Eu não sei se você que me lê é como eu no quesito valorização dos amigos, dos conhecidos, dos que meramente cruzam nossos caminhos (muita gente escreveria dos amigues, dos conhecides, mas isso deixa para lá).
Eu sou um atento permanente e disseco quem me cerca com a fome e com a sede dos náufragos. Detalhe: foi Aldir Blanc quem me ensinou a ser assim.
Certa ocasião perguntei a ele de onde ele tirava inspiração para tantas letras, para tantas crônicas e ele foi definitivo:
— Não tem inspiração. As histórias estão todas prontas, boiando em torno de nós. Basta ter olhos de ver e ouvidos de ouvir. Vá um botequim, por exemplo. Fique num canto do balcão bebendo de leve. E ouça as histórias, os dramas, as mentiras… tá tudo ali!
Dito isso, vamos ao que hoje interessa.
Hoje quero lhes falar sobre Guilherme Boisson, icônico personagem da cidade e um amigo recente - posso dizer amigo (apesar da abissal diferença de idade entre nós, ele ainda não chegou aos 30) e posso dizer recente.
Antes, e de pronto, uma curiosidade. Em todas as ocasiões que calhou de eu apresentar o Boisson a uma amiga (ou mesmo a um amigo) deu-se o seguinte: eu terminava de dizer-lhe o nome - Boisson - e percebia na fronte e nas expressões de quem encontrava-se diante dele o deslumbre com a sonoridade francesa do pomposo sobrenome (pronuncia-se Boassom).
Isso - a pompa do sobronome - aliado à figura do Boisson (há, no Boisson, um homem longilíneo, permanentemente, a aura, o olhar, o comportamento, o gestual e a falsa naturalidade do intelectual que, nele, não é falsa) faz dele um personagem interessantíssimo. Faço breve digressão para lhes apresentar a ele.
Quando nos conhecemos - não lembro exatamente em qual ocasião - apresentados que fomos por um amigo comum, houve aquela troca formal de cumprimentos até que (lembrei!, lembrei!, foi num restaurante!) o assunto chegou à música.
Sabe-se lá por qual razão eu falei em samba, em Beth Carvalho, em Moacyr Luz. E percebi a reprovação de Guilherme Boisson, seus olhos revirados, um discreto bufar denotando impaciência. Fui direto:
— Você não gosta?
Olhando pro horizonte (uma das táticas, uma das práticas, um do números clássicos de Boisson) ele foi sucinto:
— Só gosto de folk.
Eu não sabia o que dizer.
E ele, emendando a sentença, passou a tecer considerações sobre o folk que me deixaram atônito, mudo, sem ter o quê dizer (não sei nada a respeito do folk).
Quis voltar pro jogo. Dei um jeito de dizer que eu tocava - e gostava de tocar - violão. Fui humilhado:
— Eu também toco violão.
Antes que eu dissesse qualquer coisa, deu um vigoroso gole da bebida que tinha diante de si (Campari) e continuou:
— E cavaquinho, baixo, piano, ukulele, sanfona, flauta, sax…
Pedi licença pra ir ao banheiro (éramos seis à mesa).
Quando voltei, o assunto era literatura. Um dos comensais disse, apontando o copo na minha direção:
— O que você gosta de ler?
Fiz a blague:
— Eu só leio Nelson Rodrigues.
Pra quê?
Guilherme Boisson ajeitou-se na cadeira, riu, olhou-me com olhar de evidente piedade, e disse:
— Flaubert… você não lê?
E continuou, como se rezasse, antes que eu respondesse:
— Leibniz, Kant, Hegel, Schopenhauer, Marx, Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein, Fichte, Schelling, Bauer, Schleiermacher…
E vejam.
Guilherme Boisson notabilizou-se - e por isso referi-me a ele como icônico personagem da cidade - por sentar-se quase todos os dias numa das mesas do Talho Capixaba, no Leblon, onde mora, com um clássico nas mãos. Pode ser um Flaubert, um Kant, um Lacan, não importa: o que é necessário é que ninguém entenda o que ele lê e que todos babem diante daquele homem cool, amante do folk, fazendo a linha intelectual.
Por fim - mas eu volto, num futuro próximo, num desses sábados, a falar sobre ele - o Guilherme Boisson é responsável pelo que considero um feito. Eu, que acho que sou um sujeito razoavelmente bem formado e bem informado, sinto-me um andrajo intelectual diante da pujança verbal e espiritual dele. É acachapante.
Não é incomum que entre nós os assuntos pululem, apareçam, dancem em volta de nós. E sempre - sempre - que ele abre a boca para dissertar sobre o assunto em tela (seja economia, política, arte, filosofia, culinária, tricô, agricultura, seja o quê for) eu sou um mudo, um mudo absoluto, que no máximo tem coragem para concordar, balançando a cabeça, soltando um claro de vez em quando.
Por fim (agora sim, por fim): ontem jantamos, mesa de três.
Eu, Gustavo Villani, meu queridíssimo Guga, e ele, Guilherme Boisson.
Notem que o conhecido, o famoso, era o Villani. - natural que fosse ele o centro das atenções das mesas à volta.
Entretanto foi ele, Guilherme Boisson, que roubou a cena.
O restaurante era asiático (essa nova febre na cidade).
Nenhum de nós três jamais havia estado ali - recém-inaugurado.
Eu e Guga mudos diante do mâitre, que veio à mesa. Mudos diante dos garçons.
Ambos, eu e ele, assistindo estupefatos à performance de Guilherme Boisson: conhecia todos os pratos, tecia comentários detalhados com quem nos servia sobre os molhos, os temperos, sua pronúncia era perfeita - as mesas ao lado filmavam suas falas, como se estivéssemos todos numa peça de teatro - e até os saquês, que eram muitos, foram dissecados por ele, um a um.
Um dos pontos altos da noite foi quando decidimos, então, pedir uma garrafa de saquê.
Eu e Villani dissemos juntos:
— Azuma Kirin Dourado!
Tomamos um esporro:
— Não! - Boisson nos cortou.
E dirigindo-se ao garçom:
— Traga, por favor, uma garrafa de Dassai Junmai Daiginjo 45.
— Pois não, senhor.
E olhando pra nós dois, com boquinha de nojo, disse:
— Esse, sim, é leve, equilibrado, limpo e fácil de beber. Esse saquê é uma estrela. É maravilhoso para iniciantes, como vocês, entrarem no mundo do saquê. Na boca, vocês notarão, há frutas não muito doces. Aroma doce e frutado com pêssegos, morangos, jasmim, gengibre e flores de laranjeira. Nível muito baixo de presença de koji. Sensação na boca seca e aveludada. Um Daiginjo incrível.
Uma aula, me disse o Guga quando nos depedimos.
Mas, como lhes disse, volto ao tema - ao personagem, mais precisamente.
RODRIGO GAVA
Há meses - muitos meses, eu diria que há mais de ano - não nos víamos.
Rodrigo Gava, quem me acompanha sabe, é - na íntegra acepção da palavra - um intelectual.
Citei Rodrigo Gava pela primeira vez, percebam como sou preciso do início ao fim, em 21 de fevereiro de 2013, aqui.
Vamos ao que disse:
“Lembro-me como se fosse hoje. Ela, sem esconder a excitação com a efetiva possibilidade daquilo acontecer o quanto antes, disse-me com os olhos fixados nos meus:
– Você pre-ci-sa conhecer o Gava! – e ela disse o “precisa” assim mesmo, separando as sílabas, enfatizando a necessidade do encontro.
Estávamos no Bar da Maria, na rua Garibaldi, e eu dei corda:
– É? Por que?
Ela derramou-se em elogios e passou a desdobrar, sobre a mesa, a biografia do sujeito. Eram conterrâneos, do Paraná, e ele já estava morando há coisa de uns meses (pouco mais de ano) no Rio, “um pouco deslocado”, (acho que) ela disse. E tornou a repetir, depois de um vigoroso gole na cerveja estupidamente gelada que dividíamos:
– Você pre-ci-sa conhecer o Gava!
Fato concreto é que eu conheci o Gava.
Antes, porém, faço questão de lhes contar um detalhe fundamental.
Durante a tal conversa no Bar da Maria, ela disse-me quase aos cochichos:
– O Gava é católico.
E eu sei lá por qual razão a junção dessas duas palavras numa mesma frase – Gava / católico – causou-me uma espécie de respeito prévio, imediato, pelo sujeito. Ela foi adiante:
– Católico! No duro! E da ala avançada da Igreja…
Tornou a baixar a voz:
– Respeita a Quaresma…
Voltemos.
Conheci o Gava poucos minutos antes da saída do Bola Preta, no Carnaval de 2012. Estávamos, eu e ela, começando a viver nosso primeiro Carnaval juntos e ela achou uma boa idéia, vá entender, apresentar o namorado (eu) para o amigo (ele) na manhã do Sábado de Carnaval.
Eu estava fantasiado de Vilma Flinstones, um vestidinho com estampa de oncinha, meia arrastão, com unhas postiças pintadas com esmalte cor-de-abóbora, uma peruca imensa combinando com as unhas, óculos escuros comprados na rua da Alfândega, na véspera, e rodando uma bolsinha porque eu já saíra calibrado de casa – evidentemente.
A impressão que guardei desse primeiro encontro – eu estava impressionado desde o Bar da Maria – foi a de que ele foi, assim, 100% católico: lembro-me dos olhos compungidos de tanta piedade diante de mim (guardo ligeira impressão de ter visto ele fazendo o sinal da cruz como que a me benzer) e de nada mais, até nosso encontro seguinte (já bem depois do Carnaval).
De lá pra cá, eis a verdade: constatei que o Gava é, efetivamente, um grande praça. Almoçamos com beneditina freqüência, trocamos e-mails com alguma assiduidade, vamos lá, aos poucos, costurando uma relação como – é como penso – ela imaginou no não tão longínquo novembro de 2011. Mas a cada encontro – eis o assombroso! – eu saio repetindo, de mim para mim:
– O Gava é católico.
E logo depois eu mesmo emendo:
– Apóstólico e romano!
Pausa: o Gava anda tendo cólicas de ansiedade com a eleição papal que se aproxima. Nisso, vejam que bonitos são os caminhos da vida, ele e o Szegeri (um ex-católico fervoroso) são irmãos. Volto ao assunto.
Até que, poucos dias antes do Carnaval deste 2013, almoçávamos, eu e o Gava, no centenário Cosmopolita, na Lapa. E eu estava reclamando do meu estado físico (estou, a cada dia que passa mais, uma bóia) quando ele me interrompeu:
– Recolha-se na Quaresma.
E disse isso, meus poucos mas fiéis leitores, com uma calma, com uma tranqüilidade, que vi pombas brancas sobrevoando sua cabeça, uma espécie de São Francisco de Assis (mais bonito, que o Gava é um pão, diriam minha bisavó e minha avó) diante de um rebento perdido e transido.
E cá estou eu vivendo minha primeira Quaresma, sem pôr uma única gota de álcool na boca desde o domingo último (sei que, com isso, não estou a seguir as regras de Roma, mas meu Papa é outro). No sábado, inclusive – notem o grau de santidade do cara – estive no Desfile das Campeãs com a Morena. Quem foi conosco? Ele, o Gava.
Sambou como um curitibano. Bebeu como um cossaco. Dormiu no concreto das arquibancadas como um mendigo. E faltando pouco pro dia clarear, ergueu-se e despediu-se de nós.
Deu-me um fraterno abraço, uns tapinhas nas costas, e soprou-me no ouvido, catoliquíssimo:
– É amanhã, é amanhã! Comece amanhã! Quarenta dias não são quarenta horas. Boa Quaresma… – e sumiu em meio à multidão.”
Fato é que - por razões que não interessam, confusões que a vida apronta, desencontros potencializados por particulares angústias - não nos víamos, não nos falávamos, não nos escrrevíamos há mais de ano.
Qual não foi minha alegria ao receber, no domingo passado, às três e cinqüenta da manhã - eu havia levantado para o xixi da madrugada - um e-mail extenso, extenssíssimo, intenso, assinado por ele.
Não voltei a dormir.
Respondi sofregamente a ele - que está em Curitiba.
Pra semana, já marcamos, vamos aos cotovelos no balcão.
Outro grande personagem, o Gava - por isso dele falo na seqüência, depois do Boisson.
Como diz outro grande amigo, Rodrigo Carvalho, que isso repete como mantra quase todos os dias: é a vida acontecendo.
Não está sendo fácil - insisto.
Mas a vida não cansa de me surpreender positivamente e por isso - também como mantra - repito: não vai ser agora, franca e sinceramente, que o espetáculo vai parar.
DICAS DA LOTERIA POPULAR
Quem me lê sabe da devoção que tenho pelo jogo do bicho, a loteria popular.
Nem me lembro de quando comecei a jogar - muito menino, muito!
Eu tinha verdadeiro fascínio pelos apontadores, por seus blocos e seus papéis carbono, suas caligrafias idênticas (que eu imitava em casa, reproduzindo jogos imaginários), pelos sorteios - eram três por dia, hoje são cinco.
Vamos, pois, ao que interessa. Uma dica.
Na estréia dessa sessão - sugestão de Luiz Antonio Simas - uma dica pra quem for jogar numa milhar.
1260, por exemplo - a milhar sorteada no terceiro prêmio ontem, às 18h (na qual eu havia apostado).
Se você vai ao ponto pra jogar na milhar 1260 (grupo 15, jacaré - dezenas 57, 58, 59 e 60), jamais jogue meramente na cabeça.
Jogue sempre a milhar cercada pelos 12 (porque serão sorteadas cinco milhares e sete centenas, e você ganhará o prêmio se a milhar 1260 sair em qualquer das cinco posições e se a centena 260 sair também na sexta e na sétima posição).
Nunca deixe de pedir a quem aponta o jogo que também jogue na milhar do talão. Não há nada mais desesperador do que descobrir, depois (sem ter jogado), que a milhar ou a centena do talão está entre os números sorteados.
Jogou na milhar? Não custa fazer a fezinha no grupo.
E se for jogar no grupo, faça uma aposta num duque de dezena combinado com as quatro dezenas do grupo (no caso aqui, 57, 58, 59 e 60). Saindo um duque entre as cinco dezenas dos cinco primeiros prêmios, você ganha.
Um real no milhar (ou seja, aposta de R$ 12,00 se for cercada pelos 12) paga R$ 4.000,00.
Um real na centena paga R$ 600,00.
E um real no duque de dezena combinado (jogando 4 dezenas você terá 12 combinações de duque, ideal apostar R$ 12,00) paga R$ 300,00.
Hoje, sábado, é dia de Loteria Federal.
O que significa dizer que, como acontece às quartas-feiras, a extração do jogo do bicho das 18h será regida pelo sorteio da Loteria Federal (convém também apostar na milhar do número do sorteio).
O de hoje é o sorteio de número 5822.
Então eis o palpite (não se esqueça de jogar a milhar do talão também).
5822 na cabeça, R$ 1,00.
5822 pelos 12, R$ 12,00.
Grupo 6 (cabra), R$ 31,00.
Duque de dezena combinado (21, 22, 23 e 24), R$ 6,00.
Um jogo de R$ 50,00 na extração da Loteria Federal, ou de R$ 100,00 se você jogar também a milhar do talão.
Se você entende muito pouco (ou nada), seja humilde quando for cantar o jogo pro apontador ou pra apontadora. Normalmente eles adoram atender aos neófitos.
E anote: se vencer, 10% pra quem apontou o jogo.
É a parte deles no prêmio.
Nunca use o termo gorjeta.
A primeira vez que ganhei (há mais de 40 anos!), estendi o valor dos 10% do meu prêmio pro apontador e disse:
— Sua gorjeta!
Ele tomou o dinheiro da minha mão e disse:
— Eu não sou garçom pra ganhar gorjeta. Isso é minha parte no prêmio! - e piscou o olho pra mim.
Boa sorte!
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, o texto Lênin vai ao samba, publicado em 15 de julho de 2009, aqui. Esse texto, pouco depois, foi publicado (em primeiro de agosto de 2009) no Jornal do Brasil, tamanho o sucesso - às favas, a modéstia - que fez à época.
“Vladimir Ilitch Lênin tomou o metrô logo cedo, na estação Cantagalo, depois do café da manhã servido na pérgula do Copacabana Palace. Desceu no Estácio e tomou a linha 2, disposto a ter contato com o povo, que disseram a ele, durante o champagne com ovas de esturjão que lhe foi oferecido à beira da piscina do hotel, que o povo estaria lá pros lados da Pavuna. Era sábado. Lênin saltou na estação Pavuna, achou tudo muito feio – fez boquinha de nojo quando pôs os pés nas calçadas da avenida Martin Luther King – e decidiu, menos de – o quê?! – 15, 20 minutos depois, tomar o rumo de volta. Minto. Foram 25 minutos. Lênin ficou profundamente emocionado quando deu de cara com um Lada vermelho, em estado lastimável, estacionado na frente de uma oficina mecânica ao lado de um botequim, onde bebeu, para aplacar a emoção, num só gole, uma dose de Balalaika, a melhor vodka à venda no lugar.
Quando embarcou de volta com intenção de ir à praia, em Copacabana, diante do hotel, não imaginou que fosse encontrar o vagão cheio. Dentro, um grupo de jovens (“estudantes”, ele pensou) distribuía um panfleto anunciando um evento na Praça XV com roda de samba na rua da Ouvidor. “Vou”, ele disse de si para si. E teve ainda mais certeza quando viu, entre os jovens, um senhor com admirável barriga, suspensórios, uma boina de lã, barbado como ele, ajudando na distribuição dos panfletos. Decidiu, ali, calado, pensando no sufoco que enfrentou na Sibéria (a boina de lã foi fundamental para que o arremesso ao passado fosse efetivado), que seguiria aquele animadíssimo grupo.
Saltaram todos na estação Carioca. Lênin encantou-se com os arranha-céus da avenida Rio Branco. Atravessou a avenida em obsequioso silêncio e achou curioso que aquele velho, velho como ele, fosse seguido por tantos jovens (não eram tantos assim, eram cinco).
Pararam todos numa praça. O velho – não ele, o outro, da boina de lã – foi saudado por um pequeno grupo (eram pouco mais de vinte) parado diante de uma caixa de som. Um rapaz mal vestido ligou o amplificador e estendeu o microfone em direção a ele, que foi anunciado como vereador. Lênin entendeu tudo. Era – ele, espertíssimo, sacou o troço todo em questão de segundos – um comício de um partido político. Só então tomou coragem e se dirigiu ao velho da boina de lã, no instante em que ia começar o discurso:
– Senhor, o que significa a sigla PSOL?
Sem reconhecer Lênin, o velho respondeu de mau humor e desferiu um safanão, de leve, no velho bolchevique.
Lênin, abismado com a descortesia do camarada (ele ia chamá-lo de camarada até que levou o safanão), abriu os braços, fez uma expressão-máscara de incompreendido e foi quando decepcionou-se agudamente. Ninguém ali, nenhum dos aguerridos partidários do PSOL o reconheceu. Ele então puxou do bolso do casaco o panfleto que recebera no metrô e seguiu o mapa em direção à rua do Ouvidor. Magoou-se de leve quando ouviu o velho da boina de lã muxoxar:
– Velho chato!
Lênin desceu a São José, entrou à esquerda na rua da Quitanda, desceu a Assembléia à direita e foi dar na Primeiro de Março. Admirou-se com a imponência da Assembléia Legislativa e lembrou de Moscou. Com medo de ser visto ou reconhecido daquele jeito, emocionado, enxugou as lágrimas de saudade que brotavam dos olhos com a manga do casaco e tomou a direção da Praça XV. Ainda seguindo o mapa, entrou pelo Arco do Teles e chegou, finalmente, à rua do Ouvidor.
Desde muito antes ele já ouvira o som do samba (pela primeira vez, diga-se a título de curiosidade). E não escondeu o susto com a rua cheia, tomada de gente bebendo cerveja e cantando. Encostou no balcão de um bar de esquina e pediu uma dose de vodka. Um único gole e o primeiro susto.
Lênin viu que uma mocinha o vira. Pela expressão da moça (sandália de couro cru, pulseirinhas de corda no tornozelo com pequenos búzios, saia de chita, blusinha branca e cabelos desgrenhados com lêndea), boquiaberta, ele disse para dentro:
– Fui reconhecido!
Acompanhou a moça com os olhos.
Deixou uma nota de cem dólares sobre o balcão, soltou um “fica com o troco” para o garçom e seguiu a mocinha. Encostou-se no portão da igreja Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores e viu quando ela cochichou alguma coisa no ouvido de um dos músicos da roda de samba (“que engraçado esse violão pequeno”), pensou olhando pro instrumento nas mãos do músico. Este, que tinha ares de dono da roda, deu um safanão na piolhenta mas virou-se em busca de alguma coisa.
– Está me procurando… – disse de si para si, esboçando um sorriso.
Seus olhos se cruzaram. O rapaz do cavaquinho cochichou alguma coisa no ouvido do rapaz do violão, que cochichou alguma coisa no ouvido do menino do pandeiro e deu-se a correr a notícia.
Lênin chegou a suar frio quando percebeu que quase todos os músicos usavam um bottom com sua imagem preso na camisa. Um deles, tocando reco-reco, vestia inclusive uma camisa preta onde se lia LÊNIN em vermelho, e ele foi, ali, um russo em estado de graça.
Em coisa de quinze minutos o terreiro grande ficou pequeno diante de tamanha balbúrdia. Até que veio o intervalo. E um músico pediu silêncio:
– Gente, gente, silêncio, silêncio…
Lênin se aprumou. Iria ser anunciado.
Continuou:
– É com imenso orgulho que recebemos aqui, hoje, na roda do Ouvidor…
Percebendo que havia conquistado a platéia, bebeu um gole da bebida (“uísque”, pensou Lênin) e depois do pigarro disse:
– Guilherme de Brito!
Lênin sentiu o peso do indicador do músico no peito, ainda que à distância. Todos os olhos em sua direção. Muito barulho. Muita confusão, e Lênin notou que os músicos discutiam.
Uma outra mocinha, que não aquela primeira, saiu de uma livraria com um CD:
– Assina pra mim, seu Guilherme…
Lênin já estava chorando de tristeza, recusando o autógrafo, quando a azêmola emendou:
– Como vai a dona Nena?
Lênin apurou os ouvidos em direção à mesa dos músicos:
– Um bosta, cara! Popular demais! Um Luiz Carlos da Vila branco e mais velho!
Outro, exaltado (justamente o que vestia a camisa com seu retrato):
– Não vamos cantar porra nenhuma! Vamos de Candeia, pô! Candeia!
O do tamborim:
– Isso! Isso! E Picolino! E Colombo!
Lênin foi vaiado. Unanimemente vaiado, como nunca. Nem quando foi expulso da Universidade de Kazan, em 1887, o velho bolchevique conhecera tamanha agressividade sonora.
Saiu, pé-ante-pé, tornou ao balcão do bar da esquina e pediu outra dose de vodka ao garçom. Virou de uma só vez, deixou mais cem dólares (“fica com o troco”, ele repetiu) e tomou o rumo do metrô cantarolando a Internacional sozinho, triste, cabisbaixo, completamente destruído.
Ao vê-lo dobrando a esquina, disse um dos músicos erguendo a garrafa de uísque:
– Salve o samba de raiz! Salve o samba puro!
Um outro, visivelmente embriagado, exibindo ferozmente o bottom, berrou:
– Salve a revolução! Salve Lênin! Salve Trotsky! Viva! Viva a Cristina! Viva!
Outro:
– Salve o PSOL! Salve o PSTU! Salve a Cristina! Viva! Viva!
Foram aplaudidíssimos, os trombeteiros.
Até.”
Abaixo, a imagem do Jornal do Brasil daquele sábado, primeiro de agosto de 2009.
A ilustração coube ao Stocker, que ilustrou outros textos meus, sempre publicado aos sábados, no Caderno Idéias (não tinha acento mas dele eu não abro mão).
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
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UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, a playlist que montei, há umas semanas, no Spotify.
Nas últimas edições eu já indiquei a playlist a vocês, que me lêem.
Mas eu a incrementei.
Ei-la; ela está aqui ou, se preferir, ouça já!
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e traz as canções que mais gosto e que têm a cidade do Rio de Janeiro como referência - e ela está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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