Seu Osório chegou cedinho ao buteco naquela tarde chuvosa de quarta-feira. Dormira no apartamento deixado para a filha justamente em razão da forte chuva da noite da véspera, quando ficara bebendo no bar até umas onze da noite. Como acordou com sede, com bastante sede, às oito já estava sentado à mesa, bebendo a primeira cerveja do dia, minutos após o café da manhã, o de sempre. Bule estranhou:
— Começou cedo hoje, hein, velho Osório?
— É — disse em tom triste — Acordei com saudade.
— De quê? — e riu o Bule diante da frase jamais dita pelo durão Osório.
— Sabe que eu não sei? Desce mais uma pra mim, Bule. Gelada como a primeira.
Pôs a mão no queixo, alisava a barba por fazer, os olhos ligeiramente marejados, um tremor inédito nas mãos, suando frio, tinha as pernas cruzadas e o pé num vai-e-vem constante que chamou a atenção do Bule, que do balcão, logo após ter servido a segunda garrafa, fumava e observava o estranho estado de seu mais antigo e fiel freguês.
— Da Idinha, eu acho — disse depois de um longo silêncio.
— Hein?
Não respondeu.
Serviu-se, bebeu o copo num só gole, o encheu novamente.
— Da Tijuca sem violência. Dos morros sem o tráfico. Dos cinemas da Praça Saenz Peña. Do coreto na Rua Alegre. Do Bigode do Meu Tio onde eu bebia com o Nelson... Dos bondes...
Bule não ousara perguntar mais nada. Osório tinha os olhos distantes atravessando os limites do bar. Estava chorando, as lágrimas descendo pela pele encarquilhada, fungava tentando disfarçar, quando Bule chegou-se:
— O que houve, meu velho?
— Nada, não. Vou dar um pulo em casa, coisa rápida. Volto pro almoço.
— O senhor manda!
Entrou no apartamento, estacou diante da porta que fechara lentamente, e passou em revista toda a sala. Apoiou-se na cristaleira, agachou-se e alisou o relevo da escarradeira de louça à sua direita, fixou-se demoradamente nos porta-retratos, sentou-se numa das poltronas, esticou as pernas sobre a mesinha de centro e dormiu.
Coisa de meia hora e batem à porta. Ele se levanta e abre a porta sem se valer da portinhola.
— Grande seu Osório!
— Fernando?! Fernando Toledo?!
E seu Osório abraçou demoradamente o amigo que não via há uns bons meses.
— Quem é o putão a seu lado, Totô?
— Fábio, seu Osório. Fabinho, pros íntimos! Conheci há pouco tempo mas é dos nossos!
Fábio cumprimentou o velho Osório e sacou de uma das mãos que escondia nas costas uma garrafa de Chateau Duvalier e da outra um pratinho com dez empadas de camarão do Salete.
— Adivinhou!!! Meu vinho preferido, putão! E as empadinhas do Manolo! Danados, vocês...
— Tô sabendo que o senhor gosta, seu Osório, tô sabendo...
Sentaram-se à mesa, Osório foi à cozinha pegar o saca-rolhas e na volta tratou das taças que ganhara de presente de casamento:
— Idinha adora essas taças! Já-já ela chega! Foi na Granado comprar umas coisinhas que estão faltando! Saúde! À nossa!
— Saúde! — disseram juntos Fernando e Fabinho.
— E está pra chegar, se o senhor nos permite a liberdade, um amigo nosso, Marco Aurélio! — emendou o Toledo.
— A casa é de vocês!
O barulho da chave denuncia a chegada de Idinha. Osório se levanta e abraça a mulher antes mesmo da porta ser fechada.
— Ô minha Idinha... — e chora.
— O que é isso, Osorinho!? Você nunca foi de chorar... — e riu, afagando o rosto do companheiro — Deixe disso, sim! Espia... Encontrei aquele menino, o Miguilho, lá na Praça Saenz Peña, naquele bar ao lado da Granado, sabe?
— Sei, Idinha, sei sim... — sem largar a mão da mulher na qual fazia festinha com intenso carinho.
— Pois bem. Estava lá, pra variar, bebendo. E na companhia do Borel, do Formiga, do Turano e do Casa Branca. Eles não têm mesmo jeito... Convidei os cinco para almoçar aqui... — e sorrindo apontou os olhos para a mesa.
Osório apresentou a mulher ao amigo de carraspana, Fernando Toledo, de quem tinha um orgulho tremendo. E ao Fábio.
Idinha, de uma gentileza comovente, beijou os meninos, disse a eles que ficassem à vontade e dirigindo-se ao marido depois de um beijo em seus cabelos brancos:
— Vou preparar o almoço, meu velho... Iscas de fígado com purê de batatas. De acordo?
— Hummmm... — os três quase que ao mesmo tempo.
E foi Idinha à cozinha.
Ficaram ali, os três, falando de amenidades, Osorinho relembrando os tempos de glória do América, Fabinho jurando amor eterno ao Flamengo e o Fernando a criticar o governo e a falar das vantagens do socialismo.
Batem à porta e Osorinho mesmo vai abri-la.
Abre o maior dos sorrisos quando vê Paulo Emílio e seus quatro companheiros, cada um com um instrumento, um tamborim de couro, um violão, um cavaquinho e um chocalho.
Paulo Emílio nem acredita quando dá de cara com o Toledo à mesa. Todos são apresentados, Osório vai à cristaleira, põe mais cinco taças sobre a mesa, vai até a cozinha buscar mais uma garrafa de vinho e, quando volta à sala, tem a impressão de que está diante de sete amigos íntimos há anos.
Idinha vai à sala levando salaminho fatiado, uma cachaça que trouxe de São Lourenço, em Minas, de uma viagem que fizera com Osório, e um copinho adequado que põe à frente do Toledo dizendo:
— Cachaça, filho. Acho que você vai gostar, não é? — e sorriu docemente, fazendo cafuné em seus cabelos.
— Como a senhora adivinhou?
Idinha apenas riu, piscando o olho pro marido, voltando à cozinha.
Batidas na porta da frente.
— Não é o Tempo. É o Marco Aurélio! — disse o Toledo já no segundo copo da branquinha.
Marco Aurélio abraçou-se emocionado ao Paulo Emílio:
— Miguilho, Miguilho... — e sentou-se no sofá, acendeu um cigarro de cravo e canela e pediu ao Borel que fosse ao bar na esquina comprar um engradado de cerveja.
Borel volta em minutos com as 24 garrafas em duas bolsas de palha emprestadas pelo Bule.
— Figuraça aquele gordo do buteco, hein?!
Paulo Emílio pede uma nota ao Borel e começa a cantar uma de suas mais lindas canções:
“O Borel fugiu com a Formiga
e foram beber por aí
O Turano ficou invocado
E a Casa Branca ficou com ciúmes
Mas depois todo mundo se encontrou
Num botequim lá na Praça Saenz Peña
tomaram um porre federal
E saíram abraçados!
Amor eu queria te dar
o sistema solar
E o fundo do mar
Amor eu queria te dar
A minha caixa de lápis de cor, amor
Amor eu queria te dar
Meu Botafogo e o meu Salgueiro
Amor eu queria te dar
A Tijuca e o Rio de Janeiro
Amor eu queria te dar
Meu coração e o mundo inteiro...”
Osório chora, Fabinho chora, Toledo, na oitava dose chora com os óculos embaçados — uma de suas marcas — todo mundo chora, e somente quando Idinha vem à sala anunciar o almoço é que o samba descansa. E seu Osório manda essa:
— Paulo Emílio, Paulo Emílio... isso é o que eu chamo de viver o samba! — e riu, ajeitando o guardanapo sobre o colo.
Quase meio-dia.
Amorim chega no buteco e encosta no balcão, como é praxe.
— Rapaz... cê tinha que ver o velho Osório hoje cedo... — disse o Bule.
— O que houve?
— E eu sei? Sentou ali, pediu duas cervejas logo depois do café e do pão com manteiga, ficou falando sozinho, chorando, nunca vi o velho daquele jeito. Disse que volta pro almoço.
Osório dá um salto na poltrona e derruba o vaso de antúrio. Num susto só.
Esfrega os olhos, vai à cozinha, abre a Frigidaire azul, toma de sua garrafa d´água, bebe de uma só vez, vai ao banheiro, molha o rosto, olha-se demoradamente no espelho, atesta o tempo acumulado nos olhos, nas rugas, na pele cortada. Sente vontade de chorar mas luta contra a dor que lhe dói de um jeito diferente.
Sem jeito recolhe a terra no tapete, ajeita de qualquer jeito o antúrio sobre a mesinha de centro e vai ao bar.
— Bule, meu querido! Uma casco escuro pra mim e dois copos. Amorim me acompanha?
— Mas é claro...
— Gosto de te ver assim, velho! Vou até acompanhar vocês!
— Velho é a puta que te pariu, ô gordo! Aos amigos, aos amigos — grita o velho Osório brindando com os dois. E tem mais, tem mais!
— Diga lá, garotão — debocha o gordo Bule.
— Hoje é tudo por minha conta!
E ficaram ali, os três, até o meio da tarde, quando foram chegando o Vidal, o Branco, o Seis-com-Fome, o Flavinho, o Quincas, e só quando já estava daquele jeito, torto, é que Osório disse:
— Atenção putões! — e arrotou.
O silêncio respeitoso de sempre.
— Vou pra casa dormir. Quincas me leva?
— Claro!
— Então vou indo. Não porque esteja bêbado, que isso eu não fico...
Neguinho rindo.
— É que me deu uma saudade agora de tanta coisa...
E partiu o velho Osório, não sem antes de dizer pro Bule:
— Toma nota de tudo. Amanhã te pago. A propósito... o rapaz que veio aqui buscar vinte e quatro cervejas pagou a despesa?
— Que rapaz, Osório?
Osório abaixa a cabeça. Dá um tapa na própria testa e diz:
— Vamos, Quincas. Deixa pra lá, Bule.
No trajeto seu Osório diz:
— Sabe, Quincas... a Vila, mais que uma cidade independente, é uma cidade diferente!
MEUS DELÍRIOS, MINHAS SAUDADES
Eu sou, lhes disse dia desses, um homem acumulado de saudade.
E esse tanto de saudade acumulada dá nisso: nessa semana que passou sonhei exatamente com a cena narrada no texto acima. Texto que, eis o que há de incrível nisso, eu mesmo escrevi em 2005, portanto há 17 anos, para que fosse publicado - como de fato foi - no livro Meu lar é o botequim, lançado em novembro de 2005 pela Casa Jorge Editorial.
Porque ando mesmo com muita saudade desses personagens todos que, em 2005, já tinham virado saudade: Fernando Toledo, Fábio Machado de Matos, Marco Aurélio Braga Nery e Paulo Emílio da Costa Leite.
Fernando Toledo foi meu parceiro no Conexão Irajá, blog que mantínhamos eu, ele e Fernando Szegeri (pode ser lido aqui). Generoso que só, escreveu a meu respeito:
“Conheci o Edu brigando, para variar. No dia em que o idiota do então prefeito do Rio (custa lembrar o nome desses anões morais) empastelou o primeiro Estephanio's. Protestei, briguei, e nada. Ficamos amigos eternos naquele dia. Nunca vi um cara mais passional que o Eduardo: capaz de empurrar um caminhão de merda de freio de mão puxado por um amigo, e de despertar, em proporções semelhantes, o ódio dos idiotas e o amor dos seres humanos que valem a pena. Costumo dizer que sua anatomia é um pouco disparatada, visto que seu coração ocupa espaços que usualmente são ocupados por órgãos que ninguém sabe para que servem, como o baço, por exemplo. O fígado, com certeza, ou não tem ou encontra-se em viagem pela Bulgária ou qualquer lugar menos votado. Não se têm notícias do pobrezinho há anos.”
Fábio Machado de Matos, que como o Toledo foi vítima de um acidente trágico, foi outro que, ao longo de 14 anos - tempo entre o dia em que nos conhecemos e sua morte - dividiu comigo momentos que jamais morreram ou morrerão: estão enterrados em mim como sapo de macumba, diria Nelson Rodrigues, uma de minhas maiores paixões e obsessões.
Marco Aurélio Braga Nery, que me chamava de “meu irmão Braga” (tenho Braga antes do Goldenberg), era o mais gentleman dentre todos os gentleman. O conheci por intermédio do Aldir e também fomos parceiros de muitas aventuras, todas guardadas e preservadas em mim. Marco, que foi sócio do Aldir no selo ALMA (AL de Aldir, MA de Marco Aurélio), foi um dos responsáveis pelo encontro retratado na foto abaixo. Moacyr no violão, Aldir a seu lado, Tostão (de camisa amarela), Mello Menezes, Henrique Sodré, Rildo Hora e eu, copo de cerveja numa mão, cigarro na outra, gravata no pescoço e a cabeça cheia de sonhos. Estávamos no terraço da boate Help, em Copacabana, onde hoje está sendo construído o Museu da Imagem e do Som.
Eu tinha plena consciência do privilégio que eu vivia. Mas não vislumbrava que eu seria um homem acumulado de saudade mais de 30 anos depois.
E Paulo Emílio da Costa Leite, com quem menos convivi entre os quatro, era um assombro pra mim: poeta, compositor, o Miguilho era saudade antes mesmo de partir.
SAUDADE, SAUDADE, SAUDADE
Andei, por esses dias, emotivo demais.
Chorando, mais de uma vez ao dia.
Deve ser, presumo, saudade.
Ando com muita saudade.
É nela, Aldir me ensinou, que tudo que amei sobrevive.
NOI
A newsletter segue com a parceria com a Noi, a mais carioca das cervejas - a despeito de ter nascido em Niterói.
Já lhes fiz a confissão e a repito: eu e Simas usamos e abusamos do delivery da Noi durante o dificílimo ano de 2020 e em 2021.
Você pode fazer seu pedido de delivery aqui e, na hora de fechar, usar seu cupom de desconto BUTECODOEDU
Usem e abusem que o desconto é de 10% e o chope e a cerveja são demais.
Até.
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