Vejam bem uma coisa, vocês que me lêem. Vira-e-mexe eu me valho da expressão “arremesso violento em direção ao passado”. Geralmente, quase sempre – sempre, eu diria – estou me referindo à sensação absurda, quase-mágica, que experimento quando dou com uma foto minha, bebê, criança, adolescente, já – eu, às vésperas de completar 52 anos de idade, tenho cada vez mais esses arremessos. Pode lhes parecer apenas uma brincadeira para definir o que muitos de vocês chamariam de saudade ou mesmo de nostalgia. Isso seria, se fosse de fato apenas isso, extremamente reducionista. Porque o arremesso violento em direção ao passado a que me refiro, meus poucos mas fiéis leitores, é mais do que isso. Infinitamente mais que isso. Mais grave que isso. Mais intenso que isso. E muito mais bonito que isso. Vou às minhas digressões em busca de ser compreendido e a fim de prosseguir nessa batalha diária, nesse lufa-lufa incessante e doído que é o exercício de exorcizar os anjos e os demônios que moram em mim.
Se eu realmente sofro esses arremessos diante de uma foto minha, antiga, de um encontro com um parente, por exemplo, como aconteceu quando encontrei-me com o Alexandre um dia desses - meu tio, irmão de minha madrinha, filho de minha tia-avó -, se esse arremesso é capaz de produzir em mim, de forma muito nítida, os cheiros que me levam aos cenários para os quais me transporto, se ouço as vozes dos fantasmas com os quais convivi, vocês façam uma idéia do que sinto ao me deparar com uma fotografia de há séculos – como a que ilustra este texto.
A foto é da década de 40 (portanto, de mais de 30 anos antes de eu vir ao mundo). Nela estão, na casa em que viviam meus bisavós – Mathilde e Eugênio, e ele eu sequer conheci – à esquerda minha tinha Linda, Carlinda para ser mais preciso, e à direita minha avó Mathilde, tendo minha tia Linda sua filha Maria Vitória no colo (minha madrinha, a quem não vejo há mais de 30 anos) e minha avó, mamãe – Mariazinha.
A foto me dá febre (e se vocês duvidam de mim, lamento profundamente não poder lhes mostrar o mercúrio do termômetro na casa dos 37 graus). E na busca enlouquecedora da razão da febrícula, me perco: pode ser porque minha avó me dá uma saudade tremenda, ela que foi oló em dezembro de 2010. Pode ser porque fiquei sem ver minha tia Linda por mais de 30, 35 anos antes dela morrer (sofria de Alzheimer e, por conta disso, ainda que eu superasse a aridez do caminho que eventualmente me levasse até ela, ela não lembraria de mim e isso me causaria uma dor profunda). Pode ser porque não convivo com minha madrinha há mais de 30, 35 anos, e nem mesmo sei se ela ainda é minha madrinha (não, não é), mas é uma hipótese a se considerar. Pode ser causada, a febre, por conta da imagem de minha mãe ainda bebê, vestindo um vestido branco belíssimo como o que nunca vestiu a filha que eu não tive, com laço de fita nos cabelos e com uns sapatinhos que – vejam vocês como sou parte de uma família de obsessivos pela memória – mamãe guarda até hoje numa das estantes da sala de sua casa, eles que receberam um banho de cobre para que ficassem preservados para todo o sempre (e meu filho, Leonel, brinca com eles sempre que vai lá). Pode ser porque vejo (imaginando), atrás das duas irmãs, na fotografia, meu tio Beneval e meu avô Milton – também já mortos.
Olho, olho de novo, tiro a temperatura, ouço a voz das primas que nunca mais se falaram, ouço a gargalhada de minha avó, ouço a voz da tia Linda, e antes de prosseguir quero lhes contar um troço. Vamos a uma breve pausa.
Certa ocasião houve uma festa na casa de meu irmão, Fernando. Pois bem. Estava eu sentado à mesa, era cedo ainda, quando percebo chegando duas mulheres e três adolescentes descendo a ladeira que liga o portão ao jardim da casa. Disse-me o Fernando:
– Não sei quem são. Você sabe?
Ele estava de frente. Virei-me, ative-me com mais cuidado, senti o frêmito e disse:
– Ana Paula e Carla. As crianças não sei quem são.
Vejam: Ana Paula é filha da Maria Vitória, eu também não a via há muitos anos. Carla é filha de meu tio Carlos Henrique, meu tio Hique, filho de minha bisavó Mathilde, irmão de minha avó, e os adolescentes eram filhos da Ana Paula. Daí eu, que já estava em transe por conta do arremesso que a simples realização da festa causava, deixei-me levar pelo turbilhão do tal arranco. Estranhíssimo, quero lhes dizer, ouvir aquele oi, primo. Não era exatamente a presença delas que me tirava dali em direção a sei-lá-pra-onde. Era minha bisavó, que pairava sobre nós, sabe-se lá se satisfeita com aquele reencontro, era minha avó, também presente, era aquele cheiro insuportável de hortelã, das pastilhas de minha bisa, misturado a um cheiro de talco, que me tiravam do eixo. Ana Paula bem que tentou um diálogo, e só eu sei a força que fazia, olhando para pontos distantes dali (disso bem me lembro), para não sair dizendo as frases desconexas que me vêm à boca numa hora como aquela. Era o que eu queria, por enquanto, lhes dizer. Voltemos à fotografia.
Nada do que vislumbrei como sendo a causa do aumento abrupto da minha temperatura era, de fato, responsável pela febre. Eu tinha febre (ainda tenho, enquanto escrevo) por conta dos dentes de minha avó. Notem bem: são dentes horríveis, amarelos, enegrecidos. Vovó fumava. E eu não tenho essa imagem dos dentes de minha avó, em mim. Amarelos, em relação à minha avó, só os azulejos de seu banheiro, o mesmo que testemunhou minha descoberta do gozo com a Adele Fátima, meu primeiro contato com a quiromania. Vovó, quando morreu, usava dentaduras (e era, confesso, uma dentadura belíssima, vovó tinha um sorriso belíssimo, vovó era doce como a mais doce das avós). E esse não conhecer seus dentes amarelos me causa arrepios absolutamente incompreensíveis.
Em apertada síntese, às vésperas de meus 52 anos (faço anos no dia 27 de abril), tenho aguda saudade de minha avó e de seus dentes amarelos. Amarelo me lembra também um girassol. E girassol me remete, de imediato, não a Van Gogh, como a grande maioria de vocês deve ter imaginado. Mas ao catavento que tem dentro o que há do lado de fora do meu girassol. Sou eu, meus poucos mas fiéis leitores, com saudade de minha avó, pedindo a ela um sustenido e me deparando com esse sorriso bemol, amarelado, que me dá essa febre incompatível com o momento que vivo, de febril saudade (me basta a febre da saudade, eu não preciso que minha temperatura suba). Mas é sempre assim, quando abril.
Sou um sujeito entorpecido por cada um dos abris que já vivi. E enquanto tomo um analgésico pra afastar de vez essa febrícula inconveniente, tomo também meu chimarrão, que tem na cuia um risco também amarelo, pensando em quem me trouxe sol (amarelo) para amainar a sombra de tantas ausências quando não havia sol.
TIJUCANISMOS
Muitas histórias envolvendo meus fantasmas está no meu livro que está sendo lançado pela Mórula, a editora do meu coração.
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A pré-venda vai até 30 de abril e ele chega pra você com dedicatória minha, carregada com o axé desse pedaço da cidade. Um tanto alquebrada, a Tijuca - dizem os detratores. Mas verdadeira. Única. Cheia de um borogodó que só quem é daqui conhece.
Até.
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