A mesa de que lhes falei no último texto publicado aqui na newsletter - aqui - viu acontecer, no último dia 20 de maio, o IX Barreado de Morretes. Foi um troço lindo demais. Quase trinta pessoas em torno do caldeirão que, dessa vez, ficou 20 horas e 30 minutos no fogo.
Poucas coisas - não me canso de repetir isso - me dão mais prazer do que receber em casa.
E sempre foi assim conosco - aqui em casa.
Gostávamos (e gostamos, a vida se reinventa e o verbo será sempre conjugado conforme nossa conveniência) de receber os amigos, as amigas, de preparar a casa (a foto acima é da mesa do IX Barreado de Morretes), de por as bebidas no gelo, de montar a praça, de cozinhar, de ver e ouvir as expressões e as vozes de quem chega, de servir, de discursar, de erguer brindes, de nos emocionarmos com tudo.
Não foi diferente dessa vez.
Foram, como já lhes disse, 20 horas e 30 minutos de caldeirão no fogo.
O Barreado de Morretes, e mora aí tanta beleza que nem sei lhes dizer, é o prato perfeito para que tudo aconteça como mais gosto. Dá muito trabalho, requer tempo, exige paciência, tensiona (o caldeirão vai ou não explodir?, vai queimar ou não?, por aí), cansa, emociona.
Sobretudo emociona.
E eu - quem me conhece sabe, quem me lê sabe - não concebo viver longe dela, a emoção. Eu a fomento. Eu preparo o terreno pra que ela chegue mais bonita. Eu arrumo a cama pra que ela se deite. Eu canto pra que ela fique mais tempo comigo. Eu a seduzo pra que ela me queira pra sempre.
E o preparo do Barreado de Morretes, que atravessa uma noite, é perfeito, repito, pra que tudo seja infinitamente mais bonito.
Voltarei a esse tema muitas vezes.
TIJUCA COM MARESIA
Transcrevo, a seguir, na íntegra, o texto - Tijuca com maresia - que foi publicado nesse mês de junho pela revista Piauí (edição 201), assinado pelo jornalista Sérgio Rodas (aqui).
“O escritor e advogado Eduardo Goldenberg surpreendeu seus leitores ao anunciar, no começo de janeiro, que estava de mudança para Copacabana. Afinal, a Tijuca, na Zona Norte do Rio de Janeiro, é o centro de sua vida e a protagonista de suas crônicas. No Buteco do Edu – blog iniciado em 2004 e convertido em newsletter no fim de 2020 – e em seus livros, Goldenberg narra causos do bairro, seus moradores e lugares, especialmente bares. “Se quer ser universal, escreva sobre a sua aldeia”, diz o cronista, parafraseando Liev Tolstói.
Depois que seus bisavós trocaram a Gávea pela Tijuca, a família nunca mais deixou o bairro. Goldenberg nasceu e viveu lá por 49 dos seus 54 anos. Na década de 1990, houve um interregno em que morou na Lagoa, acompanhando sua primeira mulher. “Foram os cinco anos mais tristes da minha vida”, diz. O malogro do casamento mistura-se, em sua memória afetiva, às características do lugar: “A Lagoa é linda, mas não se faz nada a pé. Não tem padaria, não tem botequim, não tem jornaleiro. É o horror absoluto.”
Mas o que mais pesou foi a saudade da aldeia. Goldenberg era recém-formado e tinha acabado de abrir um escritório de advocacia – hoje ele é assessor de gabinete do prefeito Eduardo Paes. Como não tinha muitos clientes, saía cedo do batente e ia para a casa de amigos ou bares, sempre na Tijuca. Logo estava passando mais tempo no bairro natal do que naquele em que morava, o que fatalmente contribuiu para a separação.
Durante a pandemia, a atual mulher de Goldenberg, a também advogada Flávia Piana, sugeriu que a família se mudasse para Copacabana. Paranaense, ela sempre quis morar na Zona Sul. O plano ganhou tração com a quarentena, que impulsionou o desejo de ficar a céu aberto e acentuou a falta de luz solar direta no apartamento do casal na tijucana Praça Afonso Pena – onde foram enterrados o cordão umbilical e a placenta do filho Leonel. Também pesou o fato de o garoto adorar a praia. O escritor reconhece que, por vontade própria, teria continuado na Tijuca. Mas comprou a ideia e deixou o seu amado bairro.
Região da Zona Norte mais colada ao Centro, a Tijuca é o quinto bairro mais populoso do Rio – no Censo de 2010, tinha 163 805 habitantes. Na crônica O Tijucano, o compositor e escritor Aldir Blanc afirma que o morador do bairro é “considerado semi-ipanemense pelos suburbanos e tido como meio suburbano pelos ipanemenses”: “Ele fala mal dos bares da Tijuca, mas não sai deles. Detesta os cinemas do bairro, mas raramente vai a outros. Elogia o comércio da Zona Sul, mas não abandona as lojas da Tijuca. Venera as tangas, desde que não seja na mulher dele. É progressista, desde que o progresso não o afete. Esmera-se em sua descontração. Vigia sua esportividade. Obstina-se em sua espontaneidade. Por trás da indiferença com que trata o bairro, esconde-se o orgulho. O maldito orgulho de ser tijucano.”
Ao ouvir a definição de Aldir, Eduardo Goldenberg fica com os olhos marejados. “É perfeitíssima”, diz. Ele é um homem corpulento, de gestos suaves e fala mansa. O compositor, com quem falava diariamente até sua morte por Covid, em 2020, é uma de suas maiores inspirações. Outra é o escritor Nelson Rodrigues, o “bardo dos subúrbios” cariocas.
A Tijuca é conhecida por ter alguns dos melhores botecos da cidade. A pedido de Goldenberg, a entrevista à piauí foi feita no Bar Madrid, cujo interior é adornado por bandeiras dos times Real Madrid e América e por quadros de figuras como Julio Iglesias e Getúlio Vargas. Bebericando gim tônica e petiscando jamón, o escritor explica por que os bares ocupam um lugar de destaque em suas crônicas: “O botequim é a síntese da vida.”
Como é de praxe entre os tijucanos, Goldenberg sempre conviveu intensamente com familiares e amigos. Essa característica do bairro, ele admite, tem um ponto negativo: a intromissão das pessoas na vida dos outros e uma preocupação excessiva em manter as aparências. Mas há um lado positivo, de companheirismo e disposição a ajudar o vizinho. Um exemplo disso, relatado na coletânea de crônicas Tijucanismos, ocorreu quando o Bar e Mercearia Guanabara, mais conhecido como CTI das Almas, foi assaltado. Flávia Piana teve a ideia de o casal chamar os amigos para “beber o assalto” no boteco, ajudando o dono a recuperar o prejuízo. Foi um sucesso: o CTI das Almas vendeu dez vezes o valor roubado. Isso é “Tijuca em estado bruto”, diz Goldenberg, empregando o bordão com que se refere a situações que só seriam possíveis por lá.
Apesar da saudade da Tijuca, Goldenberg está feliz em Copacabana. Durante a reforma do novo apartamento, mapeou os arredores. Adotou um pé-sujo na esquina, descobriu um ponto para fazer sua jogatina, escolheu uma barraca na praia.
Logo fez amizade com o flanelinha da rua. Explicou que gostava de receber amigos e que precisava que eles tivessem onde estacionar. O guardador disse que era só avisar quando houvesse necessidade, e o escritor anotou o celular e o Pix dele. Surpreso, o sujeito perguntou: “Você não é daqui, né?” Para Goldenberg, há certa frieza e arrogância na forma como os moradores da Zona Sul tratam os outros.
O escritor, no entanto, vê mais semelhanças que diferenças entre os dois bairros. Ele até chama Copacabana de “Tijuca com maresia”. Entre os pontos em comum, estariam a grande proporção de aposentados e de conservadores, os incontáveis botequins e a importância das fofocas.
A mudança tem permitido que Goldenberg adote hábitos inéditos: vai à praia cedo, para ver o Sol nascer, e está praticando remo. O contato mais próximo com as belezas naturais fez com que o escritor cunhasse um novo bordão: “O Rio humilha.” Um de seus melhores amigos e ex-vizinho de prédio, o historiador e escritor Luiz Antonio Simas acredita que Eduardo Goldenberg irá se adaptar bem ao novo bairro. “Edu é sensacional em construir os seus mitos, que lhe dão certo conforto. Ele vai se aconchegar na ideia de que Copacabana é uma Tijuca com praia. Mas ele leva a Tijuca consigo. Ele sai da Tijuca, mas a Tijuca não sai dele.”.
O GORDO NO RESTAURANTE
Eu não sei se vocês são observadores atentos do dia-a-dia - eu sou.
Chego aos lugares, mapeio tudo com o passar dos olhos, sintonizo os ouvidos, aciono o modo olhos de ver e ouvidos de ouvir e vou amealhando histórias, personagens, dramas, tragédias, vitórias, tristezas e alegrias que se misturam e que se liqüefazem diante de mim, um permanente assombrado com tudo que vejo.
Vamos à cena (recorrente) do gordo no restaurante (dia desses estava almoçando no Centro e notei que eu estava diante de uma constatação que tinha o peso de uma lei imutável).
O gordo pede o cardápio por hábito, apenas.
O gordo pede o cardápio pra fazer do cardápio um disfarce, pra fazer do cardápio um objeto capaz de escamotear seu objetivo - que não é exatamente escolher um determinado prato.
O gordo não é movido pela fome ou pelo desejo de um filé, de um cacio e pepe, de uma sopa.
O gordo é movido pela inveja.
Pela mais crua e condenável inveja.
Ele vê passar o steak au poivre para uma mesa qualquer e, subitamente, tem início a vergonhosa sialorréia do gordo. Ele aponta, sôfrego e arfando, para o filé alheio. E geme:
— Quero aquilo! Quero aquilo! - e as poças de baba ensopando a toalha.
Podem reparar (reparem mesmo, dediquem-se ao exercício) nos gordos.
Eles abrem o cardápio mas os olhos ficam como periscópios, por cima do cardápio, em busca do que sai da cozinha.
E apontam - desavergonhadamente, apontam - para o alvo da condenável cobiça.
As mãos gordas, os dedos inchados, tremem apontando para o que querem - repito, não por desejo, mas por inveja.
O pudim sai da cozinha, o gordo está cortando o primeiro naco de seu bife mas geme diante da imagem do doce coberto pela calda escura.
— Quero esse pudim! Quero esse pudim! Guarde um desses pra mim! - diz o poeta obeso.
Era o que eu queria lhes dizer sobre os gordos e as gordas em restaurantes.
Sim, estou acima do peso - logo, sou um deles (mas não cometo o pecado a que aludi).
Não, não sou gordofóbico.
O QUINTO ANIVERSÁRIO DELE
Leonel esperou ansiosamente pelo dia de sua festa de aniversário.
Quatro dias depois da data exata de seu aniversário, 31 de maio, lá fomos nós pra casa de festa que contratamos para comemorar a quinta volta do ponteiro do maragatinho.
Foi entrar e - não chega a ser uma novidade em se tratando de mim - caí no choro.
Acho que poucas vezes o vi tão flagrantemente feliz. Deu gosto de ver. Estacou diante do bolo, reconheceu seu nome, abriu um sorriso luminoso, saiu em disparada em meio à casa ainda vazia e correu brinquedo por brinquedo, subiu e desceu escadas, corria, e corria, e corria, os olhos sorrindo, os braços abertos, um arremesso violento em direção ao passado dentro de mim, eu o abracei e reafirmei, de mim para mim, o assombro que é o amor por um filho.
Não canso de repetir: ele é muito mais do que sonhei pra mim.
Eu tinha, ali, naquele momento, a idade dele.
Usava calça curta, camisa listrada, sandálias, ouvi o farfalhar dos leques da minha bisavó, o perfume da minha avó, as gargalhadas das mulheres-fantasmas da minha infância.
Elas estavam ali, todas elas.
O matriarcado que me marcou pra sempre.
A bisavó que Leonel não conheceu e todas as antepassadas que me mimaram de um jeito que até hoje me dói, de tão bonito que era.
Havia cerveja na festa mas eu levei uísque.
E ao me servir a primeira dose, novo arranco em direção ao passado.
Não sei se já lhes contei. Se já contei, conto de novo. Se não contei, eis a confissão novidadeira.
O som mais remoto da minha infância era o que eu ouvia todos os dias (ou quase todos os dias, tudo é relativo demais quando se tem 2, 3 anos de idade) quando no colo de minha mãe. De olhos fechados ou de olhinhos abertos, mirava o que estivesse à minha frente (a janela, uma parede, o que fosse), a cabeça apoiada no ombro esquerdo de minha mãe, e ouvindo aquele guizo de cobra, aquele chacoalhar que só mais tarde, anos mais tarde, fui descobrir se tratar do som de muito gelo no copo alto com bastante uísque.
Porque um dia fui me servir de uísque (prefiro os copões, baixos, aos altos). Pus bastante gelo. Servi-me do uísque. E chacoalhei o copo.
Chorei copiosamente, me lembro como se fosse hoje, durante muito tempo, enquanto sorvia o Teacher´s, que era o preferido do meu avô, pai de minha mãe.
Era o que eu queria lhes contar.
SAVOIR-FAIRE
Taí um troço que eu tenho, herança direta de minha mãe.
Tem a ver um pouco com o que lhes disse mais acima:
“E eu - quem me conhece sabe, quem me lê sabe - não concebo viver longe dela, a emoção. Eu a fomento. Eu preparo o terreno pra que ela chegue mais bonita. Eu arrumo a cama pra que ela se deite. Eu canto pra que ela fique mais tempo comigo. Eu a seduzo pra que ela me queira pra sempre.”
Se a tarefa que me é dada é, de certo modo, inglória, trato de fazer tudo ficar mais bonito pra que eu até me divirta fazendo o que em tese não seria nada agradável. Ao longo desses pouco mais de 54 anos fui até o centro da Terra algumas vezes. Visitei o Reino da Morte alguma vezes. Sofri alguns muitos revezes, enfrentei muita gente peçonhenta que, com a graça dos deuses, sempre reconheci no primeiro cruzar de olhos. Nunca me enganei, Ifá confirma.
A vida é bonita, e viver é bom demais (como nos dissemos com intensa freqüência [jamais abandonarei o trema], eu e minha amiga amada, Marianna Araujo), justamente porque é cheia de surpresas, cheia de momentos inesperados, de momentos difíceis, de desafios que parecem, muitas vezes, intransponíveis.
Tô diante de um deles - por conta do que há de novidade e porque o momento requer sabedoria, paciência, frieza, cabeça fria e coração tranqüilo.
Porque é tudo, e será sempre tudo, por amor.
Não vai ser diferente dessa vez.
E Ogum e Exu não vão me abandonar nem por um segundo, que eu sei.
Até.
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