – que me apresentasse ao Moacyr. Era véspera do lançamento de seu disco Vitória da Ilusão (meu preferido, até hoje), no Teatro Carlos Gomes, noite de gala, com quarteto de cordas, participação da Cristina Buarque e da Velha Guarda da Portela, um luxo.
De lá pra cá, muitas histórias, muitos enredos, muitos encontros, muitos desencontros, muitos porres, muitos bares, muita festa, muito luto, muita dor e sobretudo muito samba – que o samba sempre salva, o samba sempre cura, “porque em toda a vida o samba foi cura pra minha doença”.
Por conta do samba, por conta da II Edição da série O Samba na roda – em prosa & verso, tocada pelos meus amigos dos Inimigos do Batente, em que o convidado e homenageado foi justamente o Moacyr Luz (em 24 de agosto de 2013, em São Paulo), Fernando Szegeri pediu-me um texto sobre o Moa, e eu de cara disse a ele que eu falaria da relação fusionada entre a cidade do Rio de Janeiro e o Moacyr.
Não foi mole encarar o pedido, mas escrevi:
“Moacyr Luz nasceu em Jacarepaguá, em 1958, na rua Barão e entre os 2 e 3 anos de idade foi morar na rua do Chichorro, no Catumbi, época da qual guarda a primeira visão de que se lembra: ele, com três anos de idade, e o avô, músico da Banda do Corpo de Bombeiros, o ensinando a escrever música. Foi no Catumbi, na zona norte do Rio de Janeiro – cidade que se confunde com sua obra – que começou essa relação indissociável entre o compositor, a música e a zona norte da cidade.
A zona norte é feito cigana lendo a minha sorte, escreveria anos depois Aldir Blanc, um dos principais parceiros de Moacyr.
Se o avô paterno de Moacyr foi quem apresentou ao neto a música, foram seus avós maternos que o apresentaram aos mercados de rua – ambos eram feirantes.
Moacyr morou ainda em Bangu, em Copacabana, no Méier, no Grajaú, na Muda (um pedaço sagrado da Tijuca), mas notabilizou-se por um fenômeno marcante em sua carreira, uma característica muito forte, um traço de sua personalidade: Moacyr sempre vergou o espaço e o tempo na direção da zona norte – a cigana.
Aliado a esse outro traço, um talento dentre tantos que carrega: o de ser agregador. Começou, a certa altura, a fazer reuniões quinzenais em sua casa, já na Muda, zona norte, na rua Garibaldi (no mesmo prédio em que mora Aldir Blanc até hoje), para onde iam Guinga, Fátima Guedes, Leila Pinheiro, Selma Reis, Oscar Castro Neves, Paulinho Pinheiro, Sérgio Natureza, Chico César, Lenine, Dudu Falcão, Beth Carvalho, Leny Andrade, Cláudia, gente que ia lá só pra tocar, cantar, mostrar música nova.
Foi numa dessas reuniões que mostrou Saudade da Guanabara quando eram apenas suas a música e a letra, samba que já cantara, muitas vezes, no Caras & Bocas, botequim na Tijuca – zona norte – que ganhou fama já por conta do poder agregador do Moacyr.
Dessa primeira versão, Moacyr lembra apenas dos primeiros versos: Eu sei / Que o silêncio da madrugada / Faz a gente chorar por nada / Faz um homem sofrer de amor / Chorei / Com saudade da Guanabara / Meia-noite era noite clara / Meio-dia era o meu cantor.
Beth Carvalho disse ao Moacyr que o samba era ótimo, mas a letra nem tanto. Até que um dia Moacyr, com Paulinho Pinheiro e Aldir em casa, mostrou o samba e pediu uma letra. Aldir subiu e desceu em meia-hora com a primeira metade pronta. E no final do dia, por fax, Paulinho Pinheiro mandou a outra metade daquele que se tornaria hino afetivo da cidade do Rio de Janeiro. Foi feita na Tijuca, zona norte.
Moacyr Luz inventou o Bar da Dona Maria, na rua Garibaldi, na mesma rua em que morava, um bar que não existia… Não tinha nem queijo, não tinha nada! Mas teve visita de Paulinho da Viola, de Luiz Fernando Veríssimo, de Beth Carvalho, de gente que vinha de todos os cantos da cidade pra ver mais aquele sonho do Moacyr virando realidade.
Ali, no Bar da Dona Maria, Moacyr inventou o bloco Nem Muda nem Sai de Cima, que mudou a filosofia da Tijuca – as palavras são do próprio Moacyr.
A Tijuca, que ficava entregue às baratas no Carnaval, quando tijucano tinha que ir pra Região dos Lagos ou atravessar a cidade pra brincar em outros blocos, Simpatia, Barbas, quando não havia a menor possibilidade de ficar por ali…
Moacyr, ao lado das outras pessoas que pensaram o bloco, criou a necessidade de que o enredo falasse da Tijuca ou de um tijucano, e isso começou a recriar um sentimento diferente no bairro. Começava ali essa história do cara achar bacana falar do bairro, do Rio Maracanã, do Paulo Emílio, do Vavá…
E esse sentimento – o amor arraigado do carioca pela sua cidade – que cresceu e se solidificou por diversas razões (que não cabem agora), deve muito ao Moacyr Luz, que incansavelmente, como reza a letra do samba, tira, dia após dia, as flechas do peito do meu padroeiro.
Na mesma rua Garibaldi, Moacyr – voltando no tempo, indo, sabe-se lá, ao encontro dos avós maternos, – deu de reinventar a feira. Cooptou um feirante, arrendou uma barraca e passou a fazer, sempre às sextas-feiras, às margens do rio Maracanã, uma reunião de amigos que, como acontece com tudo onde põe as mãos, virou evento de proporções olímpicas.
Tinha uca, açúcar, cumbuca de gelo e limão, camarão comprado e frito na hora, ostras praticamente vivas, jiló, alho e óleo, uma horda de malucos e de malucas que passavam as manhãs e atravessavam os começos das tardes em torno dele, dono absoluto do pedaço, anfitrião daquela barraca, mais um degrau na trajetória zona norte do Moacyr.
Moacyr foi virando, aos poucos, o embaixador dessa cidade, título que Paulinho Pinheiro deu a Pixinguinha em letra (comovente) feita para samba do Moacyr.
E foi mesmo: São Paulo passou a reverenciar o Moacyr como embaixador de São Sebastião do Rio de Janeiro, e ele passou a freqüentar cada vez mais a cidade injustamente carimbada como túmulo do samba. Fez do Bar Pirajá, a esquina carioca em São Paulo, uma espécie de bunker seu. Ia pra São Paulo levando o violão e, junto com ele, além das seis cordas, os seis postos de Copacabana – do um ao seis – e a zona norte, sempre ela, regando cada pedaço por onde passava pra São Paulo ganhar novo alento – e ganhou, gerou frutos, e não por outra razão é o segundo convidado da série O Samba na Roda, depois da estréia com o mestre Wilson Moreira, também seu parceiro.
Moacyr também sonhou o Samba Luzia, que hoje é realidade, às margens da Baía de Guanabara – foi quem plantou a primeira semente, que germinou.
O Renascença, há oito anos, é um fenômeno. Foi de novo Moacyr quem sonhou aquele encontro entre músicos, às segundas-feiras, e que se transformou naquela loucura que o Andaraí – zona norte! – vive semana após semana, com mais de mil pessoas em volta da mesa que comanda, como se fora, ele próprio, o anjo da velha guarda que cantou sobre verso de seu mais fiel parceiro, Aldir Blanc, abençoando a rapaziada que divide com ele a alegria daquelas tardes.
Mais outra prova de que Moacyr Luz faz das suas para torcer a trilha do samba para a zona norte da cidade? O Samba da Ouvidor, realidade também consolidada pela liderança de Gabriel Cavalcante, tijucano de escol, dileto seguidor da luz do Moacyr, ele próprio já com luz própria, começou com as suas bênçãos. Num dia 16 de setembro de 2006, tendo como testemunhas não mais do que 10, 15 pessoas, Moacyr desfiou sua obra durante uma tarde inteira.
Já escuro, sol posto, a pedidos acabou por reencenar ali um número somente testemunhado pelos felizardos partícipes daquelas reuniões indescritíveis em sua sala-botequim na Muda, cantando a canção que fez sozinho, música e letra, pra seu pai. Luzes acesas na minha memória, escuto o silêncio e sinto saudade da voz de meu pai….
Os presentes sentiam que Moacyr, uma vez mais, estava plantando algo que brotaria forte pra fazer História. Seguiu cantando que luzes acesas movem o curso da minha vida, e fincou-se em cada um a certeza de que Moacyr não é mero espectador do curso de sua própria vida e da vida da cidade que ajudou a reerguer. Moacyr, como ferreiro, torceu o tempo, torceu as ruas, torceu os morros e a geografia da cidade pra mover, ele próprio, o samba para a zona norte da cidade, e dali para todo o Brasil, que reconhece nele o Embaixador da mui amada e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.”
MANDINGUEIRO
Comecei falando do Bar da Dona Maria. Engatei pro Moacyr Luz, tentei imprimir em vocês os sustos e os encantamentos que me arrebatavam nos anos 80, 90, convivendo com essas feras todas que citei, navegando pelos mares que só os otários não notam que existem na zona norte, o Moa sempre como o homem do leme.
Pois façam vocês uma idéia da alegria que foi receber o convite que o Moacyr (maluco!) me fez em 1998. Gravando o disco novo - Mandingueiro - Moa me chamou pra ser a voz-guia, e eu nem sabia o que era aquilo. Em apertada síntese: só fera tocando - o próprio Moacyr Luz, Pedro Amorim, Carlinhos Sete Cordas, Beto Cazes, Ovídio Brito, Gordinho e Marcelinho Moreira - e eu pondo a voz em todas as faixas num estúdio (Haras) na Lapa. Na foto abaixo, Mello Menezes, Aldir, Moacyr e eu, no dia em que Aldir foi pôr voz no clássico Pra que pedir perdão?.
Outra alegria que virou relíquia: em 1996, no dia do meu aniversário (27 de abril), eu fazendo ainda 27 anos, Moacyr me deu de presente (notem como eu sou uma múmia) uma fita-cassete, com dedicatória (imagem abaixo) com todas as faixas que ele compôs pra um projeto que virou disco nove anos depois, vejam aqui.
Ainda guardo a fita embora eu não tenha mais onde pôr pra tocar.
Guardo histórias demais - que não cabem aqui.
Sobre o Bar da Dona Maria e sobre o Moacyr.
Aos poucos, quem sabe?, vou dividindo todas elas aos sábados com vocês que me lêem.
AS DESPEDIDAS DO BAR
Um dos primeiros lugares que levei a Morena, quando eu ainda estava começando a corte, foi justamente na Dona Maria. Hoje, depois de tantos anos, não tenho dúvida de que foi pra estar com ela naquele terreiro que foi tão importante quanto sagrado pra mim. Uma forma de eu dizer a ela, ainda que primeiro de mim para mim, que eu pretendia dar a ela, como de fato ainda pretendo até hoje (a corte deu frutos!), as coisas mais bonitas que existem. Isso foi em novembro de 2011 e foi a penúltima vez em que lá estive.
A última ficou registrada em vídeo. Ao lado de Leo Boechat e de Luiz Antonio Simas, vejam aqui.
Não há mais o Bar da Dona Maria.
Não há mais Aldir Blanc.
Esse sou eu, um homem acumulando saudade.
A DONA MARIA
Como homenagem, sou um homem que gosta de homenagens, as últimas fotos que fiz da dona Maria.
Até.
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