Ando, quem me lê e me acompanha sabe, num momento Kátia, a cega - não está sendo fácil (como lhes contei aqui e lhes mostrei aqui). E não está sendo fácil por muitas razões, todas elas agravadas mais recentemente por uma percepção brutal: a saudade que ando sentindo dos meus amigos que morreram. Morreram. O que significa dizer, não custa ser óbvio, que não posso mais vê-los, ouvi-los, tocá-los, farejá-los, trocar meia-dúzia de palavras com eles… e é isso. A finitude é uma bigorna que pesa sobre nós sem qualquer possibilidade de aliviar a barra. A gente pode temporariamente esquecer do peso da bigorna. Mas a bigorna jamais desaparecerá.
Quero, sobre isso - finitude - lhes contar uma história que ainda não contei publicamente.
E contando essa história, falar sobre Aldir Blanc, uma de minhas maiores e mais brutais saudades.
Corria o mês de julho de 2011.
Dani havia acabado de morrer (falei sobre sua morte no blog que eu mantinha à época, na madrugada do dia 10, pouco depois de seu fim, aqui), eu fumava cinco maços de Carlton, passei (tenho a memória muito vaga dessa fase) dias trancado dentro do meu quarto (que era nosso) fumando e bebendo desbragadamente.
Lembro de um dia em que a Leinha, que trabalhava lá em casa (também já morreu), bateu na porta do quarto e disse:
— Edu, seu Aldir quer falar com você.
Peguei o telefone e ele foi direto (e já estou a chorar porque ouço, enquanto lhes escrevo, sua voz inconfundível):
— Edu, meu chapa. A menina aí me disse que você está há dias trancado no quarto só pedindo a ela pra repor o gelo do balde, pra comprar cigarro e uísque, pra limpar o cinzeiro… qual que é, Edu? Escuta. Se você continuar com isso você vai morrer e, me ouça!, você não vai encontrar a Dani porque não tem vida após a morte, porra.
Ele gritava, era enfático. E continuou:
— Se você quiser mesmo morrer, siga nessa. Mas se você quiser viver, Edu, anota dois telefones que eu vou te dar… - e eu já guinchava de chorar enquanto buscava papel e caneta.
Aldir me deu dois telefones e disse:
— São duas pessoas, uma mulher e um homem, dois psicanalistas em quem confio cegamente. Você precisa falar, Edu, falar, falar, falar, falar…
Desligamos.
Liguei pro primeiro número. Ele estava viajando, só voltaria ao Brasil dali a uns dias.
Ela me atendeu e disponibilizou um horário pro dia seguinte: fiquei com ela por pouco mais de sete anos e, efetivamente, atribuo minha sobrevivência a tudo o que vivi ali, dentro daquele espaço que construímos, os dois.
Depois fui atendido por outra mulher.
Depois por outra, quando enfrentei um tranco maior, mais fora da curva - e foi igualmente importante pra que eu sobrevivesse e atravessasse com relativa segurança o mar revolto que bateu no meu litoral.
Estou, há algumas semanas, sendo atendido - pela primeira vez - por um homem.
É quem tem ouvido, seguidamente, sobre essa saudade que tem me corroído e me consumido de maneira (repito a palavra porque é, de fato, a que melhor se adéqua ao que se passa) brutal.
Eles, os meus fantasmas, os meus ídolos, os meus amigos, meus melhores conselheiros, desapareceram todos. Estão mortos. Vivos, como viva está minha segunda mulher - a que morreu, ao contrário da primeira que, estando viva, morreu há mais de vinte e quatro anos - mas infelizmente mortos.
E estou, por conta disso, também, mais sozinho do que nunca.
Sem conhecer a solidão, e eu espero me fazer entender.
Mas só.
Brutalmente só.
Mas vamos em frente porque nem tudo está perdido.
Os registros que tenho, muitos, me salvam em muitos momentos.
A última vez em que nos vimos, eu e Aldir, foi no dia 27 de abril de 2018 - dia do meu aniversário.
E que saudade, a que tenho dele.
De seus telefonemas diários.
De suas confissões.
De seus conselhos.
Chama, Aldir!
OS GOLS MAIS BONITOS
Sugiro que dêem play antes de seguirem lendo.
Desde a primeira vez que ouvi essa canção, novamente como uma bigorna uma certeza abateu-se sobre mim: é das mais bonitas canções sobre a amizade, a verdadeira, troço cada vez mais raro.
Há, inclusive, uma história que envolve essa canção e Luiz Antônio Simas.
Estávamos vivendo a pandemia - um período tão trágico que, tenho isso como certo, ainda não dimensionamos tudo o que enfrentamos.
Morena tratava um câncer, tínhamos muito medo, e eu - lembro-me vivamente disso - estava a caminho da casa de meus pais levando Leonel comigo.
Pus pra tocar Três por acaso no carro e danei de chorar sozinho, Leonel na cadeirinha no banco de trás, e bati o telefone pro Simas.
Disse a ele dos meus medos, agradeci a ele por sua presença na minha vida, ficamos ali alguns minutos falando sobre os gols mais bonitos pela linha de fundo.
Chegando na casa de meus pais, fui fuxicar minha caixa de e-mail a fim de tatear o começo da minha relação de amizade com Simas. E achei mensagam dele de abril de 2009, nos conhecíamos há pouco mais de quatro anos.
Tanta beleza nisso tudo.
Daí fico, agora, pensando nisso: meus amigos, os mais antigos, os mais sólidos, estão todos mortos. Mas a vida me foi, e me é, sim, generosa.
Os amigos e as amigas não me faltam.
Quem me tem faltado sou eu mesmo.
Mas eu vou voltar.
Porque - repetindo - não vai ser agora, franca e sinceramente, que o espetáculo vai parar.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, o texto A morte e as mortes com Blanc, publicado em 13 de maio de 2020, aqui. Conta mais uma história real que vivi ao lado de Aldir Blanc e de Marcelo Vidal, e de dona Helena e Ceceu Rico, pais do Aldir.
Uma história que tem um quê de trágico mas de uma beleza incomensurável, que dá bem a dimensão da mágica blanquiana, que foi capaz de letrar os últimos dias de vida da própria mãe.
“Há oito dias que o ar está ainda mais irrespirável no Brasil. Há oito dias cravou-se em mim uma certeza de forma absoluta: meu celular nunca mais vai tocar com o nome Aldir Blanc piscando na tela, o que acontecia diariamente, praticamente todos os dias, desde 1995. Conheci Aldir, de ser apresentado, em 1994. Mas foi a partir do ano seguinte, 1995, que passei a receber ligações diretamente de seu bunker, na rua Garibaldi, a última delas no dia 08 de abril desse inacreditável 2020.
Há oito dias que penso em escrever o que escrevo agora – até mesmo como uma forma de aliviar quem tanto maldisse as condições de sua morte, as condições de sua despedida (que não houve, salvo para a mulher, duas das filhas e uma das netas), a falta de homenagens e que tais. Houve, é verdade, o inesquecível gurufim virtual promovido pela turma do Bip Bip, capitaneado pelo Prata, mas sem o corpo presente, condição de um gurufim de verdade.
E lembrei-me, enquanto pensava exatamente no que escrever, de dois momentos que me marcaram muito, talhados por ele, pensados por ele, o Bardo da Muda.
Estamos em 2002.
Toca meu telefone logo cedo, e é o Aldir:
– Edu, você tem algum amigo médico a quem possa pedir um troço, certo de que ele não te diria não? Tem que ser médico, preciso desse cara todo de branco, ainda hoje pra…
– Serve dentista? Tenho um amigo que jamais me negaria um pedido.
Resumo da ópera.
Pouco antes das cinco da tarde eu e Vidal, meu amigo mais antigo, ele todo de branco, estávamos bebendo Jack Daniel´s com o Aldir em seu escritório. Uma garrafa inteira depois tomamos a direção da Maia Lacerda. Aldir foi, do banco de trás – eu dirigindo, Vidal de carona -, repassando os detalhes com o Vidal.
Tomamos uma cerveja no botequim ao lado do edifício onde viviam dona Helena e Ceceu Rico, pais do Blanc.
Subimos.
Ceceu abriu a porta tenso. Aldir apresentou o médico:
– Doutor Vidal, uma sumidade.
Tomamos o rumo do quarto do casal.
Vidal examinou dona Helena, fez festinha em seu joelho (seguindo à risca o roteiro blanquiano), ergueu-se, pôs as mãos no ombros do Ceceu e disse o texto:
– Dona Helena está ótima, seu Alceu, ótima!
Saímos tendo deixado Ceceu aliviado e dona Helena com a expressão menos carregada, ela que morreria no dia seguinte.
Aldir ligou pra me dar a notícia, me mandando (de novo) agradecer profundamente ao Vidal por conta da última noite da mãe com alguma dose de esperança, que ele atribuía ao prognóstico dado pelo Vidal depois de muito uísque e cerveja.
Estamos em 2015.
Durante o mês de maio fui alguma vezes ao Hospital da Beneficência Portuguesa, na Glória, pra visitar o Ceceu – sempre a pedido do Aldir.
Até que acordei, no dia primeiro de junho, com um telefonema dele:
– Edu? Meu pai morreu.
Eu ainda começava a lamentar quando ele emendou:
– Mas um papa-defunto seqüestrou o corpo.
– Oi?!
– É, tá levando meu pai pra Belford Roxo pra dar banho e o cacete, pra só enterrar amanhã, depois do velório. Nem fodendo, Edu! Quero enterrar meu pai hoje, sem velório, sem missa, sem porra nenhuma!
Inteire-me rapidamente do ocorrido e tratei de traçar um plano pra agilizar o enterro praquele mesmo dia. Peguei com a Mary o telefone da funerária que, autorizada por ela, levava Ceceu pra Belfort Roxo com tudo acertado pro velório e enterro no dia seguinte. Liguei pra funerária, e Aldir me ligando sem parar pra saber de tudo. A funerária ligou pro celular do motorista que levava Ceceu pros preparativos. O motorista me ligou. Acertamos preço pra que ele desse meia-volta e tomasse o rumo do cemitério em Botafogo. Cheguei cedo no São João Batista, onde fica o jazigo da família e obtive sinal verde pro enterro no mesmo dia às quatro da tarde. Fui dando as notícias ao Aldir, que vibrava:
– Eu sabia que tu ia resolver essa porra!
Pouco depois das três chegou o corpo.
E pouco antes das quatro, Mello Menezes, Mary, filhas, netas, Maneca e ele, Aldir – com um sorriso de canto de boca que não esqueço.
Aldir carregava um isopor cheio de gelo e cerveja. Estendeu-me uma, deu-me um puta abraço, deu de se despedir do pai, ali mesmo, na entrada do cemitério, apontava pra mim e repetia:
– Eu sabia que tu ia resolver essa porra!
De 2015 em diante, muitas vezes – muitas vezes! – Aldir fazia a blague:
– Edu, quando eu morrer quero que você providencie meu enterro exatamente como foi o do meu pai.
Eu ria, mandava ele à merda, e dizia que estava ali um pedido impossível de atender. Que ele era Aldir Blanc, que quando chegasse o dia, que haveria de demorar muito, o Rio de Janeiro e o Brasil promoveriam uma roda de samba de escol em cada esquina. Os bares ficariam cheios, os camelôs fariam a festa, as baianas venderiam pastel como nunca dantes e faltaria gato pra tanto churrasco. Falanges e mais falanges baixariam nas porta-bandeiras e o furdunço não teria hora pra acabar. Ríamos sempre, mas ele sempre voltava ao assunto.
– Você se vira, mas nem fodendo que eu quero velório!
Aldir era bruxo.
Letrou a morte da mãe.
Letrou a morte do pai.
Escreveu o roteiro de seu encantamento.
Despediu-se como quis e eu não pude nem fazer um último carinho naquela testa. Filho da puta!”
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
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UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, a playlist que montei, há umas semanas, no Spotify.
Nas últimas edições eu já indiquei a playlist a vocês, que me lêem.
Mas eu a incrementei.
Ei-la; ela está aqui ou, se preferir, ouça já!
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e traz as canções que mais gosto e que têm a cidade do Rio de Janeiro como referência - e ela está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
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