Sempre fui um obcecado pelas religiões, pelos religiosos, pelos ritos, pelo modus vivendi e operandi dos que seguem as religiões, sejam elas quais forem. Sempre. Desde cedo, no mafuá familiar, via os católicos e as católicas, os terços, os livros sagrados em miniatura (minha bisavó e minha tia Idinha, sua irmã, passavam o dia entre as agulhas de crochê e as centenas de santinhos que marcavam as páginas de suas Bíblias portáteis), os espíritas e as espíritas, ouvia os impressionantes relatos envolvendo espíritos, mentores, guias benfazejos (tinha muito medo quando ouvia benfazejos), histórias espetaculares de possessões, mediunidade, as histórias mais inverossímeis do mundo contadas com ares de verdade que assombravam o menino que eu ainda sou, meu avô judeu e minha avó judia (que ia à sessão espírita escondida do vô), as sinagogas, um ou outro tio, uma ou outra tia mais chegada à macumba - um mafuá, em apertada síntese.
Vou lhes contar umas das impressionantes (e inverossímeis) histórias que ouvi pra mais de quinhentas vezes ao longo de pouco mais de 52 anos. E pra que vocês que me lêem tenham exata noção do que eu ouvia, narrarei precisamente como a narrativa se dava. Podia ser minha mãe, minha avó, uma das tias, um dos tios - jamais minha bisavó, que era católica fervorosíssima - e as palavras usadas para a construção da cena eram as mesmas.
A Linda (casada com meu tio Beneval, e me digam se é possível que uma criança cresça sem trauma tendo um tio chamado Beneval) é que era a personagem principal. Vamos à história.
Alguém dizia, do nada (sempre quando havia um público de sessão espírita comandada pelo Chico Xavier):
— A tia Linda é uma médium impressionante!
E dava-se o côro de muxoxo, de concordância, as cabeças ritmadas fazendo um sim impressionado já que tia Linda, como a mãe (minha bisavó), era católica apostólica romana praticante, daquelas de andar com o terço no punho as 24 horas do dia.
Seguia:
— Impressionante! Lembra daquela tarde, mamãe? - estou forjando que é mamãe contando e se dirigindo à mãe, minha avó.
E minha avó, espírita fanática e absoluta:
— Claro, querida. Claro que lembro!
E mamãe emendava:
— E tia Linda é católica fervorosa!
Dava-se um silêncio já esperado, todos se entreolhavam, mamãe seguia:
— Tia Linda nunca tocou piano, né, mamãe?
E vovó, olhos fechados:
— Nunca!
— Pois naquela tarde, lembra?, do nada… tia Linda rodopiou pela sala, sentou-se num golpe de fúria diante do piano…
Fazia uma pausa e dizia a frase mastigando as sílabas:
— … e tocou uma sinfonia inteira, lembra, mamãe?
Minha avó, pondo a mão espalmada sobre o joelho da filha:
— Claro, Mariazinha, claro.
Daí mamãe repetia:
— Uma sinfonia inteira!
Vovó sempre com a mesma blague:
— Sinfonias, sinfonias! - e frisava o “s” sibilando lentamente no final da palavra.
Tia Linda fazia sempre a mesma cara, os dois olhos pro alto, a expressão de sem-paciência (não acreditava naquilo de jeito algum!) mas a ala espírita da família muxoxava sempre a mesma frase:
— Deixa ela! Na próxima encarnação ela aprende!
Esse tom de ameaça que eu jamais compreendi.
SESSÕES DE MESA BRANCA
Desde menino, sempre levado pelas mais-velhas, acompanho sessões de mesa branca em centros espíritas. Já nem sei a quantos centros fui: um no pé do morro do Andaraí, o preferido de vovó, presidido pelo doutor Lauro (quem já leu Tijucanismos sabe bem quem é), chamado Bezerra de Menezes, um dos nomes preferidos para batizar centro espírita. Outro em Copacabana, num prédio comercial, sala apertada sempre lotada - e freqüentadíssimo por artistas. Lembro-me de mamãe, sempre sôfrega, dizendo pras tias:
— Ontem tomei um passe do Francisco Cuoco!
As velhas, mesmo as católicas, gemiam.
Um na Praça da Bandeira. Outro no Grajaú, enfim… uma quantidade inacreditável de centros espíritas.
Na imensa maioria das vezes eu ia acompanhando minha avó Mathilde, mãe de mamãe. Vovó, quando eu na mais tenra idade, bebia (muito), fumava (desbragadamente), cantava (alto), jogava (carteado)… até entrar num centro espírita. Lá, mudava de postura.
O vocabulário mudava: espíritos benfazejos, mentores espirituais, eflúvios, passe, água fluidificada, obsessores, mediunidade, psicografia, reencarnação, Kardec, as palavras boiavam sobre minha cabeça de menino e eu ficava assombradíssimo vendo a transformação de vovó.
Mas eu me divertia - por óbvio.
E poucas coisas me faziam achar tanta graça quanto as sessões de psicografia. Todos os médiuns punham o polegar sobre uma das têmporas e os demais quatro dedos fazendo uma espécie de aba a tampar o rosto; a outra mão, ocupada por um lápis (sempre me instigou o não-uso de canetas), rabiscava um papel em branco que era sempre reposto por uma espécie de cambono ou de cambona que auxiliava o médium na tarefa da psicografia.
Nunca - nunca! - me esquecerei dessas sessões, dessa plástica teatral dos médiuns, da transformação de vovó, que assim que chegava do centro jogava o Livro dos Espíritos num canto da sala e corria pra pegar o baralho, o cigarro (fumava Hollywood) e sua cervejinha.
A ABSOLVIÇÃO PERMANENTE DOS ESPÍRITAS FANÁTICOS
Outra coisa que sempre me intrigou: a capacidade do espírita sentir-se superior aos adeptos de outras religiões. Uma espécie de empáfia, o olhar de piedade e o neon piscando permanentemente na testa: um-dia-você-vai-entender.
Para tudo, sempre, a mesma explicação e/ou a mesma solução.
Elemento A agride o elemento B? O elemento B faz por merecer em vidas passadas - ou na última encarnação (uma palavra que sempre me causou calafrios).
Elemento B não perdoa o elemento A? Na próxima encarnação ele expiará (verbo utilizadíssimo pelos kardecistas).
Tenham isso em mente. Volto ao tema noutra oportunidade (mas ainda nessa encarnação, assim espero).
CANTO DA SABIÁ
O Canto da Sabiá é um clube de leitura infantil em português para famílias brasileiras e multiculturais que vivem na Europa.
Iniciativa de uma grande amiga - Carolina Cadavid -, o Canto da Sabiá pousa aqui, na newsletter, pra minha profunda alegria.
Todo mês, as crianças recebem um kit composto por um livro infantil em português, escolhido pela curadoria dentre as melhores editoras, um guia de leitura com uma seção especial sobre Português como Língua de Herança, um postal ilustrado por artistas do Brasil e um mimo.
O Canto da Sabiá acredita acredita que ler em português para uma criança é uma experiência privilegiada de intercâmbio de valores fundamentais na infância, tais como afeto, cuidado e pertencimento linguístico e cultural. Os falantes da língua portuguesa no exterior expressam seus valores e seus vínculos afetivos e identitários por meio da linguagem. O clube leva até você um instrumento importante de pertencimento da comunidade: o livro infantil em português, cuidadosamente selecionado pela curadoria.
Eu conheço a Carol e sei o quanto de afeto ela empresta à iniciativa.
Sei que há gente morando na Europa assinando a newsletter, pra minha alegria. Sei também, por óbvio, a teia de afetos me permite saber disso, que todo mundo conhece alguém vivendo na Europa, expatriados, gente que mantém, com a língua portuguesa, uma relação muito forte e muito profunda.
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TIJUCANISMOS
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