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VÓ TIDA (07/04/1924 - 05/12/2010)
Sim, soarei repetitivo: mas quando vem chegando abril, vêm chegando para mais-perto todos os meus fantasmas.
E nesse final de semana que se aproxima, uma fantasma mais específica: minha avó, Mathilde, minha Vó Tida, como eu a chamava, a Tidoca para as muito amigas que fez ao longo da vida.
No domingo, 07 de abril, vovó fará 100 anos. Sim, fará, no presente mesmo (pobre de quem, preso às objetividades, não pensa assim).
Eu estava em São Paulo, dormindo, quando fui acordado com a notícia: vovó havia morrido, 05 de dezembro de 2010, com 86 anos - e eu, com 41, um privilegiado por conta de tantos anos de convívio.
Voltei correndo para o Rio de Janeiro - e ela teve um enterro digno, que se seguiu a um velório divertidíssimo.
Cheguei ao Rio, de São Paulo, por volta do meio-dia.
Lá, no cemitério (para onde fui direto), no Caju, estavam suas amigas do pôquer – vovó jogava pôquer no Méier todas as sextas-feiras em uma mesa na qual era a caçula! -, dos centros espíritas que freqüentava, da costura – vovó costurava fraldas, lençóis, cobertores e mantinhas para os pobres – primas e primos, sobrinhas e sobrinhos, vizinhos e vizinhas, enfim… um público de Fla x Flu se acotovelava em torno do esquife.
E foi, meus poucos mas fiéis leitores, um velório tijucano e rodrigueano.
Logo na entrada da capelinha, uma coroa de flores gigantesca enviada por Gilberto Braga (o afamado autor de novelas), sua irmã Rosa Maria e seu irmão Ronaldo. Vovó era amicíssima da Ieda, mãe dos três. Sua melhor amiga, contam. Os três a chamavam Tia Tida e por ela tinham um carinho sem tamanho. Pois vamos à cena no melhor estilo Tijuca. As velhotas que se espremiam em volta do caixão vez por outra apontavam na direção da tal coroa de flores. Havia um alarido (apud Nelson Rodrigues) de vozes acompanhando aquele apontar de dedos. Até que se deu a cena de cinema.
Uma das velhas tomou a direção da coroa de flores arrastando outra velhota pela mão. Estacou diante da coroa equilibrada no cavalete pouco depois de estender uma câmera fotográfica para sua amiga. Postou-se ao lado da bóia de flores, esticou a faixa com os dizeres “saudades eternas”, apontou para o nome do autor de novelas e disse pra outra:
– Tira! Tira! Vai!
Foi então que se formou uma pequena fila para a mesmíssima fotografia.
Mas não ficou aí, apenas, o tijucanismo do momento.
À certa altura adentra a capelinha Daisy Lúcidi, prima da vovó. A radialista e atriz, viva à época, claro, e hoje já morta, estava fazendo o papel de uma avó e cafetina na novela das oito e causou um furor no renque de velhas no salão. Cochichos, fotografias, explosão de flashes, autógrafos, o diabo.
E lá estava vovó vivendo o drama tantas vezes retratado por Nelson Rodrigues.
“A dor tem, ao fundo, um alarido de xícaras e de pires”, disse o mestre.
Naquele dia, bem lembro, diante da ausência do bar da capela, o alarido foi de flashes e do automático das câmeras portáteis.
AS LEMBRANÇAS COM MINHA AVÓ
Sou, hoje, e novamente, e inapelavelmente sou, o menino da foto abaixo - a mais impactante das fotos que tenho (repito, a mais impactante das fotos que tenho).
Escrevi na semana passada:
“Nela estou de short, camisa listrada, a mão direita dada à mão direita de minha mãe, avó de Leonel, minha mão esquerda entre as mãos de minha avó, que morreu em 2010 e que já veio pra mais-perto algumas vezes - para conhecer seu bisneto e para ter com a Morena, um dia lhes conto essa história - e tendo à minha extrema esquerda, à direita na foto, minha bisavó, a Bia, a matriarca com quem convivi por 13 anos.”
Mais abaixo lhes contarei, em apertada síntese, a história a que acima me referi.
Mas quero lhes apresentar vovó.
Antes, uma história real contada por Fernando Szegeri em seu blog, texto de 16 de dezembro de 2010, aqui. Vamos a ela:
“Na hora da inscrição, surpreendeu-se de não ter dado conta do problema elementar, mas acabou achando graça. Família tradicional, vinda da Gávea para o Engenho Velho em longínquas primaveras, sobrenome composto, de muitos costados, o jeito era arrumar um pseudônimo. Essa coisa de cantar no rádio, afinal, não podia ser coisa de moça de família. Lascou, então, premida pela ocasião, uma mistura de nomes americanizados que acabara de ler numa revista de cinema; porque afinal essa era a nova moda naqueles anos 40 povoados da propaganda estético-ideológica do Tio Sam. Assim nasceu Jean Morgan. Sem grandes pretensões, diga-se de passagem.
E não é que a moça era afinada? E não é que tinha lá uma graça de flor da idade, levemente apimentada pela inusitada quase-travessura de meter-se a cantar, de repente, num concurso de calouros, sem o consentimento dos pais? Mas o que embasbacava todos, mesmo o conhecido apresentador ranzinza, era a elegância. Ah, a elegância...
E de etapa em etapa, assim como não quer nada, foi avançando. Quando voltava para casa de pretensos footings na Rua Uruguaiana, no cair da tarde, Mathilde encontrava a família em alvoroço. A irmã logo se apressava em pô-la a par de mais uma grande apresentação de Jean Morgan, a favorita da família! “Papai era o mais empolgado!” Mas o velho, claro, fazia que não era com ele. Em comum, o grande estranhamento com o fato da jovem, de hábito tão encantada pelas coisas da música e do rádio, quedar-se tão alheada do concurso que era “o assunto” de todas as rodas. Disfarçava, às vezes: “ouvi o rádio ligado na casa Sloper...”.
E, como era de se esperar, chegou a grande final. A família, dedicada na torcida, achou muitíssimo injusta a primeira colocação do insosso doublé de Bing Crosby, que não podia fugir da alcunha de sotaque yankee: Dick Farney. A indignação foi até capaz de arrancar de Seu Eugênio, o patriarca, o único comentário em semanas de certame: “Essa gente de rádio não vale mesmo nada! Com certeza, tudo já arranjado!”
Mathilde estava feliz, no bonde que a trazia da rádio, na Cidade, para a Tijuca. Tudo era festa, então! A cabeça levemente recostada na balaustrada, devaneou nas asas de seus auspícios juvenis. Jean Morgan estava feita, carreira engatilhada. Os convites não tardariam! A carreira no disco seguiria a trilha inevitável de sendas bem calçadas no bom gosto do repertório, na sensibilidade para o apetite da época, e na sólida formação que carregava do lar quatrocentão. Que agora lhe sorria para, senão o sucesso retumbante, o pleno reconhecimento de um público distinto e fiel!
E assim seria, durante muitos anos na atividade que lhe encheria o peito de suaves satisfações e de uma alegria perene. Mas o solavanco do bonde lhe podou, inapelavelmente, a verve! A Tijuca, enfim... Em casa, o remédio agora era contar. Ninguém, mesmo, achou muita graça na burleta; com o máximo da boa-vontade, uma admiração-pontinha-de-inveja da irmã. Os footings proibidos, a vigilância redobrada, que se dedicasse à tarefa elementar de se casar. Como tinha que ser.
Mas, quem viu, dá testemunho da propalada elegância. Ah, a elegância...”
Isso mesmo. Vovó venceu, às escondidas, na década de 1940, um concurso de calouros com esse pseudônimo, Jean Morgan.
Como cantava…
Abaixo, o único registro que tenho de vovó cantando, aqui acompanhado de Marcelo Vidal, na casa de meus pais, no Alto da Boa Vista. Notem a afinação, a elegância, o vibrato…
Vovó era, como acima está dito, uma mulher elegante, perfumadíssima, e - eis o que quero agora lhes contar - foi uma viúva surpreendente.
Quando meu avô morreu, em 2002, houve uma espécie de conferência entre os presentes: quanto tempo duraria vovó.
Lembro de ouvir diversas predições.
— Tidoca? Aposto! Não dura seis meses sem o Milton! - uma das velhas.
— Ah, minha filha… não dura muito, não. Já, já estará fazendo companhia para o Milton…
— Não chega ao Natal! - vovô morreu em março.
Mas vovó surpreendeu.
Viveu, sou capaz de arriscar, oito anos como viúva sendo feliz ao extremo (não me alongo para não magoar o fantasma do meu avô).
Andava para cima e para baixo de ônibus, tinha seus taxistas de fé para destinos mais inglórios, amava intensamente os netos - jantava em minha casa, religiosamente, uma vez por semana.
E levava sempre presente para mim.
Outra história.
Vovô morre e ela se preocupa. Vivia com ele há mais de 50 anos, dele dependia economicamente.
— Como é que vou fazer agora? Milton me dava um dinheirinho mas com ele não consigo pagar o aluguel… aliás nem sei quanto é o aluguel… - e assim foi a chorumela para tratar das coisas práticas.
Bom.
Mamãe e papai descobriram, rapidamente, que vovô, funcionário público aposentado (do extinto DNER), ganhava uma fortuna como aposentadoria (fortuna para minha avó, diga-se).
Pois dona Mathilde, a pensionista, lambuzou-se.
Para desespero de meu pai, que cuidava das contas da sogra, vovó torrava centavo por centavo: convidava as amigas mais duras para almoçar e pagava tudo; alugava uma van, com alguma freqüência, e levava todas elas para assistir musicais espetaculosos em São Paulo - tudo por sua conta (vovó morreu com 86 anos sem nunca ter pisado em um avião, tinha pânico). Comprava presente para os netos, seus almoços, seus jantares, eram banquetes. Gastava rios de dinheiro no salão da Zizi, um nome icônico na minha infância. Dava gorjetas suntuosas para os porteiros, para os garis da rua em que morava (General Espírito Santo Cardoso), para os garçons, sustentava uma delicatessen que faliu menos de um mês depois de sua morte. Lembro de meu pai dizendo:
— Dona Mathilde! A senhora paga no quilo do presunto nessa tal delicatessen o valor de cinco quilos em qualquer supermercado!
E ela, levíssima:
— Ah, mas ninguém corta as fatias como o seu Rogério…
E assim foi, até morrer.
Chegava à véspera do dia do pagamento sem um único centavo na conta-bancária.
Mas vamos ao que quero lhes contar.
Desde que vovó foi oló, dezembro de 2010, que a cada 07 de abril eu preparo um café-da-manhã para ela - como ela gostava.
Café com leite, torradas, manteiga, amêndoas, nozes, castanhas, alguma fruta.
Deixo em algum lugar da casa, rezo, lembro vivamente dela, falo seu nome, chamo por ela, deixo aquilo ali o dia inteiro…
Mamãe, espírita fanática como vovó, sempre me repreendeu (há alguns anos, desistiu):
— Deixe livre o espírito de minha mãe! Deixe sua vó cumprir sua caminhada!
E eu sempre respondi:
— Eu, hein! Se ela pudesse escolher, estaria comigo tomando café da manhã! Não quero fazer você, não faça. Eu farei sempre!
E passei a fazer ainda mais bonito depois que Leonel nasceu.
Ao fim do dia, como aquilo que preparei. É como se eu recebesse, ali, naquele momento, o axé da minha saudosa vozinha. Tomo o café com leite mesmo frio com o coração quente. As torradas, tudo. E fico feliz.
Até que um dia deu-se o seguinte: acordei de madrugada com a Morena ao meu lado, olhos esbugalhados (e cheios d´água), celular nas mãos. Ela me disse, a voz baixa:
— Você estava falando sozinho enquanto dormia. Conversando comigo. Dizendo ser a sua avó… - e é preciso fazer o adendo, Morena chegou à minha vida depois da morte de vovó.
Serei sucinto.
Isso aconteceu uma, duas, três, dez, vinte, dezenas de vezes.
Eu acordava sempre exausto, sem me lembrar de rigorosamente nada, com a Morena tendo gravado boa parte das conversas…
Durante esse tempo, me lembro, relatava tudo para minha psicanalista.
E eu ouvia sempre a mesma coisa:
— Ora, ora, são reminiscências de tudo o que você ouviu na infância…
Até que um dia… vovó, que sempre relatava estar acompanhada, disse à Morena (cujo pai, avô do Leonel, a quem não conheceu, já morreu):
— Sabe quem veio comigo hoje? Seu pai. Está lá no quarto do Leonel brincando com ele… veio conhecer o netinho…
Pouco depois:
— Leonel acordou, minha filha! Mas nem se preocupe, ele está entretido com o vovô…
E alguns minutos depois:
— Dormiu, filha, Leonel voltou a dormir. E seu pai está aqui comigo agora…
Até que despediu-se, deu-se o de sempre, Morena me contou o que havia se passado… voltamos a dormir.
Acordamos com Leonel entrando no quarto, como fazia todos os dias.
Subiu na cama.
E disse, olhinhos brilhando:
— Mamãe, papai… sabe com o que eu sonhei? Com o vovô Benito brincando comigo no meu quarto! Ele é alto, né, mamãe? - e já estávamos chorando, os dois.
Eu não tenho dúvida alguma - e gargalho diante dos incrédulos - de que vovó estará em casa no domingo, tomando café conosco e comemorando seu centenário ao lado do único bisneto.
Chama, vovó Tida!
Eu vou ficando por aqui, por ora.
Já é abril.
E ainda teremos três sextas-feiras em abril - 12, 19 e 26 de abril.
Em todas elas, já lhes adianto, seguirei na debulha dos meus pouco mais de 20.000 dias de vida.
Vocês que me agüentem.
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