Ontem, 17 de novembro, uma amiga completou 40 anos (ontem mesmo, a bem da verdade, porque a newsletter que você lê hoje, sábado, eu escrevi ontem). Eu, organizadíssimo, recebo todos os dias, às sete e cinqüenta da manhã, avisos no telefone (e no relógio, sou moderníssimo) dando conta dos aniversários do dia. Adoro. Gosto de, à minha moda, rezar pelos meus, pelos mais queridos, de escrever ou de ligar para os aniversariantes ou de simplesmente lembrar do fulano ou da fulana que nasceu naquele dia. Uma confissão: nem os mortos saem da minha agenda. Gosto igualmente de lembrar deles. Invariavelmente, por conta disso, sofro meus arremessos, meus arrancos, em direção ao passado, logo cedo.
Ontem foi assim.
Antes, outra confissão: quando sei o ano de nascimento do aniversariante, tá lá depois do nome, e entre parênteses, o referido ano.
Pois ontem subiu seu nome, Joana, e o ano: 1983.
Subiu também o nome da filha de um amigo querido, a Luísa, e o ano: 2005.
Eu disse de mim para mim, ainda deitado:
— Quarenta anos!
E logo depois disse:
— Dezoito anos!
Bastou dizer quarenta anos e subitamente eu estava em 2009.
E antes de estar em 2009, eis um dos assombros que esses arremessos produzem, eu estava em 1983 - e logo depois, vocês verão, em 1987.
E comecei a enfrentar os revezes (e as benesses) desse transe febril: em 1983 eu estava com 14 anos e minha bisavó, a mulher mais impactante da minha vida, a matriarca, já estava morta. Eu morava no 90 da São Francisco Xavier, ao lado da vila do número 84, onde passei minha infância inteira. Meus avós já moravam num apartamento no Lins, eu batia punheta sôfregamente no banheiro de casa depois de escalar o armário de madeira que ficava na sala de TV e onde meu pai escondia, mal, a coleção de revistas eróticas que mantinha no mais alto. Eu ensaiava namorar uma menina judia, sócia do Monte Sinai, que veio a morrer tragicamente, num acidente de automóvel em Israel, que a matou juntamente com o marido e os filhos - isso há alguns anos, soube por sua própria mãe que, abatida como um zumbi, contou-me sobre o horror na entrada da feira da Vicente Licínio, num domingo de sol.
Brizola era Governador e eu já era absolutamente vidrado no Velho Caudilho. Era vidrado, também, na Elis Regina - que morrera um ano antes, em 1982, quando vi o apartamento em que morávamos virar um velório por conta da notícia da morte da cantora.
Ora eu estava com 14 anos, em 1983, ora eu estava prestes a fazer 40 em 2009. Minha festa de 40 anos foi nos fundos do Edifício Larsen, onde eu morava com Dani - que poucas semanas antes havia descoberto o câncer que a mataria pouco mais de dois anos depois, em julho de 2011. Ou seja, foi uma festa sem muito clima de festa, se é que vocês me entendem. Os planos indicavam que seria uma festa de arrasar quarteirão mas acabou que chamei poucos e bons amigos que dividiram comigo a alegria da data e a angústia do momento. Foi lá, nesse dia, que Luiz Antonio Simas - esse troço é um marco pra mim - me deu de presente, embrulhado num jornal, a imagem de São Jorge, Ogum, que guardava o congá do terreiro de sua avó.
Ei-lo, abaixo, fotografia do próprio dia, 26 de abril de 2009 - defumador devidamente aceso ao lado.
Breve arremesso-avanço.
Ano que vem faço 55 anos. Meus planos indicavam que eu faria uma festa de arrasar quarteirão mas nem no Brasil estarei - se tudo correr como planejado. Estarei em Londres, bem longe daqui, porque não quero (sou um homem aficcionado com datas, com marcos, com ritos) estar aqui no primeiro aniversário da separação, que se deu, vejam vocês, a poucas horas do meu quinqüagésimo quarto aniversário. O que significa dizer que o jantar que fiz, ano passado, foi uma festa sem muito clima de festa, se é que vocês me entendem. Pretendo estar num pub, sozinho ou não, vá saber, fazendo minha comemoração e enfrentando os vendavais que me atormentam a cada abril que atravesso.
Lembrei-me, mais, de um episódio ocorrido em 1987, quatro anos depois do ano de 1983, onde eu estava pela manhã: eu, com 18 anos, havia acabado de receber minha carteira de motorista. Estava escrito, lá, na validade: 27 de abril de 2009.
Fui tomado por uma certeza súbita, avassaladora e absoluta: eu estava com 18 anos. Esse marco - 40 anos - e esse ano, 2009, não vão chegar nunca.
Chegaram. Chegaram e me encontraram alquebrado. Mas fui, na manhã do dia em que completei 40 anos, um homem grave. Sério. E maduro. Julgava-me, àquela altura, o mais sóbrio dos homens. Quanta tolice.
Fiz 50 em 2019, antes do meu filho completar seu primeiro ano de vida.
E farei 55 em 2024. Farei? Acho graça, confesso, dessas certezas.
Foi pensando nisso, no 27 de abril do ano que vem, que acordei do transe que me sacudiu, como barco à deriva, de 1983 a 2009.
Acordei desse transe.
E entrei em outro.
É sobre ele, esse outro transe, que pretendo falar na semana que vem.
BIS
Foi muito, mas muito, mas muito elogiado o texto abaixo, Os gols mais bonitos, publicado na newsletter de semana passada.
E muito elogiada, também, a canção que o ilustra, Três por acaso. Muita gente não a conhecia, muita gente me escreveu falando da emoção sentida ao ouvi-la.
E como falei rapidamente do Simas no texto acima, e como o cito em Os gols mais bonitos, fica o bis.
OS GOLS MAIS BONITOS
Sugiro que dêem play antes de seguirem lendo.
Desde a primeira vez que ouvi essa canção, novamente como uma bigorna uma certeza abateu-se sobre mim: é das mais bonitas canções sobre a amizade, a verdadeira, troço cada vez mais raro.
Há, inclusive, uma história que envolve essa canção e Luiz Antônio Simas.
Estávamos vivendo a pandemia - um período tão trágico que, tenho isso como certo, ainda não dimensionamos tudo o que enfrentamos.
Morena tratava um câncer, tínhamos muito medo, e eu - lembro-me vivamente disso - estava a caminho da casa de meus pais levando Leonel comigo.
Pus pra tocar Três por acaso no carro e danei de chorar sozinho, Leonel na cadeirinha no banco de trás, e bati o telefone pro Simas.
Disse a ele dos meus medos, agradeci a ele por sua presença na minha vida, ficamos ali alguns minutos falando sobre os gols mais bonitos pela linha de fundo.
Chegando na casa de meus pais, fui fuxicar minha caixa de e-mail a fim de tatear o começo da minha relação de amizade com Simas. E achei mensagam dele de abril de 2009, nos conhecíamos há pouco mais de quatro anos.
Tanta beleza nisso tudo.
Daí fico, agora, pensando nisso: meus amigos, os mais antigos, os mais sólidos, estão todos mortos. Mas a vida me foi, e me é, sim, generosa.
Os amigos e as amigas não me faltam.
Quem me tem faltado sou eu mesmo.
Mas eu vou voltar.
Porque - repetindo - não vai ser agora, franca e sinceramente, que o espetáculo vai parar.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, o texto Carta aberta pra Luiz Antonio Simas e uma convocação, publicado em 27 de setembro de 2013, aqui. Nesse texto, vocês verão, conto também sobre a chegada do Simas ao meu aniversário de 40 anos, a que aludi acima.
“Simão, meu irmão, guardo, como tesouro, as primeiras palavras que você dirigiu a mim, em 18/08/2006, há mais de sete anos, portanto, aqui mesmo, pelo blog, poucos dias antes de nos conhecermos pessoalmente, na livraria Folha Seca, apresentados que fomos pelo Rodrigo Ferrari:
“Eduardo, sou um leitor assíduo do blog, morador do Maracanã, amigo do peito do grande Rodrigo Ferrari (da inestimável livraria Folha Seca) e admirador das suas campanhas cívicas – sim, cívicas – contra as sem-vergonhices do Jota e dos Leblons da vida. Mas sempre estive em silêncio obsequioso. Hoje, porém, vou me manifestar: sensacional! Como eleitor e admirador do velho, aplaudo de pé a cena! Quanto ao Roberto Talma… nunca me enganou! Francamente… abraço.”
É como tesouro, também, meu compadre, que guardo outra de suas declarações dirigidas a mim, essa de primeiro de novembro de 2011, quando eu ainda era todo-dor:
“É uma tranquilidade saber – e digo isso profundamente comovido – que envelheceremos juntos, como irmãos que somos. Mais confortante ainda é saber que um dia, quando um de nós se encaminhar pela noite grande do Orum, o que ficar mais tempo por aqui contará e cantará dessas coisas do amor de amigos – o que permanece. Beijo.”
E lhe escrevo hoje, publicamente, e publicamente faço escancarada declaração de amor, porque fuçando, mais cedo, esses meus escritos, dei de cara com esse A força das palavras do Simas, de 13/11/2006, no qual digo que “é mais-do-empolgado que quero recomendar, expressamente, os dois últimos textos escritos pelo Simas, de quem tenho tremendo e quase que inexplicável orgulho.”.
E eu, hoje, tendo estado no lançamento do seu livro com o Loredano sobre o J. Carlos, tendo estado no lançamento do seu livro com o Beto Mussa sobre sambas de enredo, tendo estado no lançamento do seu livro sobre a Portela, às vésperas do lançamento do seu Pedrinhas miudinhas – ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros, amanhã a partir das 14h justamente na Folha Seca – onde nos reconhecemos em 2006 – estou comovidíssimo, emocionado, orgulhoso.
Fuçando ainda mais minhas coisas, minha imensa memorabilia, encontrei e-mail de 05/06/2013 do Vitor Monteiro de Castro, que segue transcrito:
“Edu, tudo bem? Há tempos não nos falamos, não sei nem se lembra de mim. Certa vez foi à Maré e tomamos uma cerveja lá – e terminamos na Tijuca. Na época eu trabalhava no Observatório de Favelas. Bom, escrevo para pedir um favor: o contato do Luiz Antônio Simas. Seguinte, há dois anos saí do Observatório na perspectiva de abrir uma editora. Daí que a editora está caminhando (www.morula.com.br) e o Simas é um dos autores que a gente gostaria de publicar. Queria marcar um papo com ele para pensarmos em possibilidades. Abração.”
Breve pausa, querido: imagine você se eu não me lembraria do Vitor, que ciceroneou uma visita minha com a Dani à Maré, para conhecer o Observatório de Favelas e seu impressionante trabalho e para lá assistirmos, na rua, a um filme sobre o Chacrinha! Dá pra esquecer?!
Vai daí que eu fui tecendo uma teia, à moda da asa do vento de Luiz Vieira e de João do Vale, e fui ficando cada vez mais comovido com as lembranças, até que decidi vir desagüar aqui, publicamente, para aplacar a ansiedade (seguramente estou mais ansioso que você, você me conhece!) e pra manifestar minha felicidade pelo dia de amanhã.
Arremessei-me a 2006, quando nos conhecemos, atravessei 2007 e cheguei ao primeiro dia do ano de 2008, quando você – sábio, sacerdote, mais-velho – me deu seu ileke, que você tirou do pescoço, na esquina da Pardal Mallet com Afonso Pena, seu ileke de contas vermelhas, pretas e azuis, nós que somos filhos do mesmo pai. Cheguei ao dia de meus 40 anos e me veio sua imagem, vestido de Bangu, chegando pra feijoada que eu ofereci, trazendo nas mãos um imenso embrulho feito de jornal (lembro também da indignação da Candinha com a beleza da embalagem!), com a imagem de São Jorge Guerreiro, Ogum!, que guardava o congá do terreiro de xambá comandado por sua avó – e que hoje guarda minha casa. Lembrei-me de quantas vezes recorri a você, meu velho Simas, para que você me contasse sobre as coisas da vida, sobre os mistérios do invisível, de quantas vezes cantei, sozinho, as tuas canções – “alivia a minha dor enquanto pila o pilão” -, de quantas vezes estivemos juntos no sagrado espaço de um botequim em busca da reinvenção da vida, essa arte e essa lição que você, professor maiúsculo, domina como ninguém. Lembrei-me de tua chegada, sereno, com um Red Label debaixo do braço, na madrugada de 10 de julho de 2011, quando teu abraço foi um dos maiores antídotos que jamais experimentei: e sem que palavra tenha sido dita. Você, um sabido! Do dia em que você, reinventando a liturgia do cargo, nomeou-me padrinho-de-rua do moleque Benjamin, filho do homem que sopra no meu ouvido e que reconheço, muitas vezes, nos seus gestos (seus e dele). Lembro de tudo, Simão, e agradeço por tudo – eu na condição de aprendiz, de privilegiado, de testemunha ocular da genialidade e da potência do seu conhecimento, passado e repassado na contramão da cátedra arrogante que busca segregar, humilhar, diminuir. Você, a antítese do mestre inatingível. Você, o que ensina porque fala a língua do povo, da nossa gente, da nossa terra, do nosso Brasil. Um país mais rico porque tem você como um de seus filhos, de chinelo de dedo e copo de cerveja na mão.
Parabéns antecipado, meu irmão.
Estaremos lá amanhã, eu e a Morena, a fim de abraçá-lo e de festejar, ao seu lado, a luz e o axé que vêm da miudinha.
Amo você.
Axé.”
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
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UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, a playlist que montei, há umas semanas, no Spotify.
Nas últimas edições eu já indiquei a playlist a vocês, que me lêem.
Mas eu a incrementei.
Ei-la; ela está aqui ou, se preferir, ouça já!
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e traz as canções que mais gosto e que têm a cidade do Rio de Janeiro como referência - e ela está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
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