ESSE ANO NÃO FOI IGUAL ÀQUELE QUE PASSOU
ou entre mortos e feridos, sobrevivi - até segunda ordem
Eu sabia que não seria fácil.
Esse ano não vai ser igual àquele que passou…, eu cantava desde o final de abril do ano passado.
Flagrei-me cantando Nelson Cavaquinho de mim para mim muitas vezes.
“Finjo-me alegre pro meu pranto ninguém ver
Feliz daquele que sabe sofrer…”
E se tem uma coisa que eu sei fazer, meus poucos mas fiéis leitores, é sofrer.
Já muitas vezes lhes falei sobre isso.
Porque se é pra sofrer, que seja bonito.
Porque amor só é bom se doer, nos disse o poeta.
Então eu arrumo a cama para que a dor não queira ir embora. Afofo o colchão, os lençóis, ajeito os travesseiros, ponho a dor no meu colo e com ela divido a experiência e a vivência de sabê-la inteira e intensamente presente. Só assim, é como penso, sem disfarçar o incômodo de sua presença, é que sou capaz de dar o passo seguinte, e era necessário dar o passo seguinte - que eu ainda não sei se dei.
Quero dar? Não sei.
Mas você não vai mesmo ao Bola Preta?, muita gente me perguntou.
Não, eu não vou - respondi a um por um.
Em 2011, quando ela morreu - a que a despeito de ter morrido, está vivíssima - em julho, eu julguei nunca mais ter coragem de ir ao desfile da apoteose das apoteoses, que vivemos juntos de 2000 até 2011, ano em que fui sozinho atendendo a pedido dela.
Meu amor, e agora?, eu me perguntava e perguntava a ela, que boiava sobre mim, o tempo todo.
Mas a vida tem suas surpresas e, em 2012, no primeiro Carnaval sem ela, lá estava eu de mãos dadas com as mãos que me acompanharam no Bola Preta até o Carnaval de 2023 - um Carnaval que anunciou, por tudo, minha despedida do Cordão.
Eu não daria de novo a mesma sorte - e de fato não dei.
Meu amor, e agora?, dessa vez ficou sem qualquer resposta.
Passei o Sábado de Carnaval na praia, onde cheguei antes das sete da manhã, emendado da Marquês de Sapucaí, de onde assisti à abertura do Carnaval das Escolas de Samba.
De fones nos ouvidos - a isso que chamo de arrumar a cama - ouvia o ronco das ondas do mar se misturando à voz da Elizeth. Quem não chora não mama. Segura, meu bem, a chupeta. Lugar quente é na cama mas eu ia ao mar para lavar as lágrimas que me escapavam dos olhos cansados - eu havia começado a fazer uma feijoada para 300 pessoa às quatro e meia da manhã de sexta-feira.
Da feijoada, direto pro Sambódromo.
Do Sambódromo, direto pra praia.
Um ritmo alucinado pra que eu mesmo não me ouvisse, pra que eu mesmo não parasse pra pensar, pra que eu mesmo não percebesse o óbvio.
Ou então no Bola Preta - nunca mais.
Nunca mais, Edu? Jura?
Juro.
A 23ª FEIJOADA DA APURAÇÃO
Foram quatro dias - sexta, sábado, domingo e segunda - de Sambódromo.
E sem nenhum bloco - com a graça dos deuses (blocos viraram um pastiche, em brevíssimo falarei sobre eles e sobre a praga, a endemia, a pandemia dos pernas-de-pau).
A minha apoteose íntima e particular estava reservada para a Quarta-Feira de Cinzas, quando eu faria - decidi que faria - a 23ª Feijoada da Apuração.
A brincadeira começou no ano de 2001 na Mansão dos Zampronha, na Tijuca, mais precisamente na Usina (microrregião tijucana), quase na fronteira entre a Tijuca e o Alto da Boa Vista.
E desde de 2001, ano após ano - somente a pandemia impediu a festa - acontece a Feijoada da Apuração.
Dani morreu em 2011 e em 2012 a Feijoada da Apuração - a 12ª - foi em sua homenagem (teve camisa com desenho do Mello Menezes e o escambau, não é de hoje que eu gosto, e mais do que gostar, eu preciso!, de rituais).
Estão aí, na foto abaixo, Marcela Zampronha e sua mãe, minha queridíssima (ambas, diga-se) Sônia Zampronha, vestindo a camisa.
Voltando.
E elas estavam lá, as duas.
A que tinha morrido e a que chegara há pouco.
Ela teve coragem de ir - forte, que sempre foi.
E aquilo me arrebatou.
Não sei exatamente a partir de que ano a Feijoada da Apuração passou a ser feita em nossa casa, na Tijuca (iniciativa dela, faço questão de lhes dizer).
Mas é fato que deixei de dividir a tarefa com a Sônia (Zampronha), que dá nome à mansão, e passei a fazer em casa.
Ano passado, em 2023, houve a primeira em Copacabana - a 22ª, já que a pandemia impediu que promovêssemos a efeméride.
E agora, em 2024, decidi que manteria a tradição.
Foi tão difícil quanto o Sábado de Carnaval sem o Bola Preta.
Em muitos momentos, faço a confissão, me senti como na igreja, durante o casamento de dois queridos meus (como lhes contei aqui).
Mas foi bonito.
Às oito da manhã - estou sendo preciso - preparei minha primeira caipirinha (tá na foto abaixo). Limão machucado com carinho com o pilão de madeira, açúcar, cachaça branca, cubão de gelo e o tanto de saudade de tudo que eu sentia antes mesmo do cheiro do refogado do feijão tomar a casa de assalto.
É isso - definitivamente é isso - que tem me mantido vivo.
Os amigos em torno da mesa.
Bebida farta, comida farta.
Fomos vinte e cinco, dessa vez.
Dois quilos de feijão, 10 quilos de carne, arroz, farofa, couve mineira, lingüiça frita, laranja, bastante saudade - e foi tudo bonito demais.
Moacyr Luz, presente, sacana que só ele, sacou do violão depois da apuração e deu de tocar.
Chega de Saudade, Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
Por causa de você, Tom Jobim e Dolores Duran.
Fraquejei, confesso.
Mas foi bonito.
Foi tudo bonito demais.
E nada paga a emoção do dia seguinte.
Leonel, ainda na cama, assim que acordou:
— Papai, você arrasou. Sua feijoada tava sinistra.
Fiz força pra ele não ver que eu estava chorando (de novo).
Foi quando ele emendou:
— Eu adorei ontem. Me ensina a fazer feijoada?
Eis aí o que deixa absolutamente feliz e certo de que estou a fazer o certo: saber que meu filho absorve a beleza do que me proponho a fazer. Cozinhar para gente que eu amo. Reunir os amores em torno da mesa. Erguer o copo ao humor, apud Aldir Blanc.
Isso tem me bastado.
Em 2024, porque você que me lê sabe que eu amo demais o furdunço em torno do fogão e da mesa, vai acontecer o X Barreado de Morretes.
O Pato de Nazinha.
E mais, e mais, e mais.
Porque não vai ser agora, franca e sinceramente, que o espetáculo vai parar.
Em tempo: tem início, na madrugada de domingo para segunda-feira, a Quaresma - a Santa Quaresma.
Até o dia 30 de março - Sábado de Aleluia - estarei privado de açúcar, de álcool, de carne vermelha e de farinha branca.
Quarenta dias de privações.
Quarenta dias de penitência.
O que são quarenta dias, não é mesmo, Edu?
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Como estou a falar das coisas que não são mais como eram, divido com vocês um texto que escrevi pouco mais de três meses depois da morte daquela que, tendo morrido, se mantém viva. Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, republico Meu amor, e agora?, texto publicado no dia 13 de outubro de 2011, aqui.
“Foi no comecinho de 2009. Já há quase um ano no enfrentamento do câncer, depois de algumas cirurgias, de algumas complicações, depois de iniciadas as sessões de quimioterapia e de radioterapia, cheguei em casa e encontrei minha menina de olhos perdidos, sentada na sala de casa – cena raríssima, eis que sempre fui recebido, à noite, depois de um dia de trabalho, com o mais lindo sorriso do mundo estampado em seu rosto e com aplausos (porque ela deu, de um certo dia em diante, de me aplaudir quando eu chegava, e até hoje sinto uma falta tremenda desse som). Cheguei-me a ela:
– O médico disse que meu cabelo vai começar a cair… Meu amor, e agora?! – e deu de chorar.
Eu, que mantive firme meu propósito, até o último dia (quando fraquejei…), de não chorar diante dela, fiz festinha em seu rosto, bebi suas lágrimas e fui, naquele momento, um homem despedaçado diante de sua dor (uma, dentre tantas…). Mas tanto fiz, tanto disse – cheguei a cantar que “é das carecas que eles gostam mais…” – que ela tornou a sorrir.
Os dias foram passando, os cabelos foram, de fato, caindo, até que num determinado dia ela decidiu ir com a irmã a um salão pra cortar o cabelo bem curtinho. Nesse dia, bem me lembro, sua irmã foi com ela a uma loja de perucas e depois de muito tempo lá (experimenta uma, chora, experimenta outra, chora mais…), saíram com a peruca comprada. Foram dias difíceis… Quando já sem cabelo algum, incorporou a peruca. Passaram-se poucas semanas – notem que o humor, esse grande companheiro!, jamais nos abandonou… – e deu-se o seguinte: Dani chegava da rua, tirava a peruca e a punha sobre o abajur de nosso quarto (só de escrever isso, imagino que vocês que me lêem já sabem o próximo passo…).
Estávamos jantando quando ela disse:
– Não tá cheirando a queimado?
Eu havia acendido o abajur e a peruca foi oló!
Como chorou, minha menina. Segurando a peruca nas mãos, verificando o estrago (que nem foi tão grande…) que houve, disse:
– Meu amor, e agora?!
Voltamos à loja, deu-se um jeito, mas ela começou a curtir comprar lenços como alternativa.
Era, mesmo de lenço, a mais bonita das moças. E a quantidade de lenços, imensa, fazia, de certa forma, com que o ato de se vestir fosse sempre divertido.
Até que chegou o dia em que ela me disse que estava um pouco cansada de sair de lenço, de usar (e usava cada vez menos) a peruca, que queria ter coragem de sair na rua sem nada na cabeça, e me disse isso diante do espelho do banheiro, as lágrimas caindo sobre a pia, falou sobre o medo de ser vítima de tantos olhos na rua, e segurando minhas mãos, me olhando nos olhos, disse:
– Meu amor, e agora?!
Fato é que marcamos, para outubro de 2009, nossa primeira viagem para NY. Eu já havia estado lá, em 1995, ansiava por voltar, e pensamos que seria uma grande idéia passarmos seu aniversário, dia 15 de outubro, em NY.
Dani, nas primeiras horas da viagem, já estava apaixonada pela apaixonante NY (e foi uma viagem intensa, emocionante, choramos de emoção muitas vezes, rimos outras tantas, porque havia, entre nós, uma espécie de pacto silencioso, tácito, de que era preciso aproveitar tudo no grau máximo, com intensidade de último-dia, e havia em seus olhos, desde o início de tudo, a permanente angústia quanto ao porvir).
Vai daí que na nossa primeira manhã em solo americano, acordei mais cedo que ela (rotina…), desci, fui a um florista e comprei as mais lindas flores que encontrei. Voltei ao quarto com as flores e um cartão que dizia “Pra você, minha menina, que me fará o homem mais feliz do mundo, mais do que já sou por tê-la, se descer pra me encontrar pro café-da-manhã sem nada na cabeça. Te amo (e acho que vou te amar ainda mais, se você mostrar pra Nova York o charme da careca da mulher brasileira!)”. Deixei as flores na cabeceira e desci.
Quando ela apareceu pro café-da-manhã, era a (ainda) mais luminosa das mulheres.
Orgulhosa. Sem vergonha. Apaixonada.
Choramos pra burro, decidimos ir ao museu, e eu senti – confesso – um orgulho absurdo da minha menina, tão íntegra em meio a tanta dor, tão capaz de demonstrar (e fez isso até o último minuto) seu amor por mim, tão bonita.
Passamos horas no museu, e eu poucos olhos tive pra tantas obras de arte… porque tinha os olhos cravados nela, o tempo todo, na intenção de captar todo e qualquer sentimento que dela brotasse naquele primeiro dia sem qualquer pudor de si mesma – e como vivemos “primeiros dias” nos últimos anos…
Os cabelos nunca mais voltaram.
Quando voltamos ao Brasil, fui sua alma gêmea careca.
Era a maneira que eu tinha – e como busquei maneiras, maneiras, maneiras, maneiras de lidar com tudo aquilo… – de dizer a ela do meu amor, da minha solidariedade, da minha capacidade de entrega, do meu desejo de ser o melhor pra ela.
E hoje sou eu que, a cada manhã, diante do espelho do banheiro, de olhos fechados e pensando nela, pergunto sozinho:
– Meu amor, e agora?!
Até.”
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
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UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, uma das playlists que montei no Spotify - Rio de Janeiro - que já conta com 122 seguidores.
Ela será permanentemente incrementada (e eu aceito sugestões que podem ser enviadas por e-mail!).
Ela está aqui ou, se preferir, ouça já! - abaixo.
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e, repito, está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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