É quase meia-noite de sexta-feira, 21 de abril.
Vim dormir com Leonel na casa de meus pais, o piá dorme num dos quartos e chamou-me há poucos minutos, acordou, e quando me viu (deitei-me a seu lado) disse apenas papai, eu te amo.
Estar aqui a poucos dias do 27 de abril é um açoite.
Os fantasmas falam bem mais alto quando estou aqui.
Cada vez que Leonel chama vovó! sou eu chamando minha avó, mãe de minha mãe, na casa 04 da vila de número 84 da São Francisco Xavier. E isso me desconcerta, me rasga, me arremessa pra muito longe.
Minha vó veio muitas vezes aqui - meus pais se mudaram pra esse apartamento em 1994, poucos dias depois do meu (primeiro) casamento. Casei-me novíssimo (um arrependimento dentre os poucos que carrego). Logo, não morei aqui.
Corrijo-me: morei por algumas semanas em 1999, quando me separei, até que mudei-me pro apartamento da Haddock Lobo, onde moraram meus avós paternos. Anos depois, num gesto que diz muito mais sobre meus sentimentos do que sobre meus investimentos, comprei o apartamento.
Falei casamento e quero fazer a confissão: estou casado pela terceira e última vez.
A primeira mulher está viva mas morreu há 24 anos.
A segunda morreu há 12 anos mas está viva.
Volto à prece que comecei.
Minha avó comemorou 50 anos de casamento aqui, nesse apartamento.
Bodas de Ouro.
Mamãe preparou uma festa surpresa pra dona Mathilde.
Foi, eis mais uma confissão, uma das coisas mais cafonas (e por isso mesmo, bonita) que jamais vi.
Vovó entrou com meu avô pela porta da sala enquanto a música tema de E o vento levou… tocava no máximo volume. Ela, que vinha para um simples jantar com a filha, o genro e os netos, chorava de guinchar diante do cenário. Cumprimentava um a um os convidados - o apartamento estava lotado, apinhado de gente, público de Fla x Flu - e trazia numa das mãos um buquê de rosas. Garçons vestidos a caráter disputavam espaço entre os convidados equilibrando as bandejas num dia quente (vovó suava que dava gosto de ver).
A foto abaixo é um frame do pequeno trecho do filme cujo link disponibilizo mais à frente. Vê-se vovó (atrás dela, meu avô Milton) com os olhos em choro e com o pequeno buquê a que aludi, nas mãos.
Um dos pontos altos da festa - percebam - foi o discurso emocionado, antes do bolo, do doutor Lauro, médico homeopata da família, espírita fanático, líder religioso de vovó. Convocado à mesa por minha mãe - “Gente, silêncio que o doutor Lauro dirá umas palavras!”.
Clique aqui e se delicie com o instante em que dona Mathilde chega e é efusivamente aplaudida pela assistência.
Falei em doutor Lauro e quero fazer a terceira confissão (antes, leiam aqui sobre o que se passou comigo por conta de uma receita assinada pelo dito cujo, em 1976, que mamãe me deu de presente).
O velório e o enterro do doutor Lauro são, até hoje, como uma chaga em mim. Marcaram-me abruptamente.
Quando mamãe me ligou chorando e disse “Edu, o doutor Lauro morreu…”, eu comecei, imediatamente, um dueto de lágrimas com minha mãe pelo telefone. Ambos ganíamos, gritávamos em desespero, soluçávamos. Ela me passou o horário do velório, no Caju (respeito infinitamente mais os mortos enterrados no Caju do que os que dormem para sempre no São João Batista), e eu tomei um táxi em direção ao cemitério.
Lá chegando, o susto.
A família do velho Lauro (dezenas de filhos, muitas dezenas de netos, muitos bisnetos!) estava em festa. Radiante. Muitos tinham nas mãos exemplares do Livro dos Espíritos, do Livro dos Médiuns, alguns números da revista Reformador, e de fato estavam exultantes com o que chamavam de “desencarne do papai”, “passagem do vovô” e outras bossas. Eu e mamãe – e apenas eu e minha mãe – destoávamos do conjunto: chorávamos a morte do doutor Lauro com requintes de tosses, espirros, fungadas, e éramos consolados – vejam vocês! – pelos familiares. Até vovó, ela também espírita fanática, dizia excitada: “Aposto que o doutor Lauro mandará mensagem psicografada ainda hoje!”. Fato é que aquilo me impressionou profundamente: centenas de pessoas em torno do esquife e apenas duas choraram o morto. Eu e minha mãe.
Pois doutor Lauro está por aqui (vovó também).
Vovó - vamos à quarta confissão - deu, certa época, de conversar com Morena à noite. Sonhando?, perguntarão vocês. Não, já me antecipo.
Eu, em estado sonambúlico (os espíritas fanáticos diriam incorporado), dei de falar com Morena como se fosse minha avó. Ora, Edu, às favas! Era sonho! E eu mandarei um por um à merda porque tivemos, ao longo de muitos meses - muitos! - de conversas muito longas (muitas delas gravadas) infinitas provas de que a coisa ali não era bolinho.
A mais impressionante? Vamos à quinta confissão.
Leonel não conheceu o avô materno, Benito.
Só por fotos - evidentemente que sempre mostramos fotos do avô pra Leonel a fim de que ele saiba quem foi o pai da Morena.
Se tem um troço que respeitamos, eu e ela, é a devoção à nossa ancestralidade.
Voltando à história.
Certa noite, alta madrugada, dona Mathilde conversando com Morena (eu era o cavalo, reitero) diz:
— Ô, minha filha… Leonel acordou. Mas ele não vem pra cá agora, não… E sabe quem tá brincando com ele no quarto?
— Quem, vó? - Morena, muito doce, se dirigia assim à minha avó.
— Seu pai! Ele veio conhecer o netinho de perto.
Corta.
Oito da manhã. Leonel entra correndo no nosso quarto. Pula em nossa cama, se deita entre nós. E manda:
— Mamãe, sabe onde eu fui?
— Onde, filho?
— No céu. Fui brincar com vovô Benito. Ele é alto, né, mamãe?
Tá bom pra vocês?
Eu ia continuar - era minha intenção continuar - mas não consigo.
Volto.
Hei de voltar até que chegue o dia 27.
Porque preciso seguir expurgando o que me atormenta, porque preciso extirpar o que me violenta, porque preciso escrever, escrever, escrever, escrever - até que eu canse.
Ou até que eu descanse, verbo que os que não entendem nada de nada usam pra dizer morreu. E falo por mim. Eu, quando for oló, como minha avó, vou querer tudo, vou querer furdunço, vou querer marafo, vou querer barulho, estardalhaço, só não vou querer descanso.
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