SAMBA DO TRABALHADOR EM SÃO PAULO
ou de como o Pirajá vira uma catedral em dia de Moacyr Luz
Antes de entrar no assunto que dá título à newsletter de hoje, permitam-me uma pequena volta ao assunto que abordei na semana passada, aqui.
Uma considerável parcela dos meus poucos mas fiéis leitores me escreveu condoída com a imagem do menino que construí para que fosse possível compreender um de meus dramas íntimos e particulares (que eu, um pavão, transformo em dramas públicos desde que comecei a escrever).
Mas é como lhes contei: nasci, na Tijuca, em 27 de abril de 1969. Fui o primeiro filho de um casal de classe média baixa, mais baixa do que média, e eu sei disso porque meu pai me dizia uma frase com uma freqüência tão intensa que só eu sei o quanto de culpa ela me incutia a cada audição:
— Quando você nasceu, Eduardo, eu gastava, só com o aluguel, mais do que eu ganhava de salário. Mais do que eu ganhava de salário!, só com o aluguel!
E essa frase era dita em tom soturno, grave, seus olhos cravados nos meus, fazendo com que eu fosse uma criança muito saudável emocionalmente.
E eis a cena mais citada por quem me escreveu: eu chegava da escola e ia pro banho.
Papai entrava já quase no final, a toalha na mão, o Shelton Light aceso na outra, ele me punha de pé sob a tampa do vaso sanitário e, enquanto me enxugava, repetia a ladainha:
— Sabe que eu pagava mais de aluguel do que o que eu ganhava de salário quando você nasceu, não sabe?
Invariavelmente eu ficava mudo - tremia, bem me lembro, e ficava de cabeça baixa olhando pros meus próprios pés.
Ele erguia meu queixo com uma das mãos e dizia, sádico:
— Sabe ou não sabe?
O sei que eu dizia me dói até hoje.
Porque, além de tudo, ele gargalhava quando me percebia humilhado diante dele.
Contei-lhes também sobre a primeira visita que meu pai fez a seu único neto, Leonel.
Chegam ele e mamãe juntos à maternidade.
Ela quase me atropela de tanta emoção. Dá-me um abraço, um beijo (lembro-me do beijo, molhado, uma mistura de baba e lágrimas), até que ela me empurra e invade o quarto em busca do neto.
Meu pai, não.
Meu pai estaca diante de mim e me olha fundo nos olhos.
Subitamente sou levado de novo ao banheiro da minha infância.
Estou de pé sob a tampa do vaso sanitário de louça azul, como o azul dos azulejos do banheiro do apartamento do sexto andar do Edifício Jureva, número 90 da São Francisco Xavier.
Tenho então, no corredor da maternidade, uma espécie de visão, vejo uma miragem, uma toalha imaginária nas mãos do meu pai, ele olha com nojo pra camisa do Flamengo que está diante da porta do quarto.
Segue mudo. Segue cravando os olhos nos meus. Até que diz, entre dentes, os dentes rangendo, a voz trêmula, um fio grosso de baba que lhe pende dos lábios:
— Ele vai ser Vasco.
A frase que ele esperou 44 anos pra dizer diante de mim - para entender o porquê disso, leia aqui.
E entra no quarto sem me dizer mais nada, sem um abraço, sem um mísero aperto de mão, sem um oba ou um olá qualquer.
Meu pai faz 80 anos em janeiro do ano que vem.
Guardem essa informação.
Em breve debruçar-me-ei sobre a efeméride.
SAMBA DO TRABALHADOR NO PIRAJÁ
O Samba do Trabalhador, no Andaraí (no Clube Renascença), é mais uma das invenções do Moacyr Luz que deu certo (e continua dando, diga-se).
Falando nele, Moa, e antes de me ater ao assunto principal, quero aqui reproduzir um texto que escrevi em abril de 2017, a pedido da produção de um show que ele fez em São Paulo. Ei-lo:
“Moacyr Luz nasceu em Jacarepaguá, em 1958, na rua Barão e entre os 2 e 3 anos de idade foi morar na rua do Chichorro, no Catumbi, época da qual guarda a primeira visão de que se lembra: ele, com três anos de idade, e o avô, músico da Banda do Corpo de Bombeiros, o ensinando a escrever música. Foi no Catumbi, na zona norte do Rio de Janeiro - cidade que se confunde com sua obra - que começou essa relação indissociável entre o compositor, a música e a zona norte da cidade.
"(...) a zona norte é feito cigana lendo a minha sorte...", escreveria anos depois Aldir Blanc, um dos principais parceiros de Moacyr.
Se o avô paterno de Moacyr foi quem apresentou ao neto a música, foram seus avós maternos que o apresentaram aos mercados de rua - ambos eram feirantes.
Moacyr morou ainda em Bangu, em Copacabana, no Méier, no Grajaú, na Muda (um pedaço sagrado da Tijuca), mas notabilizou-se por um fenômeno marcante em sua carreira, uma característica muito forte, um traço de sua personalidade: Moacyr sempre vergou o espaço e o tempo na direção da zona norte - a cigana.
Aliado a esse outro traço, um talento dentre tantos que carrega: o de ser agregador. Começou, a certa altura, a fazer reuniões quinzenais em sua casa, já na Muda, zona norte, na rua Garibaldi (no mesmo prédio em que mora Aldir Blanc até hoje), para onde iam Guinga, Fátima Guedes, Leila Pinheiro, Selma Reis, Oscar Castro Neves, Paulinho Pinheiro, Sérgio Natureza, Chico César, Lenine, Dudu Falcão, Beth Carvalho, Leny Andrade, Cláudia, gente que ia lá só pra tocar, cantar, mostrar música nova.
Foi numa dessas reuniões que mostrou "Saudade da Guanabara" quando eram apenas suas a música e a letra, samba que já cantara, muitas vezes, no Caras & Bocas, botequim na Tijuca - zona norte - que ganhou fama já por conta do poder agregador do Moacyr.
Dessa primeira versão, Moacyr lembra apenas dos primeiros versos: “Eu sei / Que o silêncio da madrugada / Faz a gente chorar por nada / Faz um homem sofrer de amor / Chorei / Com saudade da Guanabara / Meia-noite era noite clara / Meio-dia era o meu cantor".
Beth Carvalho disse ao Moacyr que o samba era ótimo, mas a letra nem tanto. Até que um dia Moacyr, com Paulinho Pinheiro e Aldir em casa, mostrou o samba e pediu uma letra. Aldir subiu e desceu meia hora depois com a primeira metade pronta. E no final do dia, por fax, Paulinho Pinheiro mandou a outra metade daquele que se tornaria hino afetivo da cidade do Rio de Janeiro. Foi feita na Tijuca, zona norte.
Moacyr Luiz inventou o Bar da Dona Maria, na rua Garibaldi, na mesma rua em que morava, um bar que não existia… Não tinha nem queijo, não tinha nada! Mas teve visita de Paulinho da Viola, de Luiz Fernando Veríssimo, de Beth Carvalho, de gente que vinha de todos os cantos da cidade pra ver mais aquele sonho do Moacyr virando realidade.
Ali, no Bar da Dona Maria, Moacyr inventou o bloco “Nem Muda nem Sai de Cima”, que mudou a filosofia da Tijuca - as palavras são do próprio Moacyr.
A Tijuca, que ficava entregue às baratas no Carnaval, quando tijucano tinha que ir pra Região dos Lagos ou atravessar a cidade pra brincar em outros blocos, Simpatia, Barbas, quando não havia a menor possibilidade de ficar por ali...
Moacyr, ao lado das outras pessoas que pensaram o bloco, criou a necessidade de que o enredo falasse da Tijuca ou de um tijucano, e isso começou a recriar um sentimento diferente no bairro. Começava ali essa história do cara achar bacana falar do bairro, do Rio Maracanã, do Paulo Emílio, do Vavá…
E esse sentimento - o amor arraigado do carioca pela sua cidade - que cresceu e se solidificou por diversas razões (que não cabem agora), deve muito ao Moacyr Luz, que incansavelmente, como reza a letra do samba, tira, dia após dia, "as flechas do peito do meu padroeiro".
Na mesma rua Garibaldi, Moacyr - voltando no tempo, indo, sabe-se lá, ao encontro dos avós maternos, - deu de reinventar a feira. Cooptou um feirante, arrendou uma barraca e passou a fazer, sempre às sextas-feiras, às margens do rio Maracanã, uma reunião de amigos que, como acontece com tudo onde põe as mãos, virou evento de proporções olímpicas.
Tinha uca, açúcar, cumbuca de gelo e limão, camarão comprado e frito na hora, ostras praticamente vivas, jiló, alho e óleo, uma horda de malucos e de malucas que passavam as manhãs e atravessavam os começos das tardes em torno dele, dono absoluto do pedaço, anfitrião daquela barraca, mais um degrau na trajetória zona norte do Moacyr.
Moacyr foi virando, aos poucos, "o embaixador dessa cidade", título que Paulinho Pinheiro deu a Pixinguinha em letra (comovente) feita para samba do Moacyr.
E foi mesmo: São Paulo passou a reverenciar o Moacyr como embaixador de São Sebastião do Rio de Janeiro, e ele passou a freqüentar cada vez mais a cidade injustamente carimbada como "túmulo do samba". Fez do Bar Pirajá, a "esquina carioca" em São Paulo, uma espécie de bunker seu. Ia pra São Paulo levando o violão e, junto com ele, além das seis cordas, os seis postos de Copacabana - "do um ao seis" - e a zona norte, sempre ela, regando cada pedaço por onde passava pra São Paulo ganhar novo alento - e ganhou, gerou frutos, e não por outra razão é o segundo convidado da série "O Samba na Roda", depois da estréia com o mestre Wilson Moreira, também seu parceiro.
Moacyr também sonhou o Samba Luzia, que hoje é realidade, às margens da Baía de Guanabara - foi quem plantou a primeira semente, que germinou.
O Renascença é um fenômeno. Foi de novo Moacyr quem sonhou aquele encontro entre músicos, às segundas-feiras, e que se transformou naquela loucura que o Andaraí - zona norte! - vive semana após semana, com mais de mil pessoas em volta da mesa que comanda, como se fora, ele próprio, o anjo da velha guarda que cantou sobre verso de seu mais fiel parceiro, Aldir Blanc, abençoando a rapaziada que divide com ele a alegria daquelas tardes.
Mais outra prova de que Moacyr Luz faz das suas para torcer a trilha do samba para a zona norte da cidade? O Samba da Ouvidor, realidade também consolidada pela liderança de Gabriel Cavalcante, tijucano de escol, dileto seguidor da luz do Moacyr, ele próprio já com luz própria, começou com as suas bênçãos. Num dia 16 de setembro de 2006, tendo como testemunhas não mais do que 10, 15 pessoas, Moacyr desfiou sua obra durante uma tarde inteira.
Já escuro, sol posto, a pedidos acabou por reencenar ali um número somente testemunhado pelos felizardos partícipes daquelas reuniões indescritíveis em sua sala-botequim na Muda, cantando a canção que fez sozinho, música e letra, pra seu pai. "Luzes acesas na minha memória, escuto o silêncio e sinto saudade da voz de meu pai...".
Os presentes sentiam que Moacyr, uma vez mais, estava plantando algo que brotaria forte pra fazer História. Seguiu cantando: "Luzes acesas, mãos tão tremidas, movem o curso da minha vida...", e fincou-se em cada um a certeza de que Moacyr não é mero espectador do curso de sua própria vida e da vida da cidade que ajudou a reerguer. Moacyr, como ferreiro, torceu o tempo, torceu as ruas, torceu os morros e a geografia da cidade pra mover, ele próprio, o samba para a zona norte da cidade, e dali para todo o Brasil, que reconhece nele o Embaixador da mui amada e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.”
Fato é que, seis anos depois desse texto, o Bar Pirajá acaba de receber das mãos do prefeito Eduardo Paes, com quem tenho a honra de trabalhar, placa concedida pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro reconhecendo o bar como patrimônio cultural (o primeiro fora da cidade) - uma espécie de embaixada afetiva da cidade mais bonita do mundo.
E justamente o Pirajá promove, já há alguns anos, claro que reconhecendo há muito tempo que o Moacyr exerce, naturalmente, esse posto diplomático, três vezes por ano, a roda de samba do Samba do Trabalhador.
Já estive na roda no Andaraí um sem fim de vezes - perdi mesmo a conta. A primeira vez ainda em 2005, a última há algumas semanas.
Aquilo virou uma Meca: vem gente de todos os cantos do Brasil (e do mundo) pra ver ouvir o Moacyr e a rapaziada que o acompanha há 18 anos: Daniel Neves (violão de 7 cordas), Alexandre Marmita (voz e cavaco), Gabriel Cavalcante (voz e cavaco), Nego Alvaro (voz e percussão), Luiz Augusto Lima (percussão), Nilson Visual (surdo), Junior de Oliveira (percussão) e Mingo Silva (voz e pandeiro).
A mesmíssima roda de samba que acontece no Pirajá três vezes por ano.
Com uma impressionante diferença.
No Rio, onde vive desde que nasceu, Moacyr é personagem incorporado à paisagem cotidiana.
Fora do Rio de Janeiro, figura já deveras conhecida pelo Brasil, o Moacyr - segundo um amigo seu de Manaus (AM) - tem mais que um coletivo de fãs, tem uma seita.
Em São Paulo, e notadamente no Pirajá, o Moacyr atrai, a cada apresentação do Samba do Trabalhador, uma multidão que começa a chegar 3, 4 horas antes pra formar a fila.
Um contexto: o Pirajá não cobra ingresso. A casa abre ao meio-dia e às 09h da manhã já tem gente na fila - que parece interminável.
Eu já estive lá em algumas dessas ocasiões e lhes dou o testemunho: o que acontece lá é catártico.
Valho-me, aqui, de uma imagem usada por meu caro, meu querido e meu saudoso amigo Rodrigo Carvalho no seu Meninos da caverna: Moacyr e seus companheiros reproduzem, a cada roda, a Santa Ceia - só que mais bonita. Ele diz:
“Às vezes é fechar os olhos e respirar fundo. Às vezes é fechar os olhos e respirar fundo numa roda de samba. Já faz tempo que sigo, com humildade, as palavras de Toninho Geraes e Moacyr Luz. Este último, toda segunda-feira, na rua Barão de São Francisco, número 54, no bairro do Andaraí, no Rio de Janeiro, junta menos que doze numa mesa comprida, ergue o cálice e passa a noite na reza do samba, rimando ´coração´ com ´devoção´, falando em Deus, alma, Iansã, Nanã e Xapanã. Não entendo tudo, mas ergo até as mãos para o céu. Desando a beijar e a abraçar os amigos, os amigos dos amigos e até desconhecidos, uma espécie de paz de Cristo no rito da comunhão. Volto pra casa leve, leve. Talvez isso também seja fé.”
Comunhão. Fé. Emoção à flor da pele.
Dessa última vez, 02 de setembro, vi um sem fim de pessoas chorando emocionadas vendo Moacyr comandando o samba. Como o próprio diz, mesmo sem que seus sambas sejam executados à larga por aí, todo mundo canta, todo mundo chega junto, todo mundo comunga daquela mesma fé, daquela mesma luz.
Eu conheço Moacyr há mais de 30 anos e vejo: ainda hoje ele se comove, se embevece e se embriaga dessa mesma emoção que toma conta de quem chega pra mais perto pra vê-lo e ouvi-lo.
A foto acima foi feita pela Marluci, companheira do Moa. Estávamos na laje do Pirajá, pouco depois de sua apresentação no primeiro set.
Ele, cansado, dizia que não voltaria pra cantar mais - o que não seria, em absoluto, um problema.
Os meninos dão conta do recado e Moacyr já tinha cantado durante mais de uma hora desfiando seu novelo sem fim de canções bonitas como a que fez pra seu amor.
Mais um tempo, mais uns brindes, muitas gargalhadas e muitas histórias depois, ele diz:
— Vou descer, vou cantar mais.
Era 02 de setembro.
Era dia de aniversário de Aldir Blanc.
E ele de fato desceu e foi ter com seu povo.
Um troço lindo demais de se ver.
Em novembro tem mais - a última de 2023.
Se eu fosse você, ficaria ligado no perfil do Pirajá (aqui) e trataria de estar lá pra ver.
LUIZ CARLOS TOLEDO
Estive na última quinta-feira, 07/09, no Sítio Alecrim, em Guaratiba, pra rever meu queridíssimo amigo Luiz Carlos Toledo, esse que aparece na foto abaixo, que fiz diante dele, no seu canto preferido da casa, na varanda de seu quarto.
Em 2013, a convite de Abílio Guerra, arquiteto como Toledo, escrevi para a revista de arquitetura, Vitruvius, um texto sobre o domingo que havíamos passado lá - que a bem da verdade foi um texto sobre ele, o nosso anfitrião. Eis o texto (que pode ser conferido aqui também).
“Eu não o via desde 26 de dezembro de 2009, quando estive em seu sítio, um paraíso encravado na Ilha de Guaratiba adquirido há mais de 30 anos, para uma espécie de festa de final de ano, que ele é festeiro demais! Luiz Carlos Toledo, simplesmente Toledo para a grande maioria das pessoas, eu conheci em 1987, quando ingressei na faculdade de Direito e comecei a namorar sua filha mais velha, Andrea. O Toledo foi, tenho essa forte impressão hoje, o primeiro arquiteto que conheci. Ele passou a ser, para mim, naquele momento, o pai da minha namorada e o primeiro arquiteto que conheci. Dominador absoluto do espaço, um craque que faz da vida uma prancheta na qual desenha os sonhos que sonha em voz alta (Toledo é também um exímio contador de histórias, herança direta do pai, Aldary Toledo, pintor, desenhista, arquiteto e a quem também tive o prazer e a honra de conhecer), o Toledo passou, com o passar dos anos, a ser e a representar, na minha vida, muitas outras coisas. Não à toa costumo dizer que, ao lado de Aldir Blanc, figura no panteão dos meus orixás vivos. O namoro com sua filha terminou em 1990, eu me casei em 1994, separei-me em 1999, casei-me de novo no mesmo ano, fiquei viúvo em 2011 e casei-me há pouco, no final de 2012, pela terceira vez. Durante a travessia desses mais de 26 anos, e enfrentando toda a sorte de intempéries que o tempo inevitavelmente vai nos apresentando enquanto passa, minha relação com o Toledo só fortaleceu, ganhou fundamentos e hoje está assentada num emaranhado de histórias que nenhum de nós dois sabe, a bem da verdade, se de fato aconteceram – até porque muitas delas foram como mágicas, como mentiras transformadas em verdades inabaláveis, como projetos de um arquiteto bem-sucedido.
Vivi muitas histórias com ele e sempre embevecido ouvi outras tantas que tinham como personagens seu avô Quirino, seu pai – o velho Aldary –, Portinari, Drummond, Sérgio Sampaio, Elis Regina, Eloir de Moraes, Mário Ferrer, Celso Brando, e mais uma coleção de malucos e de malucas, muitos dos quais eu conheci – mais uma das sortes que a vida me deu.
O Toledo – e eu desconfio que nem ele mesmo ao certo saiba disso – foi ganhando, com o passar dos anos, uma função importantíssima na minha vida. Foi meu confessor, por vezes meu confidente, meu conselheiro, um pouco meu ídolo, dono de uma vida fascinante, e eu estava (estávamos, a saudade era confessadamente recíproca) disposto a revê-lo já há algum tempo. Foi por isso que, no segundo domingo de junho, dia 08, despenquei-me com a minha Morena da Tijuca para seu sítio, o Sítio Alecrim, que ele e a Luciana, sua companheira há mais de duas décadas, mantém como refúgio “onde o Toledo, hoje, gosta de receber os amigos”.
Chegamos cedo, como convém a um tijucano de escol. “Eu não imaginei que o seu cedo fosse tão cedo!”, nos disse o Toledo, vindo em nossa direção, e foi bom demais revê-lo, abraçá-lo, estar de novo diante dele.
Sentamo-nos, os quatro – eu, Morena, Toledo e Luciana – sob frondosa árvore e sobre a mesa água com capim limão e uísque. “Já são onze horas? Já podemos beber...”, ele me disse logo depois de apontar para uma escultura impressionante, em madeira, de São Jorge, ao lado da mesa e entre duas árvores igualmente frondosas, de troncos retorcidos, um cenário inusitado. E disse, o Toledo:
- É Ogum, que nos guarda.
Foram chegando os amigos. Abílio Guerra e Silvana, Emiliana, Adriana Filgueiras (filha do também legendário arquiteto Lelé, a quem também conheci pelas mãos do Toledo) e Celso Brando, meu vizinho na Tijuca!
Abílio, que me deu a honra de escrever sobre esse inesquecível domingo, estava ali para conhecer o sítio Alecrim, que a bem da verdade é tão cheio de lendas e de histórias como Luiz Carlos Toledo, a quem conhecera em 2009 durante o Foro Internacional de Arquitetura de Quito, no Equador. Foi durante essa viagem que Abílio começou a conhecer, de verdade, o bom e velho Toledo, que fez "a platéia rir e chorar com sua apresentação sobre a reurbanização da favela da Rocinha no Rio de Janeiro." (relatado aqui).
Ali, em torno daquela mesa, também rimos e choramos, ouvimos muitas histórias, bebemos e comemos muitíssimo bem e partimos todos quando o sol ameaçava descer para fechar o domingo.
Antes, porém, num gesto de generosidade, Toledo levou a todos para o interior da casa – belíssima, como o sítio, ela (a casa) e ele (o sítio) materializados graças à inventividade e à genialidade dele – e ofereceu, a cada um de nós, um desenho de seu pai, Aldary, dentre muitas incríveis mulheres de características e inconfundíveis traços.
Um domingo mágico, quase ficcional – como o personagem que o Toledo é.”
Não lembro se fora a última vez que estive no sítio - há 10 anos, portanto.
Tenho esse registro de nós dois dessa tarde - fotografia de Celso Brando.
Quando o conheci eu tinha 18 anos - ele 44.
Dois homens passaram uma tarde inteira conversando na quinta-feira: eu, com 54, ele com 80 recém completados.
Dividimos pão e vinho. E foi bonito demais. Tão bonito quanto emocionante.
Prometi a ele duas coisas antes de me despedir - faço a confissão pública - e vou cumprir o prometido: levar num mesmo dia, para que ele os conheça, Leonel e Luiz Antonio Simas.
Vai ser, eu sei, mais um dia de não se esquecer.
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
ASSINATURAS DA NEWSLETTER
De umas semanas pra cá um troço me chamou à atenção.
Chegaram assinantes novos que optaram pela assinatura paga (só depois fui ver que a própria plataforma oferece essa possibilidade).
O que me fez pensar que passarei a oferecer material exclusivo para esses assinantes (e isso pode ser vídeos exclusivos, podcasts exclusivos, textos exclusivos…) - a pensar.
Por ora - essa é a primeira edição depois da novidade - somente os assinantes pagos estão habilitados a comentar os textos publicados.
Você que tá chegando agora, considere essa possibilidade.
A casa agradece.
NORMALIZARAM OS ABSURDOS
É possível que seja o avanço da idade, que no meu caso potencializa a indignação com determinadas coisas.
Uma: graças à denúncia de uma conhecida minha fiquei sabendo que um bar desses descolados em Botafogo proíbe (isso mesmo, proíbe!) a entrada de crianças ainda que, é claro, acompanhadas de um adulto responsável.
A Lei, a Lei sim!, proíbe tal conduta.
Confrontado, o bar declarou que são as “normas da casa”.
Eis aqui o perfil do bar (que, é claro, à moda do que há de mais medíocre, descreve-se como sendo uma experiência). Deixe lá seu recado - revoltar-se em silêncio é ajudar a manter o status quo.
Espero que, ainda que à força, as “normas da casa” mudem - sob pena de aplicação das medidas cabíveis ao caso.
A outra: vem aí, 17/09, a primeira partida da final da Copa do Brasil 2023 entre Flamengo e São Paulo, no Maracanã.
O cartão ingresso do programa Sócio Torcedor foi criado para impedir a ação criminosa dos cambistas. Mas os gênios que dirigem o futebol, e é claro que há gente do Flamengo envolvida nisso, decidiram que para essa partida o cartão ingresso não vale: é preciso trocar o voucher enviado por e-mail por um ingresso físico.
Resultado? Ingressos esgotados e cambistas fazendo a festa.
Me meteram num grupo do WhatsApp onde dezenas de cambistas anunciam, com arte gráfica inclusive, centenas de ingressos por preços ainda mais estratosféricos que os oficiais. Dão, é claro, nome, telefone, prometem entrega a domicílio - uma certeza de impunidade surreal.
É inacreditável e inconcebível o silêncio da imprensa esportiva, das autoridades e dos clubes.
Um misto de nojo com revolta, de indignação com desalento.
UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, a playlist que montei, há uns dias, no Spotify.
Na última edição eu já indiquei a playlist a vocês, que me lêem.
Mas eu a incrementei.
Ei-la; ela está aqui ou, se preferir, ouça já!
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e traz as canções que mais gosto e que têm a cidade do Rio de Janeiro como referência - e ela está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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Olha, eu realmente admiro demais o modo como tu traz teus sentimentos, tua relação com o tempo e as tuas memórias. E a gente embarca contigo em cada respiração! Muito legal Edu!