Já há algumas semanas, e sempre foi assim, mesmo quando existia apenas o blog (que pode ser lido aqui), que fico aqui, aos sábados, divagando e digressionando, graças aos arremessos em direção ao passado, deitando falação sobre o que vi e que vivi, sob a ótica do olhar assombrado do menino de calças curtas e camisa listrada criado em meio a uma família matriarcal recheada de personagens os mais ricos. E a parentalha, a viva e a morta, fica excitadíssima tecendo considerações sobre isso ou aquilo, sobre um detalhe ou outro, sobre minhas lembranças, e eu sempre acho graça porque fica, a parentalha, me cobrando precisões medidas pelo olhar privado de cada um, de cada uma. É uma prima que diz oh-eu-nunca-soube-que-você-achasse-isso, uma tia que manda mensagem de voz gemendo e dizendo, audivelmente trêmula, ah-meu-querido-que-delícia-ler-suas-memórias, outra tia que discorda mas-isso-nunca-aconteceu-assim, como se eu me importasse, eis a confissão que faço (a primeira de hoje), com a fidelidade do que escrevo ao pensa, a parentalha, sobre determinado episódio, acontecimento, determinada pessoa ou situação. Porque, quem me lê sabe, sou preciso do início ao fim e esses arremessos em direção ao passado são sempre causa ou conseqüência: são a causa das febres que viram palavras que lanço no papel em branco (permitam-me a poesia) ou a conseqüência de vivências diversas que me catapultam, sem qualquer espécie de controle meu, para a década de 60, 70, 80, 90.
E se eu escrevo sobre os meus, eu escrevo sobre todos - disso não tenho dúvida. Dito isso, em frente.
OS SLIDES
Tinha eu, quando tenra idade eu tinha, o prazer de ver e de rever esses fantasmas (alguns deles ainda vivos à época) plasmados numa tela de lona branca que papai e mamãe punham na parede da sala de casa para vermos, de quando em vez, os slides que eles guardavam em centenas de caixas - eram milhares de slides.
Guardavam.
Porque não há mais slides.
Foram todos jogados fora - e, com eles, os registros magníficos que cada uma daquelas películas de filme guardava. Estavam estragados, foi a alegação que jamais me convenceu. Até porque, é como penso eu e meu incorrigível coração acumulado de saudade, valeria toda e qualquer tentativa de recuperá-los.
Mas foi mais fácil, mais simples - estou supondo, apenas, o trágico episódio é tratado por mim como crime insolúvel - colocar uma pedra em cima do que passou para tentar tornar mais leve a vida. Feita mais essa confissão, vamos em frente.
Antes de prosseguir: a foto abaixo foi tirada na casa da Gávea, na Marquês de São Vicente, onde moravam minha bisavó (a elegante dama de negro sentada na primeira fila) e meu bisavô (no alto, no centro da fotografia, cabelo na testa) com amigos, amigas, filhos e filhas.
Vai daí que, dia desses, dissecando mais e mais histórias com gente que me lê (e esse processo de troca de mensagens, e-mails, telefonemas com leitores e leitoras é sempre fascinante), ative-me a dois personagens-fantasmas muito vivos - muito vivos! - na minha memória: meus tios Hique (Carlos Henrique) e Eugênio. O primeiro, filho da minha bisavó, tio e padrinho de batismo de minha mãe. O segundo, seu neto (filho de meu tio Chico, outro filho de dona Mathilde), primo de minha mãe.
Carlos Henrique era advogado - salvo engano meu, o primeiro advogado da família (e único). Minha bisavó tinha especial adoração por ele - adevogado, é como ela o chamava. Morava na rua Marquês de Valença, na Tijuca, num apartamento no segundo andar de um prédio de três andares e sem elevador. Apartamento modesto. Separado da primeira mulher, casara-se novamente com Francis (a quem eu chamava, evidentemente, de tia) e tiveram uma filha, Carla.
Tio Hique fazia mágica (minha memória, por vezes, embaralha a realidade e, quando isso acontece, eu não tenho nenhuma vontade de investigar os fatos, porque entre estes e a minha versão eu hei de ficar sempre com ela, a minha versão). E eu não consigo lembrar - daí o porque de eu ter dito que minha memória embaralha, eu simplesmente não consigo lembrar - se ele fazia mágica por hobby ou por sobrevivência (bem sei que ele não teve exatamente êxito na carreira de advogado, atuou por mais tempo como assessor de um Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que fez, disso me lembro bem, impactante e emocionado discurso pouco antes do enterro do tio Hique, ainda na capela onde aconteceu o velório).
Sei que eu ia bastante à sua casa. E lá encontrava, sempre, meus primos (sempre muitos, minha bisavó teve muitos filhos) e dava-se sempre a mesma cena: todos sentados no chão (de parquete), de costas pra porta de entrada, pra assistirmos tio Hique em ação diante da janela que dava pra Mariz e Barros.
Cartolas. Cartas que ele embaralhava como se fossem minhas memórias. Pombas. Muita fumaça, varinhas, ele de fraque e ao fundo o som dos adultos enchendo a cara na cozinha do apartamento, à esquerda no final do corredor (notem que desenho mentalmente os imóveis porque tenho as plantas de todos eles tatuadas dentro de mim).
Tio Hique não tinha alguns dentes (não usava dentaduras, como minha bisavó), era gordo (forte também), tinha as mãos sempre com aparência de inchaço e usava com muita freqüência (é o uniforme que me vem à mente sempre que penso nele) um safári branco. Eu disse safári branco e quero lhes contar que tio Hique era cavalo de umbanda do caboclo Tupiara (bem bugre, nada a ver com os caboclos mansos dos terreiros-kardec).
Minha bisavó, a quem eu chamava Bia, católica toda vida - daquelas de livro-de-missa e cabeceira lotada de santos e santas - adorava tomar passe de Tupiara, ele riscando o chão do apartamento com o pé como pemba.
A FITA K-7 DO RÉVEILLON
Tio Hique está na foto abaixo. É o que está de óculos, olhos fechados, não duvido nada que a um passo de sair quicando pela sala já com Tupiara incorporado (um clássico das noites de réveillon - como no dia da foto - na Tijuca). A senhorinha de cabelos brancos sorrindo pra câmera é dona Mathilde, minha bisavó. A seu lado, meu avô paterno, Oizer. Uma breve história dos réveillons lá em casa na seqüência.
Meu pai é um sujeito muito obsessivo como já lhes contei aqui e aqui. Encham a boca pra dizer muito obsessivo. Notem como eram nossos réveillons (tive, vocês sabem, uma infância bastante tranqüila).
Quando chegava julho, começo do segundo semestre, papai começava a preparar a “fita do réveillon”. Eu usei as aspas para dar ar solene à fita do réveillon porque era assim que era tratada a fita K-7 que papai punha pra tocar ano a ano na noite do dia 31. Vou explicar.
Papai gravava uma fita (lado A e lado B, claro) de modo a que à meia-noite em ponto (e em ponto para meu pai era em ponto mesmo) tivesse início a canção que era por ele escolhida para marcar a entrada do Ano Novo (essa canção estava sempre no lado A da tal K-7). E isso, essa fita, essa música escolhida, tinha, para a família e para os convidados que se espremiam no apartamento sem ar-condicionado a 50 graus, um quê de mistério excitante.
Qual a surpresa esse ano, Isaac?, dizia um dos presentes assim que entrava no apartamento, já suando em bicas. Ah, é surpresa, dizia mamãe dando saltinhos para provocar a curiosidade. Nós, os filhos (e papai e mamãe, obviamente), sabíamos mas não podíamos revelar por nada. Mas vamos ao que se dava.
Julho. Terminava o jantar. Papai se sentava diante do equipamento de som (no nosso caso era comprado na Veiga Som, uma loja na Barão de Mesquita, a mais completa da zona norte da cidade, filiais no Centro e em Niterói), punha seus fones de ouvido e exigia silêncio dentro de casa (apesar dos fones). Ele precisava gravar a tal fita. E esse processo, a escolha do repertório, a gravação da fita, durava o mês de julho, agosto, ia até meados de dezembro, quando então ele dizia, solene, para os filhos (perfilados) e para mamãe:
— Está pronta!
E qual o próximo passo? Ele cronometrava (não usava relógios, mas cronômetros mesmo, de precisão) o tempo decorrido desde o play (a fita tinha de estar totalmente rebobinada, uma caneta Bic o ajudava a esticar a fita para que não houvesse diferença no tempo) o tempo exato até o início da música escolhida para tocar à meia-noite. Exemplo: dava 22 minutos e 34 segundos (ele fazia o processo todos umas 15, 20 vezes, até ter certeza do tempo exato), o que significava dizer que às 23 horas, 37 minutos e 26 segundos ele precisava apertar o play do toca-fitas, quando então a assistência presente (todos de branco, sempre) fazia ohs e ahs na expectativa da surpresa.
Ano após ano, a mesma sucessão de fatos (e de fotos).
Casa cheia, 50 graus, todos suando, mamãe dizendo ano-que-vem-teremos-ar-condicionado e todos guinchavam de rir da promessa jamais cumprida (eles só passaram a ter ar-condicionado na sala de casa quando mudaram para o Alto da Boa Vista, o bairro mais fresco da cidade).
Muita comida, muita bebida, todos de branco, e aquela fita K-7 que vinha sendo gravada desde julho era posta pra tocar e quando tocava Amigo, com Roberto Carlos (um clássico de todos os anos), todos de mãos dadas em uma roda, e geralmente à meia-noite entrava um som de carrilhões de sinos e era a senha, é meia-noite, e baixava Tupiara no tio Hique, e baixava Tupinambá no papai, e as pessoas já estavam alcoolizadas, e suavam, e mamãe dava de molhar a cabeça de todos os presentes com água do mar que ela e papai recolhiam às seis da manhã (em ponto!) na Praia Vermelha, onde iam jogar palmas brancas pra Iemanjá.
Houve um réveillon em que faltou luz.
Sem energia elétrica, claro, não houve condições do espetáculo da fita K-7. Naquele dia, me lembro bem, nem os caboclos baixaram. E a noite foi triste, tristíssima, até que a luz voltou quando já não havia mais tempo para o ritual. Voltou um pouco antes da meia-noite, é verdade. Mas não a tempo da exibição da tal fita.
— Feliz Ano Novo, Isaac! - minha avó, fingindo alegria com a virada.
— Pra quem, dona Mathilde? Seis meses de trabalho jogados no lixo!
Uma infância tranqüila, como se vê.
TIO EUGÊNIO
Eu disse há pouco que, quando na casa do meu tio Hique, eu ouvia, ao fundo, o som dos adultos enchendo a cara na cozinha do apartamento. Desde moleque, muito moleque, bebida era uma constante nos cenários - nunca, absolutamente nunca, associada a algo ruim. Era sempre sinônimo de festa, de congregação, de arranca-rabo, que fosse, mas com alegria, com balbúrdia. Já contei algumas vezes que, por exemplo, o colo da minha mãe sempre esteve associado ao som do chocalho de uma cobra. Eu levei um bom tempo pra perceber que com uma das mãos ela escoltava minhas costas, eu deitado em seu colo, e com a outra ela balançava o copo de uísque cheio de pedras de gelo.
A casa de meus avós, na São Francisco Xavier 84, tinha, na sala principal, como ponto principal, ponto alto da decoração, um bar que ficava num dos cantos da referida sala sobre uma espécie de soco (e sobre o soco uma pedra mármore branca). Ali, dezenas de garrafas de uísque (vovô só bebia Teacher´s), licores, um de menta que ficava numa garrafa de cristal da qual eu sempre fazia uso às escondidas, licor de jenipapo (que minha bisavó amava), vinho do Porto, um espetáculo. Pausa: minha bisavó sempre me oferecia uma colher de chá de vinho do Porto depois das refeições.
Havia sempre carteado na casa de meus avós, acho que todos os dias, e o cenário era esse: vovó e sua cerveja, vovô e seu uísque, ela no Hollywood e ele no Continental - fumavam muito. Amigos que chegavam e sempre, sempre havia bebida.
Tio Eugênio, vamos a ele, era um dos filhos da minha tia Noêmia e do meu tio Chico (ele, repito, irmão de vovó). Alcoólico, soube bem depois de sua morte (precoce). Era, entretanto, o tio de quem eu mais gostava. Sempre o encontrava na casa de sua mãe, Noêmia, ele casado com minha tia Soninha, uma pulseira de aço onde se lia EUGÊNIO (assim mesmo, as letras em maiúsculo), sempre no pulso, vitimado pela poliomielite quando criança, claudicava. Repito: era divertidíssimo. Aos meus olhos de criança, naquela casa no Engenho de Dentro, tio Eugenio estava quase sempre na cozinha (ou no pequeno quintal que havia nos fundos) diante de uma tina de madeira cheia de gelo em escamas e de garrafas de cerveja. Ria muito, era muito falante, expansivo, carinhoso, tátil, abraçava muito as pessoas, as beijava, sou capaz de ouvir suas gargalhadas se me concentrar demais no redemoinho que me arremessa em direção ao passado.
As histórias esparsas que às vezes me chegam me dão conta do quanto de preocupação e tristeza causara à mãe, seu comportamento com a bebida. À mulher, aos filhos, à família.
Nesse específico caso, uma benção a minha meninice.
De nada lembro.
De nada soube.
Resta, em mim, um travo de cerveja na garganta, a saudade que tenho dele: suburbano, carioca em estado bruto, de bermuda, sem camisa, fumando desbragadamente, a pulseira como guizo no pulso (como as pedras de gelo do copo de uísque da minha mãe), copo sempre ao alcance da mão, uma tremenda gargalhada e um abraço de quebrar-costela.
Estão vivos, vivíssimos!, os dois, tio Hique e tio Eugênio, dentro de mim.
Até.
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