Você que me lê, sabe. Se tem uma coisa que me incomoda agudamente é acompanhar, de perto - e me sentindo impotente - a decadência da linguagem empregada por aí afora. Vê-la, à Língua, definhando e ganhando cara de pastiche deprimente.
A imprensa, a paupérrima imprensa, é onde mais se vê, às escâncaras, a miséria.
Vem o Carnaval e os blocos arrastam. As pessoas, todas, viram foliões. O disco com os sambas de enredo tem a safra analisada pelos críticos. O chão de determinada escola é o ponto forte. Todo mundo é mestre. Um prédio pegou fogo? O incêndio atinge. Os chefs de cozinha fazem apostas no cardápio. Não há mais pedaço de nada: há lasca, lâmina. Houve a pandemia do gerundismo: vou estar fazendo, vou estar ligando, vou estar resolvendo e outros bichos. Antes, a praga do a nível de e do enquanto. Eu ouvia, atônito, frases como eu, enquanto cidadão pagador de imposto e a nível de satisfação, estou revoltado - e mais oceanos de boçalidade que me agoniavam. Agora, e eu poderia tomar o seu tempo, você que me lê, com inúmeros outros exemplos (mas não vou fazê-lo), vivemos a infestação coletiva causada pela palavra experiência.
Escrevi aqui:
“Dirão meus detratores que eu estou velho - e que por isso, por estar velho, quase uma múmia, dou de implicar com tudo o que é novo. Repilo com veemência o que - antecipo - se dirá a meu respeito por conta do que vou lhes contar.
Há uma nova praga (nem tão nova assim, mas é de certo modo recente) que tem me tirado do sério.
Tudo, rigorosamente tudo hoje em dia, é uma experiência (e a palavra desgasta-se mais, a cada vez que é pronunciada).
Dia desses entrei, sozinho (estou apaixonado por mim mesmo, como lhes contei aqui, e tenho amado fazer programas comigo), num restaurante.
Sentei-me. E veio até mim, o garçom.
Não era exatamente um garçom, na verdadeira e clássica acepção da função: era um estudante, um universitário, em busca de, honestamente, arcar com os estudos. Mas há toda uma diferença (chocante) na liturgia.
Estendeu-me o cardápio.
Pedi um Dry Martini e uma água com gás.
Estava lendo atentamente o cardápio quando ele, o garçom, voltou com meu drink e com a água. Ajeitou a taça e o copo diante de mim, e disse:
— Já escolheu, brother? - é assim que eles tratam os clientes.
— Ainda não. - respondi constrangido.
— Posso te dar uma sugestão?
— Claro.
Ele, então, ajeitou-se (fez pose, eu diria). E apontando para uma das entradas, soltou:
— Essa experiência, um tanto cítrica… - eu o interrompi e pedi a conta.
Ele ficou sem entender nada.
Mas ouvir aquilo - experiência - me cortou o barato.
Tudo agora é experiência. Tudo.
Ninguém mais diz que gostou de almoçar no restaurante tal. Emposta-se a voz:
— Vale muito a experiência! As carnes, então…
Vira-e-mexe uma besta complementa:
— Prefiro a experiência marítima. Frutos do mar, peixes…
Mudemos o cenário.
Estava num táxi, semana passada, e mal pude acreditar no anúncio que ouvi (o motorista estava sintonizado numa rádio cujo nome não lembro). O locutor anunciava um plano funerário e encerrava o reclame dizendo que a experiência da morte seria infinitamente mais tranqüila com a assinatura do tal plano garantida.
Beira, reconheçam, o inacreditável.
Um amigo bateu o telefone pra mim por esses dias. Estava preocupado - foi o que ele disse - com a separação (separei-me, vocês que me lêem já sabem). Marcamos um chope. Cheguei na hora marcada, uma rotina, e cinco minutos depois ele adentrou o botequim. Eu estava já terminando o primeiro chope. Ele sentou-se sôfrego. Com uma das mãos, pediu dois chopes. E arfou, eu diria até que com alguma inveja:
— Como está sendo a experiência da separação?
Inventei uma desculpa qualquer e fui embora.
É tremendo o efeito manada: experiência, estou sendo repetitivo de propósito, serve pra rigorosamente tudo.
Beber um vinho, agora, é uma experiência. Comer, idem. O sujeito termina de ler um livro e dá de elogiar a experiência que foi, e a coisa vai ganhando ares de pandemia - ninguém escapa.
Hoje mesmo - escrevo na noite de sexta-feira - fui a uma cafeteria aqui em Copacabana.
Dirigi-me ao balcão e pedi:
— Um pão de queijo e um café coado da casa - como o cardápio, exposto na parede, apresentava a bebida.
A mocinha (visivelmente universitária) redarguiu:
— O senhor não quer viver a experiência de um Hario?
Fui embora sem me despedir (e, claro, sem o pão de queijo e o café).”
Eu fico de fato assombrado que isso - essa pobreza, essa maneira tosca de se expressar - não incomode tanto as pessoas. Daí o fato de eu procurar o espelho com alguma freqüência para perguntar, de mim para mim:
— Por que isso te incomoda tanto, Edu?
Eu nunca tenho a resposta.
Os chamados influencers, a imensa maioria uma besta que não sobreviveria a trinta segundos de conversa olho no olho sem o celular nas mãos para a edição de mais um ~reels~, são grandemente responsáveis por essa metástase: todos têm uma experiência pra indicar, todos narram os próprios vídeos, todos usam as mesmas palavras, é tudo muito modorrento, cansativo, tudo muito empobrecedor.
Dito isso, vamos em frente.
A IMPRENSA
Se tem um troço que eu não sou é saudosista. Eu tenho saudade, muita, e como disse meu orixá Aldir Blanc, é nela que tudo que amei sobrevive.
Mas vamos à imprensa: houve um tempo em que você abria os jornais e lá estavam Nelson Rodrigues, Artur da Távola, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Elsie Lessa, o próprio Aldir Blanc, Fausto Wolff, Millôr Fernandes e outros monstros sagrados.
Hoje, claro, há exceções - e aqui cito nominalmente Álvaro Costa e Silva e Leo Aversa, dois textos que leio assiduamente.
A imensa maioria, porém, é pastiche puro.
Textos que seguem um padrão paupérrimo: quem escreve sobre futebol usa as mesmíssimas expressões (o passe virou assistência, p.ex., é um exemplo), quem escreve sobre gastronomia usa as mesmíssimas expressões, quem escreve sobre cinema usa as mesmíssimas expressões e por aí vamos afundando e convivendo com gente que não pensa, que não tem visão crítica, que não cria… e depois não sabemos porque estamos como estamos (a nível de humanidade, me permitam a blague).
Volto ao tema.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, o texto Desassossego, publicado em 28 de outubro de 2011.
(pra F. E. H.)
“Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá dela, “Aquela rapariga parece um rapaz”. Um outro ente humano vulgar, já mais próximo da consciência de que falar é dizer, dirá dela, “Aquela rapariga é um rapaz”. Outro ainda, igualmente consciente dos deveres da expressão, mas mais animado do afeto pela concisão, que é a luxúria do pensamento, dirá dela, “Aquele rapaz”. Eu direi, “Aquela rapaz “, violando a mais elementar das regras da gramática, que manda que haja concordância de gênero, como de número, entre a voz substantiva e a adjetiva. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.” – Fernando Pessoa, página 362, Livro do Desassossego, editora Brasiliense, 2a. edição
Antes de pedirem a segunda garrafa de cerveja, e quando eu já estava embriagado diante de seus olhos – não por conta da cerveja, parece-me desinfluente dizê-lo, eu bebia no mesmo ritmo que eles – ela deu de citar Fernando Pessoa. Estavam, os dois, em uma mesa na calçada e eu, como de praxe, bebendo de pé, diante do balcão de mármore daquele tradicional bar de pé-direito altíssimo. Era manhã de sábado, de um sábado cinzento, eu estava absolutamente só, pedira uma almôndega acebolada, um dos petiscos mais festejados da casa, e me flagrei, à certa altura, absolutamente absorvido pela conversa daquele casal.
Desde que deixei de fumar que ir-ao-bar passou a ser uma tarefa que me exige certas manobras que visam desviar minha atenção da fissura que, sim, ainda me assalta. Estou já há pouco mais de dois meses longe dos cigarros, mas o problema é que os cigarros não estão longe de mim, estão à minha volta, e todas as fumaças de todos os cigarros parecem gueixas de formas tênues vindo em minha direção, serpentando o ar, sensualmente, em busca de minhas mãos, em busca de meus braços, em busca de meu pescoço, de minha boca, de minha língua… Por isso passei a prestar atenção ao casal diante de mim.
Ele – justificadamente – aturdido diante dos olhos dela (que, mesmo à distância, também me embriagavam). Ela, soberana e evidentemente ciosa da perturbação do companheiro de mesa (não sei, confesso, se ela me percebia – achei, à certa altura, que sim). Ela usava sandálias que deixavam os pés à mostra, as unhas pintadas de branco, as mesmas cores das unhas das mãos, tão lindas quanto os pés, cabelos ora soltos e ora postos num rabo-de-cavalo que ela montava e desmontava (isso também me causou a impressão de certo desconforto) seguidas vezes, e acompanhar os movimento de seus cabelos também me aturdia.
Pedi a terceira garrafa de cerveja no instante em que ele pedia água sem gás, e dois copos, ao mesmo garçom que me atendera.
Estávamos tão próximos, a mesa era tão perto do balcão, que eu ouvia tudo, e eu punha, ali, no ato de ouvir, toda minha atenção. Mas nada – nada! – me chamava mais a atenção do que os olhos dela. Havia um fogo em seus olhos, um fogo de não se apagar, e justamente quando este samba do Gonzaguinha ecoou no interior do bar foi que me dei conta do quão intensos eram seus olhos. Tristes, profundamente tristes, dotados de um brilho que, apesar de ser dia, reluzia como se fosse noite. Ele falava, o pobre-coitado (senti pena daquele homem e não sei lhes dizer o porquê), e ela sempre punha os próprios olhos num horizonte imaginário antes de responder. Eu me embriagava mais – de seus olhos.
Em determinado momento, pedindo outra cerveja, ele pediu também uma almôndega, e eu pensei que me imitava (eu e minha sensação que não cessa de que sou o centro das atenções). Ele serviu-se e depois estendeu a ela, gentilmente, o garfo já servido, e ela mordeu aquele pedaço, fechou os olhos, elogiou, e eu quis imitá-lo. Não podia, por óbvio.
Suas mãos não se encontraram em momento algum – notei também.
Seus olhos, entretanto, os quatro, os olhos dos dois (estou sendo detalhista para lhes dizer de minha aguda atenção), não se perderam um só momento. Eu, ali, era um voyeur clandestino, subversivo, que sorvia com uma ansiedade de adolescente aquela tensão visível que havia entre os dois.
Ele levantou-se, veio até o balcão, postou-se a meu lado e pediu a conta (pensei, num primeiro momento, que vinha tomar satisfações comigo). Enquanto a conta era feita, enquanto ele pagava, ela pegou uma caneta de dentro da bolsa e escreveu qualquer coisa num guardanapo, amassou, jogou no chão – foi a primeira vez que ela me olhou nos olhos.
Quando eles saíram, claro, fui em direção ao bilhete (pensei ser um bilhete, um número de telefone, um endereço de e-mail).
Não era nada disso.
Estava escrito apenas “desassossego”.
Sua letra era linda. Não tanto, entretanto, quanto ela.”
ELIS E TOM, O FILME
Republico de propósito, ainda impactado pela beleza.
Fui ver Elis e Tom - só tinha que ser com você no dia da estréia.
Quase 50 anos depois do lançamento do disco gravado em Los Angeles, chega aos cinemas o filme que conta (e mostra, em imagens inéditas!) os bastidores da gravação de um dos mais icônicos longplays da história da música popular.
É preciso que o filme seja visto e revisto.
É preciso que as novas gerações assistam ao filme para que se deparem com a insofismável verdade: nunca houve e nunca haverá uma cantora como Elis Regina.
Era - quase em tom de provocação - o que eu queria lhes dizer.
Saindo do filme, num movimento naturalíssimo, dei de ouvir (mais e mais e mais) Elis Regina.
E lembrei-me desse vídeo que mostra Elis cantando Cobra Criada em Montreux, em 1979.
Elis cantando um absurdo acompanhada por César Camargo Mariano (teclados), Luizão Maia (baixo), Hélio Delmiro (guitarra), Paulinho Braga (bateria) e Chico Batera (percussão).
Uma aula.
Assistam.
É demais pro meu coração.
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
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De umas semanas pra cá, como venho dizendo, um troço me chamou à atenção.
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Você que tá chegando agora, considere essa possibilidade.
A casa agradece.
UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, a playlist que montei, há umas semanas, no Spotify.
Nas últimas edições eu já indiquei a playlist a vocês, que me lêem.
Mas eu a incrementei.
Ei-la; ela está aqui ou, se preferir, ouça já!
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e traz as canções que mais gosto e que têm a cidade do Rio de Janeiro como referência - e ela está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
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