Estive ontem, sexta-feira, depois de muito tempo, depois de longo e tenebroso inverno, como diria minha bisavó, em uma cerimônia de casamento em uma igreja - e não uma igreja qualquer, mas na Igreja de São Francisco de Paula, tesouro carioca, uma igreja absoluta, belíssima, densa, como devem ser as igrejas.
E não havia - eis o que quero, por ora, lhes contar - ninguém mais denso do que eu no interior da nave.
A igreja, repito, inaugurada em 1865, portanto há 158 anos, é toda talhada em madeira e somente alguém sem alma, sem coração, somente alguém desprovido da mínima condição de ser humano, é capaz de subir aqueles poucos degraus de pedra que separam o Largo de São Francisco do interior do templo sem ao menos o esboço do soluço que antecede a explosão do choro.
Vamos ao que quero mais lhes contar.
Casei-me, quem me lê e me acompanha sabe (porque já falei disso aqui, aqui, aqui, aqui e aqui), notem que obsessão, pela primeira vez em 1994. A única em uma igreja (igualmente belíssima, igualmente densa, barroquíssima) e a única com uma mulher que, a despeito de estar viva, morreu.
Casei-me a segunda vez em 1999 - sem qualquer espécie de cerimônia de ordem civil ou religiosa, ela morreu em 2011 e meu estado civil ainda era divorciado - com uma mulher que, vejam vocês, a despeito de estar morta, vive.
Vamos a uma confissão inédita: passei sei lá quantos anos tentando convencê-la a se casar comigo de papel passado (expressão que amo). Ela, que me considerava caretíssimo, achava aquilo uma bobagem integral.
Até que veio o câncer - que não lhe deu um único minuto de sossego - e o desejo súbito de casar-se. O médico, a quem consultei, com a frieza dos oncologistas, foi inexorável: não haverá tempo.
Em julho de 2011 a viuvez cravou-se sobre mim sem que eu pudesse me declarar viúvo: eu ainda estava divorciado.
Casei-me a terceira vez em 2013, quando ela deixou Curitiba pra viver comigo no Rio de Janeiro. Em 2018, nosso piazinho tinha apenas 3 meses, casamo-nos no civil (na Tijuca) com bolo, espumante e brindes com poucos e bons amigos que testemunharam aquele gesto de amor à beira-mar, na Fioretina, na praia do Leme. Eu estava, enfim, podendo me declarar casado e não mais divorciado (condição que ainda me atrelava àquela que, estando viva, está morta).
Chega abril de 2023 e estamos separados. Ela, viva, permanece e permanecerá viva para sempre.
Em apertada síntese, em apenas um dos três casamentos eu estava em uma igreja (o Mosteiro de São Bento, esqueci de lhes contar).
Tem início a cerimônia ontem.
Eu choro como um pajem sem coragem de atravessar a igreja em direção ao altar.
A igreja está lotada. Mais de 1.000 convidados se espremem nos bancos, nas banquetas, nos corredores da igreja e não há, dentre os mais de 1.500 convidados (há em torno de 500 pessoas aglomoradas diante da igreja, no Largo de São Francisco), ninguém tão só quanto eu.
Os clarins anunciam: tem início a execução da Marcha Nupcial, de Félix Mendelssohn.
Um homem ao meu lado, com ar de erudição (jamais o vira antes), aproxima sua cabeça da minha e diz:
— Quando que Wagner poderia imaginar que sua marcha nupcial seria eternizada, não é?
Eu, sem paciência, chorando e enfrentando arrancos e arremessos em direção ao passado, fui direto:
— Não é Wagner, a de Wagner é outra. É Mendelssohn.
Ele, tentando ser simpático:
— Você é culto, hein!
Voltei em paz aos meus arremessos.
Passei a ter visões confusas e precisei me apoiar numa das pilastras do corredor.
Olhava pra noiva, lindíssima!, e a visão turvava pra que a imagem da primeira mulher, morta apesar de viva, me assombrasse.
Eu desviava o olhar pro teto estonteante da São Francisco de Paula e a segunda mulher, viva apesar de morta, tinha asas e boiava sobre os convidados sorrindo em minha direção.
Alguns bancos adiante, sentada, a terceira mulher - e eu não estava, por óbvio, a seu lado.
O padre:
— Rezemos a oração que Jesus nos ensinou.
Não havia ali, entre homens e mulheres, ninguém mais católico, ninguém mais apostólico, ninguém mais romano do que eu. Atirei-me ao chão de joelhos e rezei contrito pedindo perdão por tudo.
Uma senhora, compungida diante da cena, ofereceu-me água.
Aceitei e bebi como se bebesse o vinho da comunhão.
Tive ímpetos de correr em direção ao altar a fim de pedir uma hóstia ao padre celebrante.
No instante da benção das alianças, o padre exortou os presentes a minutos de oração. E o fiz. Na intenção dos noivos, pedindo proteção contra o horror das visões da mulher-morta, pela alma da que morreu mas que está viva, pela saúde e pela existência da mãe do meu filho, a responsável por transformar em verdade os sonhos mais bonitos que nutri ao longo de 54 anos.
Minha mãe, mantendo a tradição da doçura ácida que permeia nossa relação, dia desses deu a entender que sou um caso perdido.
Talvez eu seja mesmo - mas ainda não me dei conta disso.
Perdôo a todos, não peço desculpas, foi isso que eu quis viver - os versos de Aldir Blanc andam brincando de roda dentro de mim.
Ao fim da cerimônia, aquele espetáculo de todo casamento.
Havia espumante, bala de côco, e bem-casado na sacristia lotada.
As mais velhas, sempre elas, sem qualquer cerimônia, abriam suas bolsas e socavam o quanto podiam de bem-casado. Uma fila gigantesca para cumprimentar os noivos e dei de ser um dos primeiros a fazê-lo.
Fingi costume - ali, diante deles, eu não podia fazer o que fiz durante a celebração.
Dois colegas de trabalho me convocaram para um jantar em Botafogo. Apesar do desânimo e do cansaço emocional depois do meu holocausto particular, entrei no táxi com os dois. Ele no banco da frente, ela atrás comigo.
Fui em silêncio.
Saltei com eles.
Sentamo-nos à mesa.
Vem à mesa o garçom trazendo o cardápio.
Era, teoricamente era, um restaurante chique - ele tecera os maiores elogios.
O cardápio plastificado, com espiral plástica, tornou a me derrubar.
Na primeira linha eu li: revolução de bruschettas.
Levantei-me, fui embora, vim pra casa (é de onde escrevo, por isso uso o verbo nesse tempo).
Deitei-me no quarto escuro - os outros dois quartos do apartamento mais vazios que o mais vazio pode representar - e o holocausto prosseguia dentro de mim.
Diria Kátia, a cega:
— Não está sendo fácil.
Pra quem não sabe do que estou falando, eis o vídeo aqui.
NOSSA!
Nossa, Edu, você se expõe demais - consigo ouvi-los daqui.
São 54 anos, 6 meses e 1 dia vivendo assim.
19.907 dias.
Acabo de decidir que farei uma celebração (mesmo!) no dia 29 de janeiro de 2024, quando completo 20.000 (vinte mil) dias de vida.
Possivelmente, é o que faço de melhor, um jantar em casa para gente que quero por perto em data tão auspiciosa.
Quatro dias depois do 80º aniversário do meu pai.
Dois dias depois do aniversário dela, a terceira mulher.
Mas voltando.
Outro verso blanquiano que amo e que fala por mim é: cada um tem a própria receita pra combater a desgraça.
Há 54 anos, 6 meses e 1 dia é assim que faço: enfrento meus fantasmas e meus demônios rasgando a minha alma diante da assistência eufórica e atônita a fim de que todos acompanhem meu holocausto, minhas festas e meus dramas, minhas conquistas e minhas derrotas, minhas vitórias e meus fracassos, meus começos e meus fins.
Não vai ser agora, franca e sinceramente, que o espetáculo vai parar.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, o texto Os dentes de minha avó, publicado em 06 de março de 2012. Diz muito sobre o que freqüentemente ocorre comigo.
“Vejam bem uma coisa, vocês que me lêem. Vira-e-mexe eu me valho da expressão “arremesso violento em direção ao passado”. Geralmente, quase sempre – sempre, eu diria – estou me referindo à sensação absurda, quase-mágica, que experimento quando dou com uma foto minha, bebê, criança, adolescente, já – eu, às vésperas de completar 43 anos de idade, tenho cada vez mais esses arremessos. Pode lhes parecer apenas uma brincadeira para definir o que muitos de vocês chamariam de saudade ou mesmo de nostalgia. Isso seria, se fosse de fato apenas isso, extremamente reducionista. Porque o arremesso violento em direção ao passado a que me refiro, meus poucos mas fiéis leitores, é mais que isso. Infinitamente mais que isso. Mais grave que isso. Mais intenso que isso. E muito mais bonito que isso. Vou às minhas digressões em busca de ser compreendido e a fim de prosseguir nessa batalha diária, nesse lufa-lufa incessante e doído que é o exercício de exorcizar os anjos e os demônios que moram em mim.
Se eu realmente sofro esses arremessos diante de uma foto minha, antiga, de um encontro com um parente, por exemplo, como aconteceu quando encontrei-me com o Alexandre um dia desses (relembrem aqui), se esse arremesso é capaz de produzir em mim, de forma muito nítida, os cheiros que me levam aos cenários para os quais me transporto, se ouço as vozes dos fantasmas com os quais convivi, vocês façam uma idéia do que sinto ao me deparar com uma fotografia de há séculos – como a que ilustra este texto.
A foto é da década de 40 (portanto, de mais de 30 anos antes de eu vir ao mundo). Nela estão, na casa em que viviam meus bisavós – Mathilde e Eugênio, e ele eu sequer conheci – à esquerda minha tinha Linda, Carlinda para ser mais preciso, e à direita minha avó Mathilde, tendo minha tia Linda sua filha Maria Vitória no colo (minha madrinha, a quem não vejo há mais de 30 anos) e minha avó, mamãe – Mariazinha.
A foto me dá febre (e se vocês duvidam de mim, lamento profundamente não poder lhes mostrar o mercúrio do termômetro na casa dos 37 graus). E na busca enlouquecedora da razão da febrícula, me perco: pode ser porque minha avó me dá uma saudade tremenda, ela que foi oló em dezembro de 2010, como lhes contei aqui em 07 de dezembro de 2010. Pode ser porque não vejo minha tia Linda há mais de 30 anos, porque sei que ela está ainda viva, porque sei que sofre de Alzheimer e que por conta disso, ainda que eu supere a aridez do caminho que eventualmente me levaria até ela, ela não lembraria de mim e isso me causaria uma dor profunda. Pode ser porque não vejo minha madrinha há mais de 30 anos, e nem mesmo sei se ela ainda é minha madrinha (não, não é), mas é uma hipótese a se considerar. Pode ser causada, a febre, por conta da imagem de minha mãe ainda bebê, vestindo um vestido branco belíssimo como o que nunca vestiu a filha que eu não tive, com laço de fita nos cabelos e com uns sapatinhos que – vejam vocês como sou parte de uma família de obsessivos pela memória – mamãe guarda até hoje numa das estantes da sala de sua casa, eles que receberam um banho de cobre para que ficassem preservados para todo o sempre. Pode ser porque vejo, atrás das duas irmãs, na fotografia, meu tio Beneval e meu avô Milton – também já mortos.
Olho, olho de novo, tiro a temperatura, ouço a voz das primas que nunca mais se falaram, ouço a gargalhada de minha avó, ouço a voz da tia Linda, e antes de prosseguir quero lhes contar um troço. Vamos a uma breve pausa.
Sábado passado, como lhes contei aqui, houve a festa em comemoração à memória do Estephanio´s, na casa de meu irmão. Pois bem. Estava eu sentado à mesa, era cedo ainda, quando vejo chegando duas mulheres e três adolescentes, descendo a ladeira que liga o portão ao jardim da casa. Disse-me o Fernando, meu irmão:
– Não sei quem são. Você sabe?
Ele estava de frente. Virei-me, senti o frêmito e disse:
– Ana Paula e Carla. As crianças não sei quem são.
Vejam: Ana Paula é filha da Maria Vitória, eu também não a via há mais de 30 anos. Carla é filha de meu tio Carlos Henrique, meu tio Hique, filho de minha bisavó Mathilde, irmão de minha avó, e os adolescentes eram filhos da Ana Paula. Daí eu, que já estava em transe por conta do arremesso que a simples realização da festa causava, deixei-me levar pelo turbilhão do tal arranco. Estranhíssimo, quero lhes dizer, ouvir aquele “oi, primo”. Não era exatamente a presença delas que me tirava dali em direção a sei-lá-pra-onde. Era minha bisavó, que pairava sobre nós, sabe-se lá se satisfeita com aquele reencontro, era minha avó, também presente, era aquele cheiro insuportável de hortelã, das pastilhas de minha bisa, misturado a um cheiro de talco, que me tiravam do eixo. Ana Paula bem que tentou um diálogo, e só eu sei a força que fazia, olhando para pontos distantes dali (disso bem me lembro), para não sair dizendo as frases desconexas que me vêm à boca numa hora como aquela. Era o que eu queria, por enquanto, lhes dizer. Voltemos à fotografia.
Nada do que vislumbrei como sendo a causa do aumento abrupto da minha temperatura era, de fato, responsável pela febre. Eu tinha febre (ainda tenho, enquanto escrevo) por conta dos dentes de minha avó. Notem bem: são dentes horríveis, amarelos, enegrecidos. Vovó fumava. E eu não tenho essa imagem dos dentes de minha avó, em mim. Amarelos, em relação à minha avó, só os azulejos de seu banheiro, o mesmo que testemunhou minha descoberta do gozo com a Adele Fátima, meu primeiro contato com a quiromania (lhes contei sobre isso – inclusive sobre a cor dos azulejos – aqui). Vovó, quando morreu, usava dentaduras (e era, confesso, uma dentadura belíssima, vovó tinha um sorriso belíssimo, vovó era doce como a mais doce das avós). E esse não conhecer seus dentes amarelos me causa arrepios absolutamente incompreensíveis.
Em apertada síntese, às vésperas de meus 43 anos, tenho aguda saudade de minha avó e de seus dentes amarelos. Amarelo me lembra também um girassol. E girassol me remete, de imediato, não a Van Gogh, como a grande maioria de vocês deve ter imaginado. Mas ao catavento que tem dentro o que há do lado de fora do meu girassol. Sou eu, meus poucos mas fiéis leitores, com saudade de minha avó, pedindo a ela um sustenido e me deparando com esse sorriso bemol, amarelado, que me dá essa febre incompatível com o momento que vivo, de febril saudade (me basta a febre da saudade, eu não preciso que minha temperatura suba). Mas é sempre assim, quando vem chegando abril.
Sou um sujeito entorpecido por cada um dos abris que já vivi. E enquanto tomo um analgésico pra afastar de vez essa febrícula inconveniente, tomo também meu chimarrão, que tem na cuia um risco também amarelo, pensando em quem me trouxe sol (amarelo) para amainar a sombra de tantas ausências.
Até.”
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
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UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, a playlist que montei, há umas semanas, no Spotify.
Nas últimas edições eu já indiquei a playlist a vocês, que me lêem.
Mas eu a incrementei.
Ei-la; ela está aqui ou, se preferir, ouça já!
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e traz as canções que mais gosto e que têm a cidade do Rio de Janeiro como referência - e ela está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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