Começo diferente nesse sábado, 25 de novembro de 2023.
Quero transcrever, na íntegra, matéria de Bruna Meneguetti para a revista Quatro cinco um, a revista dos livros (que pode ser lida aqui, caso você prefira). Para, mais à frente, falar - oh, que surpresa! - de mim. Porque quem me lê sabe que eu sou só confissão quando escrevo. Roubei o título da matéria. Vamos a ela (a transcrição em itálico e o que está em itálico, na matéria, está aqui em negrito).
Escrever é aprender a morrer
“Em entrevista, o psicanalista Christian Dunker ajuda a entender por que autores contemporâneos elaboram o luto por meio da escrita
A autora espanhola Rosa Montero diz, em A ridícula ideia de nunca mais te ver, que a primeira coisa que a dor arranca é a palavra. Já a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, em Notas sobre o luto, afirma que esse sentimento derrota as palavras. Mas, se a dor e o luto arrancam e derrotam a palavra, por que tantos autores recorreram a ela para falar sobre a morte? Segundo o psicanalista Christian Dunker, isso ocorre porque a escrita pode fazer parte do processo de lidar com a morte.
Dunker, inclusive, escreveu seu recém-lançado Lutos finitos e infinitos, sob o impacto da morte de sua mãe. Em entrevista à Quatro Cinco Um, ele explica as seis etapas do luto, tomando como base Freud e Lacan para trazer seus próprios adendos e reflexões sobre o tema. Um deles é que não há regra geral. De acordo com o ele, a morte é algo “impossível de ser vivido”, pois é vivenciada através do outro, sendo um acontecimento que costuma se refletir no incompreensível e no indizível, como mostra uma safra de lançamentos que usam a escrita para elaborar o luto, entre os quais Holograma, de Mariana Godoy; Parte de mim, de Daniele Tavares; e As pequenas chances, de Natalia Timerman.
Ausência
Dunker diz que no primeiro dos seis momentos do luto a perda é sentida como ausência, e é comum agir como se a pessoa morta ainda estivesse por perto e fosse retornar a qualquer instante. É o que vemos em Holograma, livro de Mariana Godoy lançado pela Círculo de Poemas, em que o eu-lírico diz:
deve estar querendo alguma coisa
que só eu sei onde está […]
grito já vou
e lembro que o enterro dele
foi ontem.
Godoy elabora o luto por seu pai, morto há onze anos, a partir da poesia. A poeta Daniele Tavares faz algo parecido em Parte de mim (Quelônio):
Não gritei, não chorei, não tive nenhuma reação.
Eu só queria ver você. […]/
Fazemos cerimônia para a morte, como se ela pudesse
nos fazer mais mal do que já fez.
O livro é uma espécie de conversa com a filha Manoela, que morreu há oito anos, e entrelaça relatos sobre a dor da perda, lembranças boas e ruins e trechos do diário da filha.
Perda de si
Para Dunker, o segundo estágio do luto é o da devastação sobre o eu, em que a pessoa não sabe mais quem é, sente-se outra, como se uma parte de si tivesse morrido. Em As pequenas chances (Todavia), Natalia Timerman elabora a morte do pai e questiona:
E o que é o luto, senão essa repetição necessária, esse repisar, e o que é a vida, senão a mesma coisa. Esse infinito perder, perder-se de si, buscar-se.
Essa perda de si é associada a uma loucura provisória, em que a morte é sentida como um abandono, é um tema antigo e caro à literatura. Até Hamlet de Shakespeare sofreu delírios depois da morte do pai.
Angústia
Já a terceira fase, ainda segundo Dunker, seria a da angústia. Nela, a morte do outro não é mais sentida como uma ofensa ao amor de quem ficou. “Muitos literatos exploraram essa dimensão às vezes melancólica do luto, o sentimento de que ele se torna infinito porque é incurável, a gente não vai se curar da morte”, explica o autor. Esse estágio aparece na literatura a partir do retorno dos mortos (como em Frankenstein ou nas figuras de zumbis e fantasmas) e naqueles que perdem a potência da morte (como os vampiros). Associações como essas, entre as narrativas escritas e a psicanálise, são comuns ao longo de Lutos finitos e infinitos.
Encadeamento literário
Para Dunker, a literatura seria “uma espécie de condição para o aparecimento da psicanálise”. Não à toa, na quarta e quinta etapas do luto, essa relação se estreita ainda mais. O quarto momento “é quando o seu luto se encadeia com outros que você já viveu e com o de outras pessoas. Você parou de ser agredido, não está mais em angústia, mas está às voltas com viver com essa notícia”, diz.
Segundo Dunker, a escrita pode fazer parte do processo de lidar com a morte
Podemos pensar a literatura como um instrumento para o encadeamento dos lutos — uma forma de conectar o luto de uma pessoa aos das demais. “Quando, depois de alguns meses, encontro um livro da Adélia Prado que diz ‘Quando meu pai morreu, nunca mais me consolei’, acho que ali tenho a noção de que meu pai morreu”, diz Godoy em conversa com a Quatro Cinco Um. “A literatura mostra que tem algo não encaixado, consegue traduzir uma coisa que é tão difícil de se dizer”.
O luto solitário
Em Lutos finitos e infinitos, Dunker cita uma pesquisa que sugere que o luto entre os brasileiros é vivido cada vez de forma mais envergonhada e individualizada, movimento comum em outros países. Antigamente a morte era pública, o luto era “parte visível dos nossos contratos sociais”. Havia ritos fúnebres que mobilizavam o espaço coletivo, funerais dentro das casas e narrativas orais. Essas ações mudaram com a modernidade, quando a morte passa a se concentrar em hospitais, os enterros se tornam privados e as narrativas religiosas ou orais sobre a morte sofrem um declínio.
“Hoje, a gente fala pouco e temos uma certa vergonha do processo de luto. Ele é cada vez mais um assunto profundamente individual, solitário e próprio”, diz Dunker. Uma hipótese que ele traz no livro é a de que as pessoas procuraram novas formas sociais de falar sobre o luto, que atendessem a essa “condição de privatização” dos tempos modernos. “A leitura é uma experiência de intimidade, então, na medida em que há um declínio da oralidade ligada à morte, começa a haver uma tematização maior do luto em estrutura de escrita”, diz Dunker.
‘A literatura brasileira contemporânea é sobre isso: lutos abertos e não reconhecidos’, diz Dunker
Isso explicaria a existência contemporânea de tantas obras envoltas nessa temática. Ainda mais durante ou após a pandemia, período em que não havia a possibilidade de cumprir os rituais fúnebres usuais e o luto se tornou ainda mais solitário. Pessoas que sentiram a necessidade de falar sobre suas experiências recorreram à escrita. Em entrevista à Quatro Cinco Um, Daniele Tavares diz ter vivenciado esse isolamento: “Eu me senti muito sozinha no meu luto, porque a dor é muito solitária. E tem uma pressão da sociedade, que diz: ‘Nossa, você ainda está chorando?’. Esse livro foi uma forma que encontrei de sobreviver”.
Ao longo de seu livro Dunker também analisa como o processo de escrita é contemporâneo ao trabalho de luto. “Não quer dizer que quando você termina o luto, você termina o livro. Mas é uma aproximação possível. Muitos dizem que depois que fizeram o livro puderam se separar e se integrar a essa pessoa que perderam.”
Reparação estética
O quinto e penúltimo momento tem a ver com isso — é o da reparação estética, “é aquele período em que você se pega escrevendo, esculpindo, pintando ou criando sonhos. Em uma outra disposição de humor ou apreciando e lendo uma obra”, diz Dunker. Godoy se integrou ao pai por meio do trabalho com a memória e a invenção. “Ficcionalizar algumas coisas é uma forma de mudar o que aconteceu, de deixar a cena mais bonita. É quase como dar uma nova chance ao que ocorreu”, diz. Tavares faz algo parecido, encontrando na escrita uma forma de registrar o que foi bom: “Consigo chegar na imagem da minha filha na praia, correndo feliz. Cheguei à conclusão de que seria um livro de celebração à vida dela”.
Para Dunker, a conclusão do luto não é o apagamento da memória, mas a possibilidade de ela seguir com você “sem te espicaçar por dentro”. “Ela passa a fazer parte do seu patrimônio experiencial, simbólico, e por isso todo luto é finito e infinito”, diz o psicanalista. O luto concluído pode tratar da morte como algo belo — o que as artes fazem bem.
‘Meu luto não vai servir ao outro se não for esteticamente pensado’, diz a escritora Mariana Godoy
O investimento de editoras nessas obras indica que há demanda por elas, o que Dunker vê como natural uma vez que a morte está em todos os âmbitos da vida: “É a perda tanto de pessoas queridas quanto de amores que acabaram ou que nunca aconteceram, também é o trabalho que se tem para lidar com mudanças de fases da vida, ou ainda a elaboração de perdas de trabalho, saúde e, diz o Freud, de uma nação”.
A partir da leitura, o luto se torna coletivo, e pode-se refletir sobre mortes anteriores ou vindouras. O compromisso de transmissão — algo que tanto a psicanálise como a literatura trazem, segundo Dunker — impulsiona a escrita. Mas há também um compromisso com a arte — Tavares falou que só faria sentido publicar o livro se houvesse “um valor literário”; Godoy disse que não queria que sua narrativa parecesse terapia, mas literatura: “É um pouco sobre tirar de mim uma coisa que vai servir ao outro. Meu luto não vai servir ao outro se não for esteticamente pensado”.
Compromisso de transmissão
O compromisso de transmissão está especialmente conectado à sexta e última etapa do luto, que o Dunker descreve como o momento da libertação. “Quando você se apropria desse desejo [deixado pela pessoa que morreu], ocorrem efeitos de alegria, de liberdade, de reconciliação, de refazimento do pacto entre os que se foram e os que estão aqui, e uma implicação com os que virão”, explica. Esse pacto, ele chama de “trato dos viventes” — um acordo entre os que se foram, os que estão vivos e os que ainda não nasceram. Em seu livro, Dunker escreve:
Isso significa entender o luto como um processo de transição pelo qual os vivos reinstalam e dão lugar simbólico aos que se foram, recriando, continuamente, a cultura. Os viventes colocam-se também como intermediários entre os que nasceram e morreram e os que ainda não nasceram, perspectivando futuros possíveis.
Segundo o psicanalista, o luto que “não vai para frente” gera formas patológicas de viver: “Não é custo grátis. O luto tem uma força indutiva de agressividade, de violência, de sofrimento, de sintomas sociais e individuais”, explica. Para o autor, isso é o que ocorreu historicamente no Brasil — podemos olhar para o luto “como afeto fundador” e enxergar o país a partir de uma população de enlutados, devido à violência presente em nossa história (como a escravidão, o descaso com os povos indígenas, a ditadura militar, a invasão em comunidades etc.).
“Eu entendo que a literatura brasileira contemporânea é basicamente sobre isso: lutos abertos, não reconhecidos, e que reaparecem em patologias”, diz Dunker. A literatura ajuda a encarar lutos, para então concluí-los. Se escrever é aprender a morrer, como dizia Montaigne, então que a literatura continue nos ensinando.“
MEUS MUITOS LUTOS
Logo que Dani morreu, em julho de 2011, Aldir fez chegar às minhas mãos Diário de luto, de Roland Barthes.
Do dia 26 de outubro de 1977, dia seguinte ao da morte de sua mãe, até 15 de setembro de 1979, Barthes manteve um diário de luto. Trezentas e trinta fichas, e quase todas elas devidamente datadas, estão reunidas neste livro que me impactou brutalmente.
Eu lia as fichas, as impressões, eu lia o que escrevera Roland Barthes sobre a morte de sua mãe e dizia, de mim para mim, atônito, que aquilo que eu lia havia sido escrito por mim. Éramos irmãos, eu e ele, da mesma dor. Não havia diferença entre a dor da perda de sua mãe e a dor da perda da minha companheira de 12 anos. A finitude, o desaparecimento, a constatação brutal de que não haverá mais corpo pra ser tocado, de que não haverá mais o ouvir a voz, o sentir o cheiro, eis o pacote que carregamos todos, os enlutados.
E quantos lutos, todos nós, enfrentamos no curso da vida?
Perdi a conta dos meus.
Acho, no final da contas, que vivemos - muito por conta, claro, da inevitabilidade da morte - permanentemente na travessia do luto. Por vezes, o maremoto. Por vezes, a calmaria. Mas sempre na travessia do luto.
O luto por conta da morte lato sensu, diga-se.
Meus fantasmas não me permitem viver sem esse desafio, o da travessia a que me refiro.
Minha bisavó morreu quando eu tinha 12 anos e até hoje me dói. Dani morreu há 12 anos, e até hoje me dói. Meu terceiro casamento morreu há pouco mais de 6 meses e ainda me dói. Há ainda os amores que não vivi plenamente - me doem. Eu-menino luto pra não morrer - e lutar dói. Meus amigos mais velhos, que morreram quase todos, me doem.
Há, ainda, o luto mais brando - mas ainda assim, luto.
Seu Mário, seu Camilo, dona Neves, seu Pereira, dona Olga, dona Teresinha, os moradores e as moradoras da vila da São Francisco Xavier 84 estão todos mortos. Vivíssimos dentro de mim.
Enquanto escrevo, à mesa na sala de jantar, lembro-me dela, da mesa.
Falei sobre essa mesa aqui.
O que é essa mesa se não um compêndio das minhas saudades e dos meus lutos?
Quantos almoços e quantos jantares ainda virão, sem que nenhum deles vá ser como os que já vivi?
Quantos brindes fizemos à mesa?
Quantas vezes choramos à mesa?
Quantas das marcas que há na mesa - são marcas, não são manchas - há também em mim?
Como tenho dito com regular freqüência, não está sendo fácil.
Nunca foi fácil.
E não será fácil, eu sei.
Mas quero repetir: não vai ser agora, franca e sinceramente, que o espetáculo vai parar.
COZINHAR
Quem me lê sabe da devoção que tenho pela sacrossanta arte de cozinhar.
Gosto, e a ela me dedico com as limitações naturais de quem não faz disso sacerdócio, da arte.
Gosto especialmente dos pratos que dão trabalho, que extenuam quem cozinha e que, quase que por conseqüência direta, levam os afortunados escolhidos para o entorno da mesa ao êxtase.
É assim com o Barreado de Morretes, com a Feijoada da Apuração, com os pratos-eventos que vira-e-mexe dou de fazer.
Dia desses, sozinho em casa e tendo o final de semana livre pela frente, decidi que faria (pela primeira vez) um Bife Wellington.
Guiei-me por esse vídeo, espetacular - aqui.
Fiquei feliz, muito feliz com o resultado.
Com mais três pessoas amadas à mesa, no final de um domingo, pude fazer uma das coisas que mais prazer me dá na vida.
Dois ou três pequenos erros não deixaram eu dizer de mim para mim que ficou perfeito.
Farei de novo, em brevíssimo.
E vocês saberão, é claro.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, o texto Bacon, seu gostoso, publicado em 31 de outubro de 2015, aqui. Esse texto, encomendado pelo Estadão, foi lembrado essa semana que passou durante jantar com minha diletíssima amiga Marianna Araujo. Dizia, a Mari, sempre hiperbólica quando fala de mim, o que muito me envaidece, e eu nem lembro sobre o que falávamos quando ela sacou o texto do bolso imaginário da camisa, que eu não escrevi sobre o bacon, eu escrevi sobre a vida. Eis o texto, na íntegra, publicado no Caderno Aliás.
“Estou com 46 anos e já vi de tudo em matéria de orientação alimentar. Já vi o ovo, e a gema (a vilã das vilãs), serem dramaticamente condenados por fazerem profundo mal às coronárias e aos índices de colesterol (cujos limites são alterados com assiduidade em prol da saúde perfeita do homem-máquina). Vi também, alguns anos depois, o ovo (e a gema!) serem redimidos e alçados ao patamar de alimentos primordiais – isso foi em 2007, quando Luis Fernando Verissimo, em pungente texto, comemorou a absolvição do ovo cogitando pleitear indenização a ser paga pelos responsáveis pelo degredo da gema. Cito Verissimo: “Não existe nada no sexo comparável a uma gema deixada intacta em cima do arroz depois que a clara foi comida, esperando o momento de prazer supremo quando o garfo romperá a fina membrana que a separa do êxtase e ela se desmanchará, sim, se desmanchará, e o líquido quente e viscoso escorrerá e se espalhará pelo arroz como as gazelas douradas entre os lírios de Gileade nos cantares de Salomão, sim, e você levará o arroz à boca e o saboreará até o último grão molhado, sim, e depois ainda limpará o prato com pão”.
Já vi o tomate, coitado, ser acusado de ser o responsável pelo aumento da próstata e, tempos depois, recomendado pelos médicos como importante alimento no combate e na prevenção de um sem-fim de doenças (inclusive o câncer de próstata). E a laranja? A grande vilã do aparelho digestivo, causadora de úlceras, pouco tempo depois festejada como indispensável para o bom funcionamento da flora intestinal por conta das fibras contidas nos gomos da dita cuja. Os exemplos são muitos, a paranoia é a mesma.
Os vilões do momento, segundo reportagens que trouxeram à tona mais uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), são o bacon, os embutidos, as carnes processadas e a lingüiça (assim como não abro mão do bacon, não abro mão do trema). Os tira-gostos, de primeiríssima, foram – vejam vocês se não há nisso algum exagero – comparados ao tabaco, durante muitos anos símbolo de charme e agora comprovadamente maléfico, mortal, incontestavelmente o responsável por milhões de mortes, ano a ano, em todo o planeta.
As matérias que trataram do assunto, abordado cientificamente no tal alerta da OMS, são ainda mais paranoicas do que paranoicas me parecem – não sou médico, bebo e como sem culpa há mais de 16 mil dias – as tais pesquisas. O bacon, tomemos o bacon como exemplo, não faz parte da dieta do brasileiro como da dieta dos americanos, que comem bacon no café da manhã, no almoço, no lanche da tarde, no jantar. As carnes processadas entraram também na lista. Os embutidos idem, tendo o presunto no carro abre-alas do alerta da OMS. E a lingüiça (escrevo lingüiça e salivo imaginando uma porção acebolada de lingüiça artesanal mineira) também dançou. Mas miudinho, eis que não foi apontada como a grande vilã do pacote de venenos.
Volto ao bacon (e aos embutidos): por que tanto estardalhaço na imprensa brasileira se não somos contumazes consumidores nem do bacon nem das salsichas? A mim, e eu me considero um brasileiro médio no que diz respeito à alimentação, a pesquisa não assusta. Seguirei usando o bacon (com ovos de gema mole, que continua condenada por conta da salmonela) muito esporadicamente nas manhãs de alguns finais de semana. Não me furtarei de pedir uma porção de torresmo nos botequins mais vagabundos que freqüento porque vai muito bem, o torresmo, com cerveja e com cachaça. Não deixarei de comer carne (processada ou não) porque não é só carne o que como. Não vou negar um cachorro-quente de vez em quando porque não acredito na dicotomia que emerge de um alerta como esse.
Afinal de contas, reitero, há 46 anos como de tudo e aprendi, ao longo do tempo, que é o equilíbrio que deve reger a dieta alimentar – muito embora eu perca o equilíbrio com alguma regularidade.
Aprendi, mais, que as diferentes dietas que existem no mundo não podem seguir um único alerta, ainda que feito pela respeitadíssima OMS. Temos, nós brasileiros, mais com o que nos preocupar.
Afinal de contas, convenhamos, como segurar esse rojão que é, pra ficarmos no que mais mal tem feito à saúde (física e emocional) da população, um Congresso Nacional retrógrado, machista, homofóbico e fundamentalista presidido por um sujeito feito salsicha como Eduardo Cunha? Como segurar o rojão diante da informação de que o Ministério Público de São Paulo age de forma implacável para impedir o fechamento da Avenida Paulista aos domingos – louvável e saudável (saudável!) iniciativa do prefeito Fernando Haddad em prol das bicicletas – a fim de saciar a sanha dos motoristas e de seus automóveis que envenenam o ar da cidade de São Paulo com rolos de fumaça de monóxido de carbono que fazem mais mal à saúde, quero crer, do que a fumacinha inofensiva que defuma delícias como o bacon?
Ora, a OMS e os fóbicos de sempre, hipocondríacos segurando o estandarte, que me perdoem.
Salve a lingüiça (fresca ou defumada, isso não importa), o paio, o boi zebu, a rabada com angu, o lombo de porco com tutu, salve! Salve a couve mineira refogada com cebola e alho, pedacinhos de bacon fritos no refogado da couve, o caldo de feijão com costela defumada e a cachaça, a sagrada cachaça como abrideira abrindo os caminhos (é de propósito a repetição) para o exército de garrafas de casco escuro de cerveja (e cerveja de milho, a mais nova rejeitada do exército de chatos que, de uma hora pra outra, passou a desprezar a cerveja brasileira, que há gerações embriaga e embala o sonho dos biriteiros, batendo no peito pra dizer eu só bebo as lupuladas ou as mais maltadas, cáspite!).
Muito bem diz, e com isso ele me redime mesmo sem saber, um de meus guias espirituais, Rodrigo Gava, amigo-irmão querido, egresso do Paraná e hoje vivendo em Copacabana, tantas vezes debruçado ao meu lado nos balcões e diante das estufas das biroscas sem nenhum glamour que nos enfeitiçam: “Muito mais do que a paranoia (e mais do que bacon e companhia), é a alienação histórica e convenientemente embutida no cotidiano dos nossos olhos e ouvidos que faz mal e, em metástase, desestrutura toda a sociedade, tornando-a uma manada a caminho do sacrifício”.
É o que evito desde que nasci, quando ainda não sabia que agia assim. Hoje, é uma de minhas bandeiras: não fazer parte dessa manada a caminho (com saúde impoluta) do sacrifício, da morte, do desaparecimento súbito e para sempre. Afinal, qual a graça de envelhecer (e de morrer) com a saúde que esses alertas da OMS pregam? Porque eles não almejam, exatamente, a saúde, eles almejam é processar (olha o processamento aí!) a humanidade, transformá-la numa massa amorfa, marchando (como se numa manada) com total assepsia em direção à inevitável morte, que sempre há de vir.
E eu – eis aí a beleza do livre arbítrio – quero mais é envelhecer com a saúde que hoje eu tenho, ao lado da mulher amada, erguendo permanentemente o copo de cerveja (de milho!) cheio de espessa espuma, salgando a boca com as delícias que eles rotulam como veneno que envenena infinitamente menos do que os venenos que eles soltam, como pílulas de sabedoria que a mim não convencem.
Quero, no meu enterro, que há de ser um gurufim de respeito, que meus amigos encham o ambiente soturno da capelinha (apud Nelson Rodrigues) com o alarido dos copos americanos cheios de cerveja (de milho!) batendo uns nos outros, com um churrasquinho improvisado defumando minha alma que – os deuses assim permitam! – há de estar pairando sobre meu corpo inerte mas cheio da vida que terei vivido sem culpa, sem paranóia, como testemunharão cada um dos presentes ao furdunço. E há de haver velas acesas, fitas amarelas, pouco choro (salvo algum, do Pixinguinha, que algum amigo meu há de providenciar), muito samba, e o nome dela gravado, minha Morena, na coroa de flores que recebo em vida, diariamente, já que não me permito ser manipulado por essa pasteurização absurda que nada mais é do que a antivida, o decesso, a defunção, o triste finamento, passaporte fúnebre para o esquecimento. O esquecimento, meus caros, é a morte após a morte. Aquele que não é lembrado depois da partida nada mais é do que um sujeito que viveu morto seguindo a cartilha globalizada do corpo de laboratório sem alma e sem coração.
E hei de ser recebido de calças curtas e camisa listrada, no Orum, pelos tantos deuses que louvei em vida, por meus antepassados, por minha bisavó fazendo ventar com seu leque (ninguém mais usa leques…) numa das mãos e com seu cálice de licor de jenipapo na outra, por meu avô com sua dose generosa de uísque com muito gelo de todos os dias, por meus tios Eugênio e Luiz Carlos no comando da churrasqueira crepitando com o gotejar da suculenta gordura sobre o carvão em brasa, por minha tia Idinha servindo as rabanadas feitas em todos os Natais da minha infância, com muito ovo, açúcar e canela, o Cristo em pessoa dividindo e multiplicando o pão e o vinho, minha avó fumando de novo sem culpa seu cigarrinho e festa, muita festa, muito batuque, muitas lágrimas e muita emoção – que é de emoção que a vida é feita.
A mesma emoção, estou terminando, que esse movimento asséptico nos pretende surrupiar a cada recomendação emitida com alarde pelos órgãos oficiais que cuidam da saúde (!) da população e a cada propagação dessas recomendações por parte da imprensa do mundo inteiro, devidamente alardeada, numa tentativa, que há de ser em vão, de nos roubar nossa precípua condição de humanos, feitos à imagem e semelhança de Deus, imperfeitos e felizes à mesa farta da Santa Ceia de todos os dias. Tô fora, meus amigos. Comigo não cola, comigo não rola, meu negócio é – sempre foi – bola ou búlica.”
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
ASSINATURAS DA NEWSLETTER
De uns meses pra cá, como venho dizendo, um troço me chamou à atenção.
Chegaram assinantes novos que optaram pela assinatura paga.
A partir de agora somente os assinantes pagos estão habilitados a comentar os textos publicados.
Você que tá chegando agora, considere essa possibilidade.
A casa agradece.
UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, a playlist que montei, há umas semanas, no Spotify.
Nas últimas edições eu já indiquei a playlist a vocês, que me lêem.
Mas eu a incrementei.
Ei-la; ela está aqui ou, se preferir, ouça já!
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e traz as canções que mais gosto e que têm a cidade do Rio de Janeiro como referência - e ela está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
Dúvidas, sugestões, críticas? É só responder esse e-mail ou escrever para edugoldenberg@gmail.com
📩 Se você gostou do que viu aqui e ainda não assina a newsletter, inscreva-se no botão abaixo e receba por e-mail, uma vez por semana, sempre aos sábados, o Buteco do Edu. E se você achar que algum amigo ou alguma amiga pode se interessar pelo papo de botequim, encaminhe esse e-mail, essa newsletter, faça correr mundo esse balcão virtual.