Faltando pouco mais de um mês para meu 52º aniversário, digo de mim para mim, sem medo do erro:
— Estou muito melhor do que já fui um dia.
E refiro-me, in casu, às obsessões que colecionei ao longo de tantos anos. Já as tive, muitas. Algumas, confesso, ainda preservo como forma de manter certo charme. Das nocivas, quero crer, me livrei. E é sobre elas, as obsessões (não as minhas), que quero lhes falar hoje.
Eu bato os olhos na foto abaixo (Fernando, meu irmão mais velho, Cristiano, o caçula, e eu) e sou imediatamente arremessado em direção ao passado, mais precisamente para o ano de 1978, praia do Pepino, em São Conrado. Vão tomando nota e vejam se foi possível crescer sem as obsessões me fazendo sombra como um imenso ombrelone.
Saíamos da Tijuca na Brasília branca (ou na Variant verde, não lembro agora, ou seria no Passat?!) muito cedo em direção à praia. E muito cedo é muito cedo mesmo. Meu pai não esperava os filhos acordarem, o café-da-manhã com calma, nada disso. Era preciso sair cedo. Por que?
— Porque sim.
— Porque eu gosto de chegar cedo na praia.
— Porque eu não quero que ninguém pegue o meu lugar na areia.
O-meu-lugar-na-areia.
As respostas variavam. Meu assombro era o mesmo.
Íamos os três no banco de trás, papai na direção e mamãe a seu lado. O carro subia o Alto da Boa Vista (não havia a Lagoa-Barra), íamos com muito sono e as pernas suadas colando no plástico-bolha que forrava o banco traseiro, incomodando demais. Por que o plástico-bolha?
— Porque sim.
— Porque eu gosto de plástico-bolha.
— Pra não sujar o banco.
Papai parava o carro em meio ao matagal e atravessávamos uma espécie de picada até a praia do Pepino.
Sentávamos no mesmo lugar, sempre.
Meu pai usava um dos poucos prédios erguidos em São Conrado como referência. Ficava dando passos pra um lado, pro outro, pra um lado, pro outro, olhando pro prédio, de costas pro mar, até que fincava o pau da barraca na areia e dizia sorrindo enquanto cavucava:
— Aqui! Aqui!
Nada mais importa, para o que quero lhes contar, do que isso - à certa altura meu pai dizia:
— Vamos, Pixuxa? - é como ele chama minha mãe.
Ele se mantinha sentado debaixo da barraca de pano em sua cadeira de nylon verde (a foto abaixo, de bem antes do que 1978, não me deixa mentir) enquanto mamãe ia dar conta de ajeitar os três filhos.
Daí mamãe ajeitava Cristiano, o mais novo, Fernando, o do meio, eu, o mais velho. Levava um por um até o mar, lavava as mãos, enxugava, tirava a sunga, punha camisa nos três, voltava até a barraca e dizia, visivelmente cansada:
— Pronto! Vamos.
Meu pai mirava o relógio no pulso esquerdo (um Seiko) e dizia:
— Agora não.
Era sempre o mesmo assombro com esse “agora não”, até que ele dizia:
— Meio-dia e cinco. Agora só uma da tarde.
E ficávamos, os três, debaixo da barraca (evitando que nos sujássemos de novo), até mais ou menos quinze pra uma. Ele então saltava da cadeira, arrumava o jornal, guardava a barraca e rumávamos pro carro. Papai carregava ainda um balde cheio de água do mar para que lavássemos os pés antes de nos sentarmos, suados, no plástico-bolha que nos incomodaria até a Tijuca.
Todos no carro?
Ele tornava a olhar o relógio. Um ar de suspense. Até que virava a chave, o motor roncava, e ele dizia, naquela felicidade que só os obsessivos graves conhecem:
— Vamos! Uma em ponto.
Isso mesmo, meus leitores, isso mesmo, minhas leitoras: papai só saía da praia em hora redonda, hora cheia, como costumava dizer.
Uma infância tranqüila, como se vê.
NA PRAIA
Tem mais (e ainda sobre a praia). Antes de seguir, uma satisfação a você que me lê. Pelo Twitter, pelo Instagram, pelo Facebook, até mesmo por e-mail (há ainda quem use o e-mail) há um gemido coletivo de leitores e leitoras:
— Conte mais sobre seu pai!
Fazem sucesso, suas histórias (e todas reais, faço questão de frisar, já que sou preciso do início ao fim). Meu pai tem fãs, eis a verdade. Vamos, pois, a mais uma história envolvendo o personagem realíssimo.
Um item obrigatório quando meu pai ia à praia (eu disse ia porque há mais de 20 anos ele abandonou o mar): o jornal.
Eu disse o jornal e emendo: o jornal não lido.
Explico: o jornal era entregue (papai era assinante do jornal O Globo) intacto e intacto era levado pra praia, dobrado, junto à capanga de couro preta (e surrada) que ele carregava numa das mãos, a alça da capanga envolvendo o pulso. E sempre, rigorosamente sempre, todas as vezes, assim que ele punha o jornal sobre o assento da cadeira sob a sombra da barraca (antes de se sentar, é claro) ele dizia em direção ao filhos perfilados diante dele:
— Não despenquem o jornal!
Imagino o assombro de quem me lê. Como um jornal pode despencar? Percebam.
Antes, voltem para a foto anterior e vejam: estão lá, sobre a cadeira de nylon verde, o jornal dobrado, intacto, e sua capanga preta fazendo peso para evitar que o vento despencasse O Globo.
Isaac não admitia o jornal lido por mais ninguém antes dele - e se os filhos, pequenos, não liam o jornal por razões óbvias, passaram a ler conforme foram crescendo. Pois a leitura, o acesso ao jornal, só era permitida depois que papai lesse O Globo, de cabo a rabo. E atentem para um detalhe: após a leitura, por pura obsessão, ele montava o jornal de volta de modo que tivesse, o dito cujo, aspecto de intacto. Lançava o jornal dobrado sobre a cadeira vazia e dizia (incrivelmente dizia, ainda dizia, apesar de já ter lido, dizia):
— Não despenquem o jornal!
É evidente que, ainda que por pura implicância, mexíamos no jornal muitas vezes - antes que papai o lesse. E dava-se a mesma cena, a mesma pergunta:
— Quem despencou o jornal?!
E, incrível, ele não o lia.
Comprava outro.
— Detesto jornal despencado!
Uma infância tranqüila, como se vê.
NA ESTRADA
Vamos à terceira e penúltima história de hoje - também sobre as obsessões de meu pai.
Sempre que papai anunciava uma viagem de carro (fosse pra onde fosse), dava-se o pânico entre os filhos. Tínhamos uma certeza: sairíamos de casa às 4 da manhã e teríamos de ir ao banheiro na única parada (fosse qual fosse a distância percorrida). Vamos a um caso concreto.
Estamos indo pra Caxambu, onde passamos muitas férias. Às 3 e meia, plena madrugada, éramos acordados para que pudéssemos sair às 4 da manhã em ponto (exatamente como lhes contei sobre a saída da praia, papai só viajava se saísse às 4 em ponto). Por que?
— Porque sim.
— Eu gosto de ver o sol nascer no meio da estrada e gosto de estrada vazia.
Íamos, os três, dormindo no banco de trás.
Até que, à certa altura, geralmente em Resende, dava-se o banzé:
— Vamos ao banheiro! - éramos acordados com a ordem-unida.
Na imensa maioria das vezes nenhum de nós saía do carro, seguíamos dormindo.
Pouco depois, já subindo a serra, acontecia de um de nós acordar e gemer:
— Pai… quero fazer xixi.
A voz vinha da direção:
— A parada pro banheiro foi em Resende. Agora só em Caxambu.
Não havia jeito.
— Mas pai… tô apertado…
— Segura! Segura! Segura!
Fernando muitas vezes ensaiava passar mal.
— Vou vomitar! - ele gritava.
— Põe a cabeça pra fora e vomita!
Porque ele não podia parar.
Ele corria contra o tempo, buscava sempre bater o recorde (a expressão bater o recorde era dele) da viagem anterior. E descia do carro, diante da portaria do Hotel Marques, onde nos hospedávamos, dizendo orgulhoso e dando tapinhas na tampa do relógio Seiko:
— Um minuto e quinze segundos a menos do que da última vez.
Às vezes, um dos filhos saía todo mijado do carro e reclamando. Ele, acendendo seu Shelton Lights:
— Se eu tivesse parado pra você ir ao banheiro eu não teria batido meu recorde.
Uma infância tranqüila, como se vê.
NO MARACANÃ
No Maracanã, como na estrada, dava-se o mesmo. Tínhamos o intervalo do jogo como única opção para ir ao banheiro. Quantas foram as vezes, deuses meus, em que passávamos sufoco aos 5 do segundo tempo ou mesmo ao 30 do primeiro. Não importava. Se fosse aos 30 do primeiro, que aguardássemos o apito do árbitro para o alívio almejado, 15 minutos de espera. Se fosse aos 5 do segundo… só em casa!
Eu disse só em casa e quero lhes contar mais um hábito (digo hábito para parecer sem-rancor) obsessivo de meu pai.
Fosse o jogo que fosse. Amistoso. Clássico. Final de campeonato. Não importava. Aos 35 minutos do segundo tempo papai se levantava da arquibancada segurando sua almofada branca da RIOTUR e dizia:
— Vamos!
Adendo: a única exceção foi em 1978, Flamengo e Vasco, fomos nas cadeiras azuis, quando ele esperou até o minuto final na esperança de me ver sofrendo com a derrota do Flamengo (que não veio, conto sobre isso noutro dia).
Muitas vezes gemíamos, implorávamos, argumentávamos que o jogo estava emocionante, que os minutos finais poderiam ser épicos, tudo em vão. Mas por que temos que ir embora?
— Não quero pegar tumulto.
Esperar todo mundo sair?
— Não. Eu gosto de sair na frente.
Mas o jogo está vazio!
— Mas eu gosto de sair na frente.
Mas pai, o juiz marcou pênalti!
— Ouvimos no radinho, vamos!
Uma infância tranqüila, como se vê.
NO RIO COMPRIDO
Pra finalizar, o episódio do canal Botecos do Edu com participação do meu pai. A partir dos 10 minutos e meio, a hilariante descrição que ele faz do filho mais velho, que sou eu.
Se você preferir, pode assistir direto do YouTube, aqui.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
Dúvidas, sugestões, críticas? É só responder esse e-mail ou escrever para edugoldenberg@gmail.com
📩 Se você gostou do que viu aqui e ainda não assina a newsletter, inscreva-se no botão abaixo e receba por e-mail, uma vez por semana, sempre aos sábados, o Buteco do Edu. E se você achar que algum amigo ou alguma amiga pode se interessar pelo papo de botequim, encaminhe esse e-mail, essa newsletter, faça correr mundo esse balcão virtual.