Falta pouco para o 10 de fevereiro, Sábado de Carnaval, o dia da apoteose das apoteoses. Falta pouco para mais um desfile do Cordão da Bola Preta, o maior fenômeno do Carnaval do Rio de Janeiro, uma das minhas maiores paixões (como paixão, também era, o Trem do Samba, do qual lhes falei aqui - e já faço uma pausa para fazer brevíssima digressão).
Quando escrevi sobre o Trem do Samba, na semana passada, eu disse:
“Dezembro de 1999 - eu disse 1999, portanto há 24 anos.
Eu, acompanhado da mulher que, a despeito de ter morrido, está viva, fui ao Trem do Samba pela primeira vez.”
E fiquei aflito quando não consegui encontrar uma mísera foto pra ilustrar o que eu dissera, uma necessidade que o sacerdócio da advocacia plantou em mim - dizer e provar.
Uma semana depois, organizando fotografias (uma tarefa que, sei, jamais cumprirei integralmente, tamanha é a quantidade de registros) finalmente encontrei a foto que eu sabia que tinha.
Não é de 1999, mas é de 2000, de 02 de dezembro de 2000.
Nela estou com Dani, a mulher que morreu em 2011 mas que se mantém viva - em aguda oposição à que, a despeito de estar viva, morreu em 1999 (e que jamais me fez companhia em qualquer das efemérides que me moldaram ao longo dos anos).
A foto me arremessa abruptamente em direção ao passado: não há, em mim, um único fio de cabelo branco, seja na cabeça ou na barba; estou com uma indefectível pochete atravessada no corpo; com uma lata de Skol na mão; com um brilho nos olhos que eu não tenho mais; e com uma mulher que desapareceu e que não sonhava, dentro daquele vagão, com a morte que viria pouco mais de dez anos depois.
Na manhã de sábado, 10 de fevereiro de 2024, os metais, mais uma vez, farão explodir no ar do Velho Centro do Rio o quem não chora não mama, segura, meu bem, a chupeta, lugar quente é na cama ou então no Bola Preta. Foi sempre a senha pra que meu coração acelerasse, foi sempre a senha pra que eu emendasse vem pro Bola, meu bem!, vem pro Bola, meu bem!, uma alegra infernal, uma alegria infernal, todos são de coração, todos são de coração, foliões do carnaval sensacional (ouçam, aqui, a mais tradicional das gravações da Marcha do Cordão da Bola Preta).
Foi sempre.
Não será mais.
Não será mais porque, eis a verdade que o Carnaval não poderá mascarar, não há mais nenhuma das quatro mãos que me acompanharam nos meus melhores anos de Bola Preta ao longo de mais de 20 anos. Em 2011, volto a fazer digressões, abateu-se sobre mim a certeza bruta de que eu não iria mais ao encontro da apoteose das apoteoses - ela havia morrido em julho e eu imaginava que em 2012 eu não teria forças (ou vontade, seja lá que nome se dê a isso) para voltar ao cordão que tantas vezes nos viu eufóricos no branco-e-preto do meu coração.
Mas a vida faz seus desenhos, os desenhos nos surpreendem e lá estava eu, em 2012, com outro par de mãos juntos das minhas, percorrendo os mesmos caminhos dentro dos descaminhos do mais incrível cordão carioca que tantas vezes, durante tantos anos, percorri.
Foi, bem me lembro, catártico.
Um carnaval moreno.
E ano após ano lá, desde então, estávamos nós, lá estava eu, no lugar mais quente.
Foi assim até 2023. Como lhes contei na semana passada:
“Ano passado, 2023, o mais triste e melancólico dos desfiles do Cordão - porque era assim, triste e melancólico, que eu estava. Era como se eu soubesse, e acho que eu já sabia, que ali estava pela última vez.
Não houve, inclusive, e pela primeira vez em muitos anos (tirando os anos da pandemia), o Café da Manhã do Bola Preta.
Como estava dizendo: eu já sabia que era meu último desfile no Cordão.
E não porque eu vá morrer antes do próximo Sábado de Carnaval.
Tampouco porque vá morrer o imortal Bola Preta.
É que morreu o que me movia.”
Como em 2011 (às vésperas do Bola Preta em 2012), estou sem forças (ou vontade, seja lá que nome se dê a isso) para a imolação sacrossanta do dia mais esperado do ano - sem, entretanto - diga-se -, a mesma dor.
Há uma paz (como a que antecede a consumação do desejo do suicida) em torno dessa decisão - uma paz como a que não havia.
Vai me doer, eu sei, amanhecer no Sábado de Carnaval sem o Bola Preta.
Sem a mesa posta do café da manhã - o legendário (sim, legendário) Café da Manhã do Bola Preta.
Mas vai me doer infinitamente menos do que ir - sem elas.
Nenhum nhém-nhém-nhém; chupeta, meu bem, pro neném.
Não fará mais sentido cantar você pra lá, eu pra cá, até quarta-feira.
O Bola Preta, entretanto - que isso fique claro - permanecerá sendo meu segundo lar. É lá, apud Blanc, que eu quero me curar.
DUAS EFEMÉRIDES
Os próximos dias prometem ainda mais emoções para meu combalido e resistente coração.
Dia 25, quinta-feira, papai completará 80 anos. Oitenta. Oi-ten-ta.
Eu o conheço há 54 e digo: pouca gente conheci como ele, capaz de não nutrir, ao longo do tempo, paixões.
O Vasco de Gama e a Beth Carvalho - eu diria que as únicas duas.
Vê-se que, nisso - com a graça dos deuses - não puxei a ele.
Sempre fui, desde cedo, um homem movido por paixões - e todas tratadas a pires de leite.
E nunca, vejam vocês!, conversei com papai sobre nenhuma das minhas paixões. Nunca.
A impressão que tenho depois de tantos anos de silêncio é a de que ele jamais me compreenderia.
No dia 29 de janeiro, quatro dias depois dos 80 anos de papai, completarei 20.000 dias de vida.
— Mas quem conta os dias de vida, meu Deus?! - ela me perguntou rindo, dia desses.
Ora, ora. Eu.
Obsessivo - obsessão é a mais forte herança isaaquiana - que sou, como eu iria deixar passar em branco essa marca?
Estarei - como no Carnaval - sozinho.
Em Salvador.
Minha segunda cidade, onde me reconheço e onde me aconchego sempre.
Comemorarei, entretanto, a marca que, convenhamos, é bonita e significativa.
E POR FALAR EM FEIJOADA…
Em primeiro de maio de 2022 fiz, em casa, ainda na Tijuca, uma feijoada para comemorar meu aniversário já que o 27 de abril (dia em que nasci) caiu no que seria a Quarta-Feira de Cinzas daquele Carnaval fora de época.
Foi nesse dia que conheci (depois de muitos meses de muita conversa virtual) Rodrigo Carvalho.
Dois anos depois, daqui a poucos dias também (eis aí mais uma efeméride), o bardo brasileiro, residente em Londres, chega ao Brasil e encora aqui em casa, na gloriosa Copacabana - oportunidade que terei de retribuir o pouso que recebi em outubro de 2022, quando estive na capital britânica (~capital britânica~, me permitam).
Passará o Carnaval no Rio.
E me dará o prazer de comparecer à 23ª Feijoada da Apuração.
Estou, como diria minha amada e saudosa bisavó, riscando a folhinha na contagem dos dias.
BOISSON
Eu já lhes falei sobre Guilherme Boisson aqui, aqui, aqui e na semana passada, aqui.
Hoje (já passa de meia-noite, não é mais sexta-feira, já estamos no sábado), 20 de janeiro de 2024, dia de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro, Guilherme Boisson estará na Basílica Santuário de São Sebastião dos Frades Capuchinhos, na Tijuca.
— Você é católico? - perguntei logo depois dele deixar escapar, durante o almoço de ontem (sexta-feira), que iria à missa logo cedo.
— Não. Mas sou devoto de São Sebastião. - ele respondeu, mastigando.
— É?
— Sim. E vou tocar na missa.
Fez a pausa e emendou, unindo as mãos numa prece imaginária:
— Violão.
Semana que vem, estejam certos (lá estarei também, na minha gloriosa Tijuca), lhes contarei sobre a performance do Boisson durante a liturgia.
Volto, vocês sabem que eu volto, ao personagem - me permitam repetir.
Ah, é claro: anseio por juntar na mesma mesa Guilherme Boisson e Rodrigo Carvalho. A conferir.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, por conta da ocasião (a proximidade do Carnaval é sempre uma senhora ocasião), o texto (a receita!) Feijoada, a receita, publicado no dia 09 de fevereiro de 2006, aqui. É um dos mais acessados e lidos do blog. E tem, até o momento, 107 comentários (e como foi bom relê-los!).
“(atualizada em 10 de março de 2012, pra Flavia Holleben)
Ponha os pratos no chão, e o chão tá posto
e prepare as lingüiças pro tira-gosto…
(Chico Buarque)
(pro Marcelo Coelho)
Foi só ligar o celular, pela manhã, e o recado do Coelho:
– Edu… Manda pra mim a receita da tua feijoada…
Mando. E por aqui. Pediu-me, é verdade, as receitas da feijoada e da rabada, mas devagar com o andor, mano Coelho, que o santo é de barro e pressa não combina com cozinha. Hoje vamos de feijoada, que eu, sem nenhuma modéstia (quem diz esse “nenhuma”, com um “u” mais-que-tônico, é o Szegeri), domino com a sabedoria da escravaria e das senzalas, e sempre sou alvo de “ohs” e “ahs” maravilhados quando sirvo a dita cuja. Não tem Gatopardo, não tem Othon, não tem nem mesmo Casa da Feijoada para me fazer páreo (acordei mais convencido ainda).
Seguinte, Coelho… É preciso, antes de mais nada, uma paixão desmedida pelo troço. E vou tentar não ser careta ao lhe passar a receita. Nada de divisão para ingredientes, modo de preparo, essas babaquices que constam das receitas clássicas. Não. Vou tentar imprimir meu modus operandi na íntegra, com a precisão que me é peculiar.
É preciso que você vá a um supermercado, aí em Campinas, com o mesmo espírito do Mundial da Rua do Matoso. Isso é fundamental. Compre 2kg de feijão preto Combrasil. Depois vá ao setor de salgados e, atenção!, sem vestir aquela luvinha nojenta de plástico que fica de mão em mão, passe a escolher, com rigor, 2kg de carne-seca (do lagarto), 2kg de lombo salgado, 1kg de lingüiça calabresa, 1kg de lingüiça portuguesa, 1kg de paio, 1kg de bacon (prefira os bem carnudos…), um rabinho e um pé de porco (acho que aí vocês chamam isso de chispe). Compre óleo. Cinco cebolas de casca bem escura (as argentinas, as argentinas!) e cinco cabeças de alho graúdas. Duas laranjas seleta. Muito louro. Uns 5 limões. E uma garrafa de Velho Barreiro. Mas fique atento: não estou pensando nem na couve, nem na farofa, nem no arroz, em mais nada. Apenas na feijoada. Certo? Em frente.
É preciso que você vá à cozinha já com um pano de prato estendido no ombro direito. Mandinga que aprendi no Cafofo da Surica e que dá certo, acredite.
De véspera, ponha a carne-seca (já cortada) para dessalgar numa vasilha com água o suficiente para cobri-la. E ponha a vasilha na geladeira. Seis horas depois, troque a água. E seis horas depois, de novo.
No dia, propriamente dito… Num caldeirão consideravelmente grande ponha os dois quilos de feijão sobre um manto de folhas de louro e bastante água. E nenhuma gota de sal. O sal virá das carnes.
Outro importante detalhe. Tenha em mãos aquele disco de capa preta com o Chico Buarque bem novo, e escute, sem parar, “Feijoada Completa”. Prepare uma caipirinha e fique ali, bicando a bebida, repondo a bebida, o tempo inteiro.
Ligue o fogo alto e vá cuidar das carnes. A carne-seca, depois de retirada da geladeira, e o lombo, você deve cortar em cubos, com uma faca afiadíssima, desprezando todo e qualquer sinal de gordura (a carne-seca, que já estava cortada na geladeira, deverá apenas ser melhor apurada, ou seja, você deverá retirar as aparas de gordura, a essa altura se soltando dos nacos de carne). Fez isso? Mande tudo pra uma bacia gigante com bastante água.
As lingüiças e o paio, em rodelas.
Pique as cebolas e o alho (pique, não rale nem amasse).
Trate de trocar, muitas vezes, a água da bacia das carnes salgadas que não serão aferventadas. Você deverá aferventar, e pode ser já!, apenas as lingüiças e o paio, tudo na mesma panela. Até levantar fervura. Tire do fogo, escorra a água e deixe as carnes esfriarem. Esfriou? Com os dedos, vá retirando as gorduras brancas que saltarão pra fora das rodelas. Sacou? Continuando.
Numa mesma panela ponha o rabo e o pé. Esprema o suco dos limões e cubra com bastante água. E manda pra ferver, e bastante! Ferveu? Escorra a água quente e deixe esfriar.
Começou a ferver o feijão? Escorra a água da bacia das carnes e mande pro caldeirão a carne-seca e o lombo. O rabinho e o pé. E deixe boiando, no caldeirão, as laranjas cortadas ao meio e com casca. Nesse momento entra o Velho Barreiro. Sem mixaria, despeje no caldeirão, não sei, deixe-me ver… Uns 2 copos americanos, até a boca, de cachaça. Aí, malandro, tem o tato, o olhar, o olfato. Depois de um tempo de fervura no caldeirão, mexendo sempre, lance ao mar negro as lingüiças, o paio e o bacon cru, picado em quadrados. Mais um tempo e cuide do refogado. Num panelão, ponha o óleo, depois as cebolas, e quando elas começarem a dourar, o alho picado. Tudo terá de ficar num dourado comovente. Daí lance tudo no caldeirão, e mexa, mexa, mexa sem medo. Dê uma abaixada no fogo e fique ali, bebendo, curtindo o aroma da cozinha. Acompanhe, sempre, o sal do feijão. A certa altura retire umas 3 ou 4 conchas só de caroços do feijão e com um pilão, sem dó, transforme tudo numa massa que será devolvida ao caldeirão. Tá quase pronto, mano velho.
Retire as laranjas (empapadas de gordura) e o rabo e o pé (se você não for servi-los). Como o fogo está baixo, a tendência é que o feijão pare de ferver e borbulhar, e daí você aproveita para, usando a concha, ir retirando as ilhas de gordura, nítidas, que se formarão na superfície do caldeirão. Daí é manha de novo. Você tem de perceber a hora certa de apagar o fogo e tampar o caldeirão. Uma meia hora depois e repita a operação com a concha pra retirar mais gordura. Fogo alto de novo, mexa muito, e pronto.
Prove o feijão o tempo inteiro para acompanhar o sal. Enxugue a testa, limpe a boca, não tenha medo de destruir o pano de prato!
Bom proveito, querido. Faça fotografias e me mande. Espero que dê tudo certo.
Um beijo na família, na Cristina e no Pedrinho.
Até.”
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei pouca coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito). Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
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Quero indicar a vocês, meus pouco mas fiéis leitores, uma das playlists que montei no Spotify - Rio de Janeiro - que já conta com 122 seguidores.
Ela será permanentemente incrementada (e eu aceito sugestões que podem ser enviadas por e-mail!).
Ela está aqui ou, se preferir, ouça já! - abaixo.
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e, repito, está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
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