Nem se eu quisesse eu conseguiria deixar de voltar ao mesmo tema da newsletter do sábado passado (pode ser lida aqui): as obsessões olímpicas e impressionantes, colossais, de meu velho pai. Eu disse meu velho pai e quero lhes dizer que sim, é ele na foto abaixo, numa das salas de aula do Instituto Lafayette (ou La-Fayette, como preferem alguns), na Tijuca (onde mais?), fazendo paz-e-amor com os dedos da mão direita e com um discreto sorriso (raríssimo!) no rosto.
E por que não posso evitar repetir o tema? Porque o estrondoso sucesso do texto da semana passada não me permite privar quem me lê de mais histórias (todas reais, quero frisar) protagonizadas por meu pai. É, o Isaac, um personagem de pasquim. E não fosse eu seu filho - e o mais velho, ou seja, o que testemunha há mais tempo as incríveis histórias que o envolvem - eu duvidaria de mim mesmo se lesse o que eu escrevo sobre ele.
Meu pai tem, no bolso imaginário da camisa, um sem fim de cartas que vai exibindo a seus interlocutores, uma a uma, sempre com as mesmas frases - repetidas há muitos anos com uma expressão (eis uma das coisas que muito me impressiona) novidadeira, como se ele as dissesse sempre pela primeira vez. Vamos a alguns exemplos.
Você encontra o Isaac onde quer que seja, a qualquer hora do dia. Evidentemente que você diz um oba, um olá, um bom dia, um boa tarde. E ele responderá sempre a mesma coisa:
— Acordei tarde hoje. - e diz a frase imprimindo um tom de mistério.
E você, o que fará?
Evidentemente que, para dar seguimento à conversa, dirá:
— Oh! A que horas?
E ele, excitadíssimo, babando de tanta excitação e esfregando o dorso da mão na boca, dirá rindo de si mesmo:
— Três e meia da manhã!
Antes que você interaja, ele dirá:
— Ontem acordei três e quinze! Hoje acordei tarde! Tarde! Tardíssimo! - e guinchará, sozinho.
Eis a verdade cotidiana: Isaac, assim que o sino da igreja dobra às seis horas, na hora da Ave Maria, diz a mesma frase, e sempre a mesma frase (e já de pijama).
— Vou fazer o meu lanchinho! - diz em voz alta, porque está entre suas obsessões ir narrando, de si para si, em voz alta, seus passos no curso do dia.
Põe uma fatia de pão de forma na torradeira, prepara seu Nescafé (quem, além dele, usa Nescafé?!), corta uma fatia radiográfica de queijo minas (de tão fina), lancha e geme:
— Vou pra caminha! - e vai.
Deitado de barriga pra cima, tendo sobre as coxas (dobradas, os pés sobre a cama) uma prancheta com suas palavras cruzadas, fica ali até cinco pras oito em ponto. É quando põe a prancheta sobre o abajur que fica em sua cabeceira, confere os nove relógios de pulso que mantém perfilados ao lado de um termômetro - ele também controla a temperatura do ambiente com regularidade de meteorologista -, faz uma prece para o doutor Bezerra de Menezes (Isaac é fanático pelo médico dos pobres), confere que faltam poucos segundos pra oito, apaga a luz e dorme.
— Eu apago às oito em ponto, sempre, é impressionante!
PAPAI E PAULO AMARELO
Essa próxima foto traz Isaac (o sujeito exatamente no meio dos que estão de pé) na hora do recreio do Instituto La-Fayette.
O referido Instituto La-Fayette ficava onde hoje fica a Fundação Bradesco, na rua Haddock Lobo, exatamente em frente à Igreja dos Capuchinhos. A poucos metros dali, naquela época, ficava o legendário Divino, na esquina da Haddock Lobo com Matoso, onde toda confusão começou, como canta Tim Maia aqui.
Pois o que quero lhes contar é o seguinte: meu pai jamais, em quase 52 anos (completo 52 no dia 27 de abril), me contou um único fato, um único que fosse, de seu passado. Fiz e ainda faço perguntas (hoje menos, é claro) perguntas sobre o antes-de-mim. As respostas são sempre as mesmas:
— Não lembro.
— Não houve nada demais.
— Pra quê você quer saber?
Eu tinha meus 13, 14, 15 anos de idade. Morria de curiosidade de saber o que ele fizera no final dos anos 50, no começo da década de 60… e ele sempre repetia o não lembro, não houve nada demais, pra quê você quer saber.
Até que, numa certa ocasião, setembro de 2002, por ocasião do aniversário de Aldir Blanc, o crítico musical Roberto Moura lançou, no SESC Tijuca, um songbook com canções de vários parceiros do Aldir. Meu pai foi comigo.
Lá estava, também, Paulo Amarelo, legendária figura do bairro do Estácio, amigo do peito de Ceceu Rico, pai de Aldir. Advogado, Paulo Amarelo aparece na hilariante letra de Negão nas parada, de Guinga e Aldir (aqui): “Ceceu me disse que Eunice se te visse na rua chamava logo a entorpecente e te sentava a pua. Mas que se Eunice persistisse nesse erro primário, Paulo Amarelo aparecia sem cobrar honorário.”. Freqüentador assíduo do Bar do Momo, na General Espírito Santo Cardoso - onde morava minha avó materna, Mathilde, que morreu em 2010 -, ele gostava muito de mim (morreu pouco antes de Ceceu, que sentiu brutalmente o golpe do desaparecimento do amigo). Voltemos ao SESC.
À certa altura, Paulo Amarelo me vê. Eu estou com meu pai. E ele grita:
— Edu! - grita e abre os braços.
E vem vindo em minha direção. Quando vou apresentá-lo ao meu pai, não vejo mais Isaac. O Paulo:
— Esse que estava contigo, você conhece?
— Meu pai, pô!
Paulo explode numa gargalhada.
— Isaac?
— Ele mesmo. Você o conhece?
— O maior criador de confusão no Divino, na Matoso, na Haddock Lobo! Cadê ele?
Paulo me fez sentar. E passou coisa de duas, três horas, me contando histórias do arco da velha envolvendo Isaac (meu pai), Babolina (Jorge Benjor) e Pato, o terceiro elemento do trio terrível que protagonizou lances inacreditáveis naquela região da Tijuca, pertinho do Rio Comprido e do Estácio.
Meu pai só foi me atender, ao telefone, quase um mês depois.
E sempre que esse episódio vem à tona, ele repete:
— Um maluco, coitado. Nunca vi mais gordo.
Quando Paulo Amarelo morreu, contei pro velho na primeira oportunidade, quando estive na casa de meus pais, no Alto da Boa Vista.
Meu pai bebia seu indefectível uísque quando dei a notícia.
Seus olhos encheram d´água. Ele fungou, emocionou-se visivelmente, bebeu a dose num só gole, serviu-se de outra e em silêncio ficou mexendo o gelo com o indicador espetado dentro do copo.
— O que foi, pai?
— Nada, porra. Um cisco.
— Mas você tá chorando… é por causa do Paulo?
— Homem não chora! - repetindo a frase que escuto desde a mais tenra idade.
Tive, vocês sabem, uma infância tranqüila.
Como se vê.
DONA MATHILDE
Eu disse que o Bar do Momo fica na rua General Espírito Santo Cardoso, onde morava minha avó materna, dona Mathilde. Morava com meu avô, Milton, que morreu em março de 2002.
Vovó, quando meu avô morreu, foi alvo do vaticínio de muita gente: não vive sem o Milton, coitada, não vai durar seis meses, já, já estarão de mãos dadas no Nosso Lar, diziam as espíritas mais fanáticas. Vovó, desolada, gemia ainda no cemitério:
— O que vai ser de mim? Milton me dava um salário mínimo por mês para minhas despesas… o salão, uma coisinha ou outra pra mim… - jamais soubera, revelou-me depois, quanto vovô ganhava como aposentado do DNER.
Vou encurtar: dona Mathilde passou a viver com uma pensão de rajá. Ela dizia, rindo, sempre que me visitava:
— Não tenho nem o que fazer com tanto dinheiro, Dudu!
E eis o ponto a que quero chegar: com a morte de meu avô, foi meu pai que ficou responsável por cuidar do que ele chamava de “o dinheiro da dona Mathilde”. E todos os meses, de abril de 2002 a dezembro de 2010, meu pai gania pelo telefone:
— Mas dona Mathilde! Todos os meses é a mesma bulha! A senhora chega ao dia do pagamento sem um único centavo na conta! - fazia dramas horripilantes.
E ela, sereníssima:
— Ué. Vou guardar dinheiro pra quê?
Essa frase, esse descompromisso com o controle, alucinava meu velho pai, que fazia planilhas no Excel pra administrar a pensão da vovó, que fazia cálculos, projeções, sugestões de investimentos jamais seguidas, conselhos que vovó não ouvia, o diabo.
E era isso: presente pro três netos toda semana, almoço pago pras amigas do salão da Zizi, que ela freqüentava há mais de 60 anos, teatro em São Paulo (de van, que vovó não andava de avião, nunca entrou num único avião em toda a vida) com as amigas do centro espírita no pé do morro do Andaraí, fortunas gastas numa delicatessen decadente na rua Uruguai (“Dona Mathilde, o dia que a senhora morrer aquela delicatessen vai à falência!”), uma velhinha pródiga.
É dela, a cabeça branca (e cheirosíssima) na foto abaixo.
Menos de dois meses depois de sua morte, de fato fechou as portas a tal delicatessen.
E papai, que em dezembro de 2010 era uma espécie de Fidel Castro do seu edifício (era síndico há quase 30 anos), falava alto para que os netos e a filha única de sua sogra ouvissem:
— Eu avisei! Eu avisei que a delicatessen iria falir. Dona Mathilde gastava rios de dinheiro naquela espelunca. E eu tenho certeza que ela era roubada!
Mas houve o mais hilário e aqui me permito uma pausa: Aldir dizia que era das passagens mais inacreditáveis, de tão engraçada. Vamos a ela.
Era janeiro de 2011, coisa de um mês desde a morte de vovó.
Ele, solene, convocou os filhos para um jantar no Alto da Boa Vista.
Mamãe ainda abatidíssima. Nós três, todos muito apegados à vovó, ainda com a dor muito viva.
Assim que começou o jantar, Isaac na cabeceira:
— Eu quero fazer um comunicado a vocês… - tinha a voz grave, a expressão entre o triste e o tenso, as mãos ligeiramente trêmulas…
Todos mudos, os talheres intocados. Ele seguiu, a voz embargada:
— É que… não bastasse a morte da mãe e da avó de vocês (pousou a mão sobre a mão de minha mãe) - fez uma pausa dramática…
Seguiu:
— Eu perdi a eleição. Não sou mais síndico.
Explodimos, os três de rir, papai saiu furioso da mesa.
Notem que não foi apenas minha infância que foi tranqüila.
A VACINA
Isaac foi vacinado essa semana. Há mais ou menos um mês, quando foi divulgado o calendário de vacinação no Rio de Janeiro, papai criou um grupo (ele adora…) no WhatsApp incluindo além dele, minha mãe, meus irmãos (sendo que o mais novo mora em Paris), a Morena e a Lina, minha cunhada.
Todos os dias, desde a criação do troço, por volta de 4 da manhã, a mesma mensagem: faltam x dias para minha primeira dose.
Um adiamento ou outro, um imprevisto aqui, outro acolá, chegou o dia.
Depois de uma espécie de simpósio virtual, papai preferiu que Fernando, meu irmão mais velho (ele é o do meio mas é o meu irmão mais velho) fosse levá-lo.
— Tudo bem, mas por que ele? - perguntei.
— Porque você se ofereceu para me levar no dia 11 de fevereiro às 13:34h. Fernando fez isso no dia 25 de janeiro às 09:14h, logo é dele a preferência.
Incrível?
Só porque vocês não têm ainda o relato do dia da vacina.
Papai procurou saber a que horas abriria o posto que ele escolheu para se vacinar. Pediu a meu irmão que passasse em sua casa duas horas antes do horário (o posto fica a menos de 10 minutos de carro de sua casa).
— Mas por que tão cedo, pai?
— Porque eu quero ser o primeiro, porque eu gosto de chegar cedo!
A abertura dos portões do posto atrasou 2 minutos.
Papai já se contorcia de ansiedade quando foi chamado.
Pediu a meu irmão que ficasse de olho no êmbolo da seringa para que a certeza de imunização fosse efetiva. E quando o agente de saúde foi vaciná-lo, papai cravou os olhos no Seiko que ainda carrega no pulso. Disse:
— Você pode esperar uns 45 segundos? Eu digo já e você vacina.
Meu irmão piscou pro cara, que concordou.
— Um, dois, três e… já!
Mensagem no grupo: fui vacinado às 08:10h em ponto!
Está agendada, a segunda dose, para o dia 07 de abril.
Seria dia de aniversário de minha avó Mathilde.
Mensagem de voz no grupo a que me referi: a segunda dose vai ser no dia sete de abril, no dia do aniversário (reforçou o primeiro “r”, como um locutor) da dona Mathilde! - e deu uma risadinha no final.
Como papai também é espírita fanático, daqueles que fazem juramento com as mãos espalmadas sobre o Livro dos Espíritos, de Kardec, ele seguramente já está ansioso pela companhia da sogra no dia da imunização completa.
BODAS DE OURO NO COPA
Pra fechar, a última história (igualmente real).
22 de maio de 2018, Bodas de Ouro de meus pais.
Realizando um sonho antigo dos dois (mais dela do que dele), papai fez reserva pra eles dois e pros três filhos em suntuosas suítes do Copacabana Palace. Passaríamos todos o dia 22 lá e jantaríamos como Reis da Prússia no Cipriani, restaurante aberto em 1994, assim batizado em homenagem ao hotel mais sofisticado de Veneza.
Além de nós, dois casais convidados para o jantar - amigos de muitos anos de meus pais.
Antes de descermos todos para o jantar, papai e mamãe marcaram um brinde na suíte que ocupavam, no último andar do hotel - coisa de mais de 200 metros quadrados. Assim que chegamos, eu e Morena, vi meu pai com os olhos vermelhos, cheios d´água, e disse:
— Ô, pai… emocionado?
— Não. Sua mãe me obrigou a usar esses sapatos novos, estão me machucando.
Na foto abaixo, um registro desse brinde (eu, Morena - e Leonel nasceria 9 dias depois! -, mamãe, papai, Fernando, Lina e Cristiano).
Corta pro restaurante.
O chef à mesa em vários momentos, garçons e um sem fim de mesuras num balé estonteante, brindes, um pequeno discurso comovido de mamãe, pratos e mais pratos, entradas, espumantes, vinhos, e meu pai cochichava de vez em quando pra mim:
— Não quero nem ver a conta!
Fato é que correu a noite, bebericávamos o licor que foi oferta da casa - também pudera!, dizia sem cerimônia meu pai - e minha mãe, pondo as mãos sobre as mãos de meu pai sobre a mesa:
— Gostou, Isaac?
E ele, franco, para assombro dos convidados (os filhos já supunham o apogeu):
— Prefiro o filé à francesa do Caçador.
Até.
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