— Não era contigo que eu queria ter estado lá.
Ele pensou que fosse morrer, tamanho o golpe que foi a fala que saiu de sua boca sem pressa - ela disse a frase olhando nos olhos dele, definitivamente sem pressa, deixando evidente que não se tratava de um rompante, de um gesto impensado. Ao contrário: ela parecia estar dando liberdade para as nove palavras que guardava há tempos, presas dentro de si.
Há tempos.
Há quanto tempo?, ele se perguntava.
Planejara a viagem por semanas - e os planos seguiam os passos dos desejos que ela deixava escapar a cada conversa, durante meses.
De quê adiantou?
Não era comigo que ela queria ter estado lá.
Um mês depois da viagem, desavisado (se soubesse, é claro, não teria feito o que fez), postou dez fotografias da viagem em seu perfil no Instagram logo pela manhã, a caminho do trabalho.
À noite, quando ela chegou em casa - depois dele -, e logo depois do mais protocolar dos beijos, aquele encostar de lábios modorrento, ele disse sem tirar os olhos da tevê:
— Viu as fotos que publiquei hoje? Você não disse nada…
Ela, que estava tomando o caminho do quarto, voltou do corredor.
Estacou diante dele, o copo de uísque de todas as noites pousado sobre o braço do sofá.
Ela perguntou, já segurando o copo:
— Posso?
E deu um gole.
Outro gole.
Um terceiro gole - ele olhando fixamente para ela.
— Não era contigo que eu queria ter estado lá.
E foi pelo corredor levando o copo e o dedo de uísque que faltava.
Estavam comemorando quinze anos juntos naquela viagem - cujo propósito era, justamente, a efeméride.
E não era comigo que ela queria ter estado lá.
No dia em que comemorariam o décimo sexto ano juntos, não haveria nada.
Assim como fizera com as nove palavras, ela concedeu-se a liberdade.
Pôs um ponto final, saiu de casa, pôs fim ao casamento.
Na véspera do dia em que comemorariam o décimo sexto ano juntos, ele chegou sozinho ao mesmo hotel, ao mesmo quarto - pedira, no instante da reserva, que checassem, pelo seu nome completo, qual o número do quarto que ocuparam um ano antes.
Passava pouco da meia-noite quando explodiu o céu da boca com um tiro, logo depois de escrever no bilhete que deixou na cabeceira: não era comigo que ela queria ter estado aqui.
DUAS EFEMÉRIDES
Semana passada lhes contei sobre duas efemérides (aqui).
No dia 25, quinta-feira passada, papai completou 80 anos.
Reuniu, em torno de si, amigos e amigas de toda a vida (comigo, na foto abaixo, uma delas, Niza Cheroto - que mora em Petrópolis).
Breve digressão: o fato dela morar em Petrópolis causou, no meu velho pai, o choque geográfico. Ele repetiu a noite inteira - ao menos sempre que passava por mim - a frase que vinha acompanhada do gesto apontando para o alto, como se visse a Região Serrana:
— Ela veio de Petrópolis só para minha festa! De Petrópolis! - isso com os olhos arregalados.
Eis o que quero lhes dizer: fui, a partir do momento em que entrou pela porta de entrada a primeira das convidadas de meu pai - justamente a Niza e sua irmã, Lívia - um menino.
Dudu!, gritou a Niza - a quem eu chamava de tia em priscas eras - assim que me viu.
Somente os seguidos copos de uísque que bebi ao longo da noite foram capazes de dar conta da emoção causada pelos trancos, arrancos e arremessos em direção ao passado que fui enfrentando a cada um, a cada uma que chegava.
Eu vestia um short e uma camisa de listras coloridas enquanto ouvia o alarido do renque de fantasmas que vagavam pela imensa sala do apartamento de meus pais por entre os convidados. Lá estavam o Adilson, minha bisavó e minha avó, ambas Mathilde, meu avô Oizer, pai de meu pai, e minha avó Elisa, sua mãe. Eu escrevi Oizer e quero lhes contar.
A cada convidado que dizia oitenta anos, hein! para meu pai - e foram muitos a se valer da saudação originalíssima - dava-se a mesma cena. Isaac fechava os olhos, unia as mãos em prece e dizia olhando para o alto:
— Tô no lucro, tô no lucro! - e ria comedidamente.
E emendava:
— Meu pai morreu com setenta e sete! - mastigava cada sílaba do numeral.
Voltemos à cena da festa.
Percebam: eu não encontrava a Niza há pelo menos 30 anos (foi o cálculo que fizemos por alto, embora eu acredite que seja há mais tempo).
A Niza era, portanto, até o momento em que entrou naquela sala, 30, 40 anos mais moça.
Vê-la de cabeça branca (e ela, a mim, grisalho) foi o primeiro choque visual (sei que foi recíproco).
Quando ela me chamou de Dudu (e mais de uma vez) senti a inadeqüação do apelido (somente minha avó Mathilde me chamava de Dudu). Eu, sem minha avó há pouco mais de 13 anos, sendo chamado pelo meu apelido de infância aos 54 anos - e tome de arremesso para mais longe.
Ela senta-se ao meu lado e o garçom - a festa foi uma pompa:
— A senhora quer água com ou sem gás?
A Niza esporrenta da minha memória estava ali:
— Água?! Eu quero é beber, meu filho! O que você tem pra me oferecer? - e disparou a gargalhada trilha-sonora de muitos finais de semana da minha mais tenra idade, quando íamos todos para sua casa em Petrópolis, onde ela mora até hoje.
Pequena pausa: meu pai é um homem de hábitos simples e nenhum refinamento na hora de comer e de beber. Eu tenho certeza de que ele esperava um bufê com coxinha, rissole, empada, pastel, salaminho, queijo e outros bichos servidos nas bandejas de prata do bufê contratado por mamãe.
Quando ele viu o garçom estendendo em sua direção uma placa de granito preta contendo doze uvas verdes recheadas com queijo gorgonzola e um fragmento de noz por cima, como enfeite, ele explodiu de rir, ficou vermelho, olhou pra mamãe e disse pegando seis uvas ao mesmo tempo:
— Só vai ter isso?
E foi assim.
Leonel no quarto - 5 anos de idade.
Meu pai ziguezagueando entre os convidados com 80.
Eu, 54 anos, admirado de ver e ouvir as pessoas elogiando a Morena, às vésperas de seu aniversário (é hoje, sábado, embora eu esteja escrevendo na sexta, ontem, diretamente de Salvador).
Um sem-fim de fantasmas boiando sobre todos nós.
É, como diz um amigo meu que mora em Londres, a vida acontecendo.
A outra efeméride dar-se-á na segunda-feira, 29 de janeiro.
Completo, como já lhes disse na semana passada, 20.000 dias de vida.
E eu sentirei, sei que sentirei - eu me conheço - o peso de 20.000 toneladas de lembranças e memórias sobre mim.
Estarei sozinho.
Mas estarei em Salvador.
Aqui, sinto-me acolhido.
Vai ser bom.
Ah, sim.
E há uma terceira efeméride.
Justamente o aniversário da Morena.
Eu digo sempre, e repito, que o dia de aniversário dos meus, das pessoas a quem eu amo, é feriado no meu coração.
27 de janeiro é, portanto, feriado nacional no meu incorrigível, combalido e esperançoso coração.
Não custa repetir a ladainha: minha primeira mulher está viva mas morreu; a segunda morreu mas está viva; e a terceira, justo ela, a aniversariante de hoje, seguirá viva para sempre.
Valho-me desse meu espaço, dessa newsletter, desse balcão virtual que criei em 24 de março de 2004 (aqui), para dizer a todos que me lêem, meus poucos mas fiéis leitores (que já não são poucos e são bastante fiéis), que é um troço bonito demais olhar pra trás e ver os acertos que vivemos.
Flávia é um desses acertos definitivos: é, e será para sempre, minha amiga e companheira no infinito de nós dois.
É bom estar em Salvador hoje, essa terra sagrada para mim.
Daqui rezarei a mais bonita das rezas em sua intenção, a fim de que não faltem a ela a saúde, o amor abundante que ela tão intensamente fez distribuir no meu caminho e no caminho de quem tem a sorte de tê-la por perto, a alegria, a prosperidade, todo o axé possível.
Ela realizou os meus sonhos mais bonitos.
E isso ninguém toma de mim.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Estou com aguda saudade de Marianna Araujo - a última vez que nos vimos foi no dia primeiro de janeiro desse ano, na tradicional Feijoada do Dia Primeiro, que acontece na mansão de seus pais, no Flamengo. Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, em homenagem a ela - que adora o texto dessa receita! - republico Zampone, a receita, texto publicado no dia 24 de novembro de 2009, aqui.
“O programa já virou, e há muito, tradição. Almoço no Solar dos Zampronha, na Tijuca, mais precisamente na região da Usina, é fabuloso na certa. Capitaneado por minha queridíssima Sônia e por seus rebentos, meus igualmente queridos Manguaço e Manguaça – ou André e Marcela, como a mãe, compreensivelmente, prefere – o Solar é refúgio de momentos inesquecíveis, como foi o almoço deste último sábado, 21 de novembro.
O troço deu-se assim: estava em São Paulo, na semana anterior, quando meu irmão Fernando Szegeri, o homem da barba amazônica, resolveu me levar a um açougue que ele qualificara como o melhor de seu bairro. E o açougue é, de fato, fantástico. Situado na rua Guaricanga, na Lapa, o açougue oferece, além de um quantidade e uma variedade inacreditáveis de carnes, chope para seus clientes.
Vai daí que eu fuçava as carnes com um copo de chope na mão quando dei de cara com um embutido da Ceratti que eu nunca havia visto aqui no Rio de Janeiro, zampone. Disse eu, na hora:
– Vou levar pra cozinhar com a Sônia!
E comprei.
O zampone é, pra quem não sabe, uma especialidade do norte da Itália e seu nome vem da palavra zampa, pé em italiano. Trata-se do pé do porco recheado com carnes de porco frescas e especiarias, com o invólucro feito do couro do pé de porco. Tentador.
O furdunço começou, como também tem se tornado praxe, na sexta-feira à noite, que o zampone requer tempo, paciência e zelo no preparo.
O cenário na cozinha da Sônia era o mesmo de sempre: queijos na bancada, frios de todo tipo, a imprescindível garrafa de Red Label para me acompanhar durante o preparo, o uísque com guaraná da anfitriã, as cervejas da Marcela e começamos a brincadeira às nove da noite em ponto.
Vejam que belezura o zampone fora da embalagem à espera da agulha que irá prepará-lo para a panela!
Você vai precisar de uma agulha de responsabilidade, grossa, taluda, a fim de perfurar o couro do pé do porco. Será necessário fazer muitos furos em toda a extensão do zampone antes de colocá-lo na panela. Dividi a tarefa com a Sônia, entre goles fundamentais numa noite de calor.
Feitos os furos – muitos, não é demais repetir -, é hora de pôr o zampone dentro de uma panela razoavelmente grande para fazer o bichinho inchar, hidratado, e perder um pouco da gordura, que decorará, de maneira comovente, a água que irá guardá-lo. É importante observar, desde já, que o cozimento se dará nessa mesma água, exatamente 12 horas depois do mergulho n´água (e essas precisões eu respeito com aguda pontualidade).
Às nove e meia da manhã do dia seguinte lá estávamos nós, de novo, diante do fogão.
Hora de retirar o zampone da panela – reservando a água! – e de embrulhá-lo, com cuidado para não partir, dentro de um guardanapo de pano, valendo-se de um barbante grosso ou algo do gênero. A Sônia, moderníssima, usou um elástico.
Entre o fogo – médio – e a panela, uma chapa de ferro.
Quando começar a ferver, é batata!
O zampone deverá ficar fervendo por rigorosas 3 horas, tempo necessário para prepararmos os acompanhamentos (purê de batatas e lentilha).
A Sônia, generosíssima, começou a estender o cardápio. E decidiu, no meio da manhã, sair pra comprar pernil:
– Vai que alguém não come zampone, Edu!
E tome de temperar o pernil! Sal, limão, muito alho, cebola, pimenta-do-reino, salsinha, e o aroma descia a Conde de Bonfim fazendo com que ouvíssemos “ohs” e “ahs” vindos da rua.
Enquanto isso eu descascava as batatas para o purê e colocava a lentilha de molho na água com muitas folhas de louro e dentes de alho.
Preparados o purê e a lentilha (creio serem dispensáveis as receitas, bastando dizer que no purê não faltou noz-moscada ralada na hora e que a lentilha ficou al dente, como vocês poderão ver), chegou o momento de montar o prato.
Retirado o guardanapo de pano com intenso cuidado, cortamos o zampone em fatias de não mais do que 2cm e cercamos as rodelas (ficou bonito pra burro!) com o purê de batata de um lado e com a lentilha do outro.
O pernil, que assou na panela mesmo (ficou também monumental!), serviu para aqueles (poucos) que não tiveram coragem de encarar o zampone, acompanhado de uma farofa que só a Sônia faz (é, indubitavelmente, a melhor farofa que já comi).
Um vinho tinto italiano da região da Toscana fez um bonito.
E a tarde foi, franca e sinceramente, dessas de não se esquecer.
Até.”
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
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Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, uma das playlists que montei no Spotify - Rio de Janeiro - que já conta com 122 seguidores.
Ela será permanentemente incrementada (e eu aceito sugestões que podem ser enviadas por e-mail!).
Ela está aqui ou, se preferir, ouça já! - abaixo.
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e, repito, está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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