Vou começar logo com o pé na porta, sem maior prólogo: a foto abaixo é de papai dirigindo sua Variant verde - zero km - a caminho de Cabo Frio, na Região dos Lagos. Um boné preto da Polícia Rodoviária Federal (presente de meu avô materno, alto funcionário do DNER), óculos Ray-ban e um sorriso mais falso que nota de três reais (papai ri muito raramente). Notem que digo falso querendo me referir à plasticidade do sorriso, como máscara, encaixado no rosto exclusivamente para a fotografia (feita por minha mãe, evidentemente, eis que fizeram a viagem sozinhos, papai e mamãe - ou estaria ele sorrindo à larga justamente porque estavam sozinhos, os dois?). Tudo isso porque o sorriso que se vê na foto é inédito pra mim. Vamos em frente.
Papai veste (a foto não me deixa mentir) uma camisa pólo branca e o fundo branco anuncia que o dia já amanhecera - papai sempre saiu pra viajar de madrugada a fim de ver o dia amanhecer na estrada (como lhes contei aqui e aqui).
Eu falei amanhecer e me lembrei de uma história que quero lhes contar.
Amanhecia lá em casa.
Papai já estava de pé desde muito cedo.
E sempre, sempre!, sempre a mesma hora ele descascava uma banana (prata) e dizia em voz alta (sem que ninguém lhe perguntasse nada):
— Vou comer potássio!
Eu tinha - eis o que quero lhes contar - dois, três, quatro anos de idade.
E nunca ouvira meu pai se referir à banana como banana.
Ele estufava o peito e dizia, olhos graves cravados nos meus:
— Potássio!
Eu achava aquilo estranhíssimo (faço a tardia confissão). Mamãe, meus avós, na escolinha, todos olhavam para uma banana e diziam banana. Eu, intrigado, me lembrava do rito matinal de meu pai (um deles, ele é um homem de ritos rígidos, muitos, cumpridos ao longo dos dias) diante da fruta:
— Potássio!
Um pouco mais tarde fiquei sabendo que papai havia se formado em Química, o que para mim, àquela altura, não significava nada. Até que bem mais tarde (1984?), durante as aulas de Química no colégio, ouvi o professor (Lélio) dizer, apresentando a tabela periódica:
— … potássio…
E quando ouvi potássio - lembro-me disso com assustadora vida - fui arremessado em direção ao passado e tive um ataque descontrolado de riso em sala de aula. Lembro-me das dezenas de pescoços virados e das dezenas de olhos voltados pra mim. Eu ria como um possesso por conta da imagem da fruta tropical que me veio à mente e não tive coragem de explicar o que acontecera (fui inquirido pelo professor). Quando parei de gargalhar, coisa de - o quê?! - uns três, quatro minutos depois, disse em voz alta:
— Eu adoro potássio.
Não me esqueço, até hoje, do olhar piedoso de meus colegas, dos olhos de compaixão do professor.
Uma infância, e uma adolescência, bem tranqüila, como se vê.
QUATRO ANOS SEM CIGARRO
Eu temia por isso: retomei as histórias sobre meu pai, um personagem pronto, e as histórias pululam na minha cabeça, fervilham no meu imaginário, quicam diante de mim de dia, perturbam meu sono à noite, e cá estou eu, de novo para lhes contar mais sobre as frases que meu pai, como um mágico, um ilusionista, saca do bolso, da cartola imaginária. O tema agora é cigarro e disso me lembrei porque há coisa de uns dias me lembrei, eufórico, que parei de fumar já tem mais de quatro anos (quem me lembrou foi o Hospício Azul, que muitos chamam de Facebook).
Papai fumava, durante minha infância e grande parte de minha adolescência, de 3 a 4 maços de cigarro ao dia. Shelton Lights, comprados diariamente no Bode Cheiroso, portentoso buteco na General Canabarro, e sempre acompanhados de uma garrafa de água mineral com gás, Caxambu (ou Prata, na maioria das vezes era Prata), e um café. Até que um dia (vamos ao ponto que me interessa) papai resolveu parar de fumar.
Eu não me lembro, nem que queira, de sua decisão, do dia D, de nada disso. Lembro, apenas, de ouvi-lo contar, e já perdi a conta de quantas vezes!, a história da mágica (papai adora dar, a tudo o que conta, um tom sobrenatural) que o fez parar de fumar.
Papai conta que, uma vez tomada a decisão, procurou uma clínica no Flamengo (ele faz questão de frisar o bairro dizendo na praia do Flamengo, número 66), pelo telefone, a fim de marcar hora para uma consulta (a tal clínica prestava-se exclusivamente a um tratamento à base de laser que prometia fazer o paciente parar de fumar). E ele conta, sempre efusivo, que quando ligou não havia hora, não havia vaga. Papai então respira fundo, dá um tom de drama à narrativa e conta que praticamente ameaçou a atendente, prometendo mundos e fundos em troca de um encaixe. E conta que foi atendido. E é aí que começa o espetáculo, aí é que começa o desfile das frases-feitas.
Papai posta-se na cadeira e aponta o indicador da mão direita no alto do próprio nariz, entre os olhos. E diz, sôfrego:
— Ela me deu uma pistolada aqui… – fecha os olhos.
E prossegue.
Leva o indicador ao centro do peito e diz:
— Outra pistolada aqui!
E sai espetando o próprio dedo em diversos pontos repetindo a frase:
— Uma pistolada aqui…
E geme, e gane, e sapateia de orgulho de si mesmo.
Vai daí que vira-e-mexe alguém dá de contar ao meu pai seu drama particular para largar o vício. E meu pai, sempre, sempre!, dá de ombros e debocha do sofrimento alheio. Repete, como um Dom Pedro proclamando a Independência:
— Eu parei com uma pistolada! Uma pistolada!
Daí a pessoa conta que está usando adesivo de nicotina, tomando antidepressivo, tendo crises agudíssimas de abstinência, dormindo mal, tendo toda a sorte de revezes que assola um fumante inveterado tentando largar o vício… e nada disso demove meu pai de seu número:
— Isso não adianta nada!
Ergue-se e, de pé, grita:
— Nada! Não adianta nada! Eu parei de uma vez só, com uma pistolada!
E como sempre, exige a confirmação de mamãe:
— Hein, Pixuxa? Lembra? Uma pistolada!
Mamãe, de olhos baixos, confirma. É a senha para que a narrativa comece.
Era o que eu queria lhes contar. Meu pai, pela mesma razão que repete que não janta, que só belisca (conto sobre isso na seqüência), vive contando, orgulhosamente, a história de sua pistolada – palavra, aliás, que ele inventou para referir-se à experiência quase-esotérica que experimentou lá se vão mais de vinte anos.
PAPAI NÃO JANTA
Já lhes contei aqui, e mais de uma vez, que meu pai é um homem que tem, permanentemente, nos bolsos, frases que ele repete com uma constância rígida. É como o árbitro de uma partida de futebol que, diante de uma falta, exibe o cartão amarelo, o cartão vermelho. Em determinadas situações – eis o que eu queria lhes dizer – lá está meu pai, como o homem de preto, com seu apito imaginário e suas frases exibidas com ares de ineditismo. Os exemplos são muitos…
Mamãe serve sorvete de sobremesa e lá começa meu velho:
— Rápido! Rápido! Sirvam-se antes que vire sopa! Vai virar sopa!
Outra. Você encontrará meu pai na rua, na Praça Saenz Peña, na piscina do Montanha, num restaurante qualquer. Antes do olá, do oba, papai dirá sem que você nada tenha perguntado:
— Hoje eu acordei tarde… – e fixará os olhos nos seus esperando a previsível pergunta.
Daí você perguntará a que horas ele acordou. E ele, numa alegria incontida e até hoje incompreensível para mim, dirá:
— Três e meia! Tarde, tardíssimo!
E outro momento clássico.
Você o encontrará e o convidará para jantar, eis a situação-exemplo.
Ele dirá, no ato:
— Eu não janto. Eu só belisco.
E isso é dito como um mantra. E vez por outra, pobre mamãe, ele dá de cutucar minha mãe exigindo o testemunho:
— Hein, Pixuxa? Eu janto? Eu janto?
Mamãe bufa e faz que não com a cabeça. Daí ele emenda:
— Viu? Eu só belisco.
Lembro-me como se fosse hoje da primeira vez que a Morena testemunhou esse momento. Fomos ao teatro para ver um musical no Teatro Casagrande e havíamos combinado de jantarmos em seguida. E lá, na fila, encontramos papai e mamãe. Foi um efusivo encontro (meu irmão caçula estava com eles) até que eu fiz o convite:
— Depois da peça, vamos jantar?
Mamãe fez que sim, Cristiano disse claro mas meu pai começou a sapatear na Afrânio de Melo Franco:
— Eu não janto, eu só belisco.
Mamãe lançou a ele um olhar de reprimenda, papai bufou e disse:
— Não tem problema, eu fico olhando vocês comerem! – notem a categoria.
Deu-se uma pequena bulha e o Cristiano propôs, para acalmar os ânimos:
— Então não vamos jantar… vamos só comer uma pizza.
E meu pai, inovando sobre o mesmo tema:
— Eu não como à noite, eu só belisco. Vou comer só uma fatia. Só uma! Uma, uma, uma!
Terminada a peça, tomamos o rumo da pizzaria.
E eu tive a impressão de que meu pai, azul-de-fome, cravava os olhos cheios d´água nas pizzas alheias, tamanha a vontade de comer as maravilhas que chegavam à mesa. Mas diante de sua rigidez e de seu caráter implacável, gania com o prato vazio depois de comer sua única fatia, mesmo mamãe perguntando se ele queria mais (era evidente que queria):
— Não, Pixuxa. Eu não janto. Eu só belisco.
Era o que eu queria lhes contar hoje.
JANTAR NO COPA
Uma única vez houve uma exceção.
Foi no dia das Bodas de Ouro dos meus pais.
Eles, os filhos, as noras, dois casais amigos a convite.
Depois de um dia inteiro passado no Copacabana Palace (suítes reservadas para o pernoite), em razão do marco histórico, papai abriu uma exceção e jantou no Cipriani, premiado restaurante do hotel.
No fim, já na hora da sobremesa, mamãe emocionada perguntou se ele havia gostado.
— Prefiro o filé à francesa do Caçador. Mas no almoço. Porque eu não janto, eu só belisco.
Até.
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